quinta-feira, 31 de outubro de 2019

INFLUÊNCIA AMPLIADA

Bruno Boghossian, Folha de S.Paulo
Caso do porteiro deve ampliar influência de Carlos Bolsonaro no poder
A tensão provocada por episódios como o depoimento do porteiro do condomínio de Jair Bolsonaro tem potencial para mexer nas relações do centro do poder. O papel dos atores políticos no caso deverá ter efeitos na balança de influências do entorno do presidente.
Alguns personagens saem fortalecidos. Um deles é Carlos Bolsonaro. Foi o vereador carioca quem divulgou uma peça-chave para rebater publicamente uma informação dada pelo funcionário, que vincularia o pai a criminosos que mataram Marielle Franco em 2018.
Depois que o Ministério Público apontou a contradição no depoimento, Carlos escreveu: “Sou seu soldado há quase 20 anos e isso não vai mudar, independentemente do que vier. Estou preparado!”.
Embora Carlos goze de uma influência sobre o governo inédita para um filho de presidente, o próprio Jair o havia desautorizado duas vezes nos últimos dias. Apagou uma publicação que criticava a possível revisão das prisões em segunda instância e outra que comparava o STF a uma hiena a acossar o presidente.
Não será surpresa se Carlos enfrentar menos restrições a partir de agora. “Outras calúnias virão e estarei aqui”, publicou o filho do presidente. O resultado seria um avanço da radicalização do governo, defendida pela chamada ala ideológica do Planalto –alimentando, inclusive, novos embates com outros Poderes.
O jogo também muda para um agente em especial: Augusto Aras. A presteza com que o procurador-geral anunciou que a menção a Bolsonaro havia sido arquivada pelo Ministério Público e não passava de um “factoide” tende a reforçar suas conexões com o presidente.
O trabalho de Sergio Moro também não passou despercebido. Políticos e integrantes de tribunais superiores observaram que o ministro demonstrou alinhamento incomum ao presidente em seu pedido de abertura de investigação sobre o depoimento do porteiro. Resta saber se Bolsonaro vai retribuir e aumentar o prestígio do desgastado auxiliar.
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É PRECISO AVANÇAR

Editorial Folha de S.Paulo
Um novo conjunto de informações que veio à luz nos últimos dias deixa em situação incômoda o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e outros membros de sua família.
Os áudios que esta Folha e outros veículos divulgaram, nos quais Fabrício Queiroz conversa com um interlocutor desconhecido, e desdobramentos acerca da investigação do assassinato de Marielle Franco, levantam dúvidas e questionamentos que demandam respostas.
Queiroz, policial militar aposentado, foi por mais de dez anos assessor e motorista do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Antes disso, desde a década de 1980 mantinha relações de amizade com o atual mandatário.

O próprio Bolsonaro destacou o vínculo, em dezembro do ano passado, ao afirmar que fizera um empréstimo pessoal ao ex-assessor do filho, na tentativa de explicar um depósito de R$ 24 mil na conta de Michelle, a atual primeira-dama.
Exposto, Queiroz tentou sair de cena, enquanto o caso, que também envolve as atividades de Flávio, passou a ser investigado em banho-maria, tendo sido congelado em julho, em decisão do presidente do STF, Dias Toffoli.
Nos áudios, Queiroz não deixa dúvida sobre a gravidade dos elementos que acredita terem sido reunidos pelo Ministério Público —refere-se a eles como uma ameaça “do tamanho de um cometa”. 
Diz também que discutiu com o presidente a demissão de uma funcionária fantasma, que se enquadraria no esquema fraudulento conhecido como “rachadinha”.
A biografia do ex-assessor contribuiu ainda, desde o início, para reforçar evidências que aproximam membros da família Bolsonaro de integrantes das milícias cariocas. Esses laços nebulosos mais uma vez provocaram inquietações com a exposição de um depoimento controverso que consta das investigações sobre o assassinato de Marielle Franco. 
O principal suspeito do crime, o sargento aposentado da Polícia Militar Ronnie Lessa, reuniu-se com outro acusado, o ex-policial militar Élcio Queiroz, no condomínio da Barra da Tijuca, no Rio, onde o presidente tem uma casa.
O encontro teria ocorrido no dia do crime, em 14 de março de 2018. Segundo um porteiro do local, Élcio disse que iria à casa de Jair Bolsonaro, que no entanto estava em Brasília. O presidente negou enfaticamente ligação com o crime, e o próprio Ministério Público diz que o depoimento do porteiro não tem apoio em provas técnicas.
Mas o problema não se encerra nesse aspecto. Na realidade, é o esclarecimento do assassinato de Marielle e das suspeitas contra Fabrício Queiroz, com todas as suas implicações, circunstâncias e envolvimentos, que o país aguarda.
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AS HIENAS TÊM RAZÃO

Flávia Boggio, Folha de S.Paulo
O presidente Jair Bolsonaro pediu desculpas por ter publicado, em seu perfil no Twitter, um vídeo se comparando a um leão atacado por hienas, que representam instituições como o STF.
“Não sei por que passou despercebido [sic] essa matéria aí”, disse o presidente, provando que não entende de flexão de gênero. Nem sabe a diferença entre uma reportagem e um vídeo de gosto duvidoso.
Deixando de lado a qualidade do material, o vídeo erra por outro motivo: apesar da má reputação, as hienas são extremamente evoluídas e Bolsonaro tem muito o que aprender com elas.
Os animais da espécie vivem em estruturas organizadas, que reúnem até cem integrantes, o que garante a sobrevivência em regiões mais hostis —diferentemente do presidente, que se isola cada vez mais e se vê ameaçado até por aliados, como mostra em seu vídeo.
As alcateias seguem estruturas hierárquicas sólidas e são lideradas pela fêmea mais velha. Já Bolsonaro segue ordens de filhos e não pode ver uma mulher que já quer ofendê-la —principalmente se ela tiver mais de 50 anos.
Como se alimentam de carcaças, ossos e dejetos, as hienas são muito importantes na limpeza e sustentabilidade do ecossistema. Ao contrário do governo, que segue uma política antiambiental e demora 41 dias para aprovar um plano de contingência de petróleo.
As fêmeas possuem um clitóris superdesenvolvido, chegando a medir sete centímetros de comprimento.
Essa informação não contribui em nada para a coluna, mas achei interessante compartilhar.
O córtex frontal desses animais é semelhante ao de primatas como chimpanzés. Isso explica a sua inteligência social e a capacidade de solucionar problemas até em silêncio, usando só sinais não verbais para se comunicar. Já o presidente, bom, não precisamos nem comentar.
Por trabalhar em grupo com eficiência, as hienas são capazes de abater animais de grande porte, como zebras, antílopes e leões. Já Bolsonaro, como mostra o vídeo, é salvo por um “conservador patriota”.
Mas, do jeito que as coisas caminharam nesses dez meses e com o nome citado no caso Marielle Franco, em breve esse leão lento e desgastado não terá ninguém para salvá-lo. 
E as organizadas hienas estarão à espera.
Flávia Boggio
Roteirista e autora do núcleo de humor da Globo
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REI DOS ANIMAIS

Ruy Castro, Folha de S.Paulo
Quando se julgavam esgotados os epítetos, afrontas e apodos dirigidos a Jair Bolsonaro —nunca um presidente da República se prestou tanto a ser desqualificado—, eis que ele próprio acrescentou à sua galeria o título que lhe faltava. O vídeo produzido por sua equipe e protagonizado por um leão identificado com o seu nome, acossado por hienas marcadas com os logotipos de seus supostos inimigos, não deixa dúvida. Ele é o rei dos animais.
Essa repentina majestade, no entanto, não o livrará de continuar a ser tratado com casca e tudo, inclusive pela turma com quem andava antes de chegar ao Planalto. Outro dia, seu próprio colega de partido, um certo Delegado Waldir, chamou-o de “vagabundo” e “essa porra” —quase fazendo o colunista sair em defesa da porra, injustamente rebaixada a Bolsonaro. 
Turma aquela que, de tão íntima, parece na iminência de lhe custar caro. Fabrício Queiroz, seu ex-boy, ex-motorista, ex-oficial de gabinete, ex-coordenador de contratações escusas e ex-amigo, ressuscitou em áudio esta semana, dando dicas a “Jair” sobre como melhor conduzir o poder e se queixando de que, alvo de um processo perigoso, está sendo abandonado pelos cúmplices, digo colegas. O vocabulário de Queiroz não é dos mais ricos. Consta de dez ou doze palavras, metade das quais, palavrões. Mas é injusto tirar as crianças da sala quando se sabe que ele vai falar na TV. Todo o governo Bolsonaro justifica que se tirem as crianças da sala.
Ao escalar o time de hienas que hostilizam o leão, Bolsonaro arrolou uma nova instituição ao seu rol de inimigos imaginários: o STF. O fato de o vídeo ter sido “apagado” e, como sempre, Bolsonaro ter se “desculpado” —desta vez, 24 horas depois—, não impede o vídeo de continuar no ar, atingindo milhões de pessoas. E, em todas as exibições, lá está o insulto: o STF é uma hiena.
Resta ver se o STF fará jus à descrição.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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MADAME NATASHA PEDE COMPOSTURA VERBAL

Elio Gaspari, Folha de S.Paulo

Madame Natasha tem opiniões políticas e não as revela, até porque quase sempre estão erradas. Ela zela pelo idioma e pela compostura no seu uso. Natasha acompanhou a campanha eleitoral do ano passado e convenceu-se de que Jair Bolsonaro e seus seguidores apresentavam-se como paladinos da lei, da ordem, da moralidade e dos bons costumes.

Neste mês de outubro, ela colecionou falas de alguns poderosos e assombrou-se com o que viu. Coisas que não se dizem numa casa de família e que nunca se ouviram na política brasileira.

Quem puxou o desfile da incontinência foi o presidente. Falando a um grupo de garimpeiros, Bolsonaro disse que “o interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério”. Dias depois, quando um cidadão perguntou-lhe onde estava seu amigo Fabrício Queiroz, o doutor respondeu: “Tá com tua mãe”.

(É o caso de relembrar a conduta do general João Figueiredo em Florianópolis, em 1979. Quando ele ouviu o que não gostou, vindo de uma manifestação, partiu para cima dos estudantes aos gritos: “Eu gostaria de perguntar por que a minha mãe está em pauta. Vocês ofenderam minha mãe”. É a velha história: não se deve botar mãe no meio.)

O Delegado Waldir (GO), então líder do PSL na Câmara, deu a Bolsonaro o veneno da sua própria incontinência. Reagindo à iniciativa que pretendia tirá-lo do cargo, ele disse, durante uma reunião do partido: “Vou implodir o presidente. […] Não tem conversa, eu implodo o presidente, cabô, cara. Eu sou o cara mais fiel a esse vagabundo, cara. Eu votei nessa porra. […] Eu andei no sol 246 cidades, no sol gritando o nome desse vagabundo”. (Dias depois, repetiu: “Ele me traiu. Então, é vagabundo”.)

O deputado Felipe Francischini (PSL-PR) acrescentou: “Ele começou a fazer a putaria toda falando que todo mundo é corrupto. Daí ele agora quer tomar a liderança do partido que ele só fala mal?”.

Dias depois começou uma briga de textos. A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) desentendeu-se com Eduardo Bolsonaro (“moleque”) e foi rebatida pela colega Carla Zambelli (PSL-SP), que a chamou de Peppa: “Só agradeço a Deus por estar tirando o véu da sacanagem ao povo brasileiro e mostrando quem é quem”.

Finalmente, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), que gravou a fala do Delegado Waldir, defendeu-se: “Alerto sobre a tentativa de pedir cassação de mandato. Garanto que não estão acostumados com alguém como eu. Tenho muita coisa para f*** o Parlamento inteiro. Eu vou bagunçar o coreto de todo mundo, vou sacudir o Brasil”.

Fabrício Queiroz até hoje não conversou com o Ministério Público, mas em junho, oito meses depois de ter deixado o gabinete de Flávio Bolsonaro, disse o seguinte a um amigo, conforme um áudio revelado pela repórter Juliana Dal Piva:

“Tem mais de 500 cargos, cara, lá na Câmara e no Senado. Pode indicar para qualquer comissão ou, alguma coisa, sem vincular a eles [os Bolsonaros] em nada”, diz Queiroz, no áudio, para depois complementar: “20 continho aí para a gente caía bem pra c***”.

Natasha acredita que todos eles podem continuar defendendo suas posições, mas não devem usar a cloaca do idioma para se expressar. Ela torce para que Daniel Silveira conte o que sabe e gostou muito da ameaça de Joice Hasselmann: “Não se esqueçam que eu sei quem vocês são e o que fizeram no verão passado”. Tomara que conte.

A senhora faz esse apelo porque zela pelo idioma, mas lembra o que ensinou o escritor mexicano Octavio Paz: “Quando uma situação se corrompe, a gangrena começa pela linguagem”.
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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A PARANOIA COMO MÉTODO POLÍTICO

Bruno Boghossian, Folha de S.Paulo

Bolsonaro explora a paranoia como método político

Cercado por hienas e conspirações socialistas, Jair Bolsonaro quer convencer o país de que é vítima de uma ameaça contínua. A insistência do presidente em retratar críticos como vilões e atribuir seus infortúnios a complôs delirantes mostra que ele pretende governar em estado permanente de paranoia.
Esse estilo político foi descrito pelo historiador americano Richard Hofstadter num ensaio de 1964. Ele tomou emprestado o termo clínico para descrever um discurso baseado no exagero, na suspeição, no alarmismo e em fantasias conspiratórias.
A tática é apresentar o jogo democrático como um conflito entre o bem e o mal, anulando qualquer expectativa de moderação e convocando uma luta constante. "Visto que o inimigo é considerado totalmente mau e desagradável, ele deve ser totalmente eliminado", escreveu.
Governos com inclinações autoritárias costumam se apegar a esse método para destruir a legitimidade de instituições que delimitam seus poderes. Conluios são a justificativa ideal para quem quer adotar medidas excepcionais e punir rivais.
Nos últimos dias, Bolsonaro e sua equipe sugeriram repetidas vezes que os protestos no Chile e o resultado de eleições livres na Argentina não são produtos da vontade popular, mas uma intentona esquerdista que ameaça também o Brasil. O presidente até alertou os militares e pediu que eles ficassem de prontidão para reprimir manifestações.
Ao divulgar o vídeo em que retrata quase todos os seus críticos como animais agressivos e aproveitadores, o bolsonarismo amplia o recado: a fonte do perigo não são apenas opositores formais, mas qualquer personagem disposto a contrariar seus interesses ou sustentar uma desaprovação legítima ao governo.
O próprio Bolsonaro deixa claro que tudo não passa de enganação. Depois de lançar o alerta sobre o risco vermelho, ele divergiu de si mesmo. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente disse achar que a esquerda "não tem futuro no Brasil num curto espaço de tempo".
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).
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O TREVO DA DISTOPIA

José Eli da Veiga, Valor Econômico

Está em ascensão a crença em irrevogável autoextermínio da humanidade. A tal ponto que nem caberia, nesta página, a lista de recentes bons livros e artigos que robustecem tal distopia. A justificativa é quase sempre ambiental, com maior realce ao imbróglio climático, muitas vezes acompanhada de prognósticos dos mais sombrios sobre o uso de novas tecnologias, com destaque à inteligência artificial. Com tal combinação, muito em breve só sobrariam vivos, na Terra, os tardígrados.

Costuma estar fora desta onda qualquer preocupação com a incerteza mais garantidora de tão lúgubre desfecho: a volta da ameaça de um “inverno nuclear”, fato que mereceu destaque aqui no Valor do último 13 de setembro (p. 14-15 do caderno EU& Fim de Semana). É esquisito que o pior agouro – o de guerra nuclear – fique debaixo do tapete em algaravia sobre aquecimento global e más condutas tecnológicas, os menos prementes dos três perigos.

Uma boa especulação psíquica evocaria os mais fortes arquétipos sobre a natureza. Alguns tendem a achar que ela é caprichosa, delicada, frágil, precária e efêmera. Outros, que ela é bem robusta, estável e previsível. Para os primeiros, só restaria aos humanos o dever de agir como se estivessem pisando em ovos, sem qualquer pretensão de gerenciamento ambiental. Ao contrário dos que apostam na ciência para um manejo que contrabalance os males impostos pelo processo civilizador.


Se fossem mais seguras as evidências científicas sobre o trevo das incertezas ditas existenciais – a nuclear, a ambiental e a tecnológica – o mais provável é que algum consenso sobre o futuro das sociedades começasse a ser formado. Porém, os resultados obtidos nas últimas décadas pela ‘Ciência do Sistema Terra’ estão longe de impedir o predomínio das inclinações subjetivas sobre a relação dos humanos com a natureza, além de subestimação do vetor nuclear.

Tais circunstâncias obrigaram o filósofo francês Jean-Pierre Dupuy, professor de ciência política em Stanford, a condenar o uso de seus argumentos pelos autointitulados “colapsólogos”. Autor do best-seller “Pour un Catastrophisme Éclairé”, de 2002 (traduzido, dez anos depois, pela Editora É Realizações, com o título “O Tempo das Catástrofes”), ele chama a atenção para o mais grave erro conceitual dessa tribo, em texto recém-publicado no website AOC media: (https://aoc.media/): o estranho pressuposto de que todos os sistemas complexos seriam mais frágeis.

É equivocada a afirmação de que um colapso será inevitável em futuro próximo porque estruturas cada vez mais globalizadas, interconectadas e travadas tornam a biosfera muito mais vulnerável a perturbações internas ou externas, engendrando uma dinâmica de derrocada sistêmica. Os mais resilientes ecossistemas naturais são justamente os com redes mais complexas e mais interconectadas. Diferente das redes artificiais, que arbitrária e abusivamente também vêm sendo chamadas de “ecossistemas”. Estas, sim, podem se tornar mais vulneráveis com a elevação da complexidade.

Então, em vez de condenada ao autoextermínio por razões ambientais e/ou tecnológicas, a vida inteligente do gênero humano está, sim, ameaçadíssima, mas principalmente pela possibilidade de que venham a ser usados os atuais arsenais atômicos. E, se isto for evitado, as perguntas mais pertinentes incidem sobre os tipos de influência que terão as outras duas folhas do trevo sobre o desenvolvimento socioeconômico e político.

Tragédias climáticas provocarão guerra nuclear? Outros danos ambientais e extravios digitais causarão sérias degradações da qualidade da vida? Restrições sobre os recursos naturais (água, ar, solos, etc) culminarão em modos autoritários de gestão, após violentas lutas de apropriação? Ou será que suscitarão soluções inovadoras, abrindo caminho para um futuro melhor?

Combinando tais perguntas a várias outras sobre emancipação individual ou mutações nas atividades do cotidiano, pode-se perceber qual é a atual encruzilhada. Sociedades futuras moldadas por normatizações sociais não consentidas, necessárias às incontornáveis transformações ecológicas e econômicas? Ou sociedades futuras estruturadas por um movimento fortemente individualista, contrário às institucionalizações?

Embora concorrentes, os polos desta contradição não são antagônicos. Nutrem-se um do outro e se completam enquanto se opõem. Tudo indica que, em vez de ou/ou, trata-se de mais uma das muitas conjunções de simultâneos e/e. O que resulta em, no mínimo, quatro cenários – também não incompatíveis – cuidadosamente descritos em estimulante relatório da associação Futuribles International: sociedade sob vigilância, sociedade algorítmica, sociedade do ‘eu’ e sociedade de arquipélagos.

Tão estimulante exercício de antecipação – este sim antagônico à distopia – está agora disponível em português, no número 2 da excelente revista Futuribles, publicada pela organização Plataforma Democrática, uma parceria da Fundação FHC com o carioca Centro Edelstein.

*José Eli da Veiga, professor sênior da USP
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A FALTA DE LIMITES DO PRESIDENTE

Míriam Leitão, O GLOBO
O ministro Celso de Mello definiu como “atrevimento sem limites” porque o ministro é um homem educado e sabe o código de conduta no uso das palavras por uma autoridade. O que o presidente Bolsonaro fez ao comparar o STF a uma hiena da alcateia que ataca o “leão conservador e patriota” é muito mais grave do que ele admitiu mesmo no pedido de desculpas. “Foi uma injustiça sim, corrigimos e vamos publicar uma matéria que leva para o lado das desculpas.” É bem mais que uma “injustiça”.
O presidente jurou respeitar a Constituição, e ela reconhece o Judiciário como um dos três poderes, e o STF é o órgão máximo desse poder. Tratá-lo com um achincalhe desrespeitoso em uma molecagem de Twitter é descumprir preceito constitucional. Aquele é um canal oficial do presidente, e portanto é sua palavra. A explicação de que várias pessoas têm acesso aumenta o absurdo da situação. Com a mensagem ele açula os seus seguidores radicais que têm defendido o fechamento do Supremo. Sem Supremo, não temos democracia. Isso significa que ele está fortalecendo um movimento de ameaça à própria democracia.
Cada cidadão é livre para ter críticas às decisões do STF. Os ministros da Corte inclusive divergem entre si. Neste momento de decisão sobre um assunto em que há uma divisão acalorada no país é normal que o foco esteja sobre o Supremo. Os ministros Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin e Alexandre de Moraes acham que deve-se manter o cumprimento da pena após a condenação em 2ª instância, argumentando que neste ponto o mérito já terá sido julgado e revisto por um colegiado. E que os recursos protelatórios têm sido a arma do crime de colarinho branco para a impunidade. A ministra Rosa Weber, o relator Marco Aurélio Mello e o ministro Ricardo Lewandowski sustentam ser incontornável o princípio constitucional do cumprimento da pena só após o trânsito em julgado.
A favor de Barroso, Fux, Fachin e Moraes existe o fato de que essa interpretação extrema de trânsito em julgado, apenas após o último recurso da última instância, não é seguida em inúmeros países democráticos. E vai favorecer a impunidade da elite, num momento crucial do combate à corrupção. Há muito que cada pessoa pode considerar sobre tudo o que está sendo julgado. Está ficando claro que a possibilidade maior é de que prevaleça o entendimento de que não pode haver cumprimento da pena após a 2ª instância. Neste caso, fica ainda mais grave essa postagem do presidente Bolsonaro, porque ele já está elevando a temperatura dos correligionários radicais que têm atacado o Supremo em cada contrariedade. Essa é apenas mais uma postagem ou declaração polêmica. Coincidentemente, elas saem sempre que o governo está em apuros para explicar, por exemplo, o caso Queiroz.
A mensagem foi apagada, e o presidente disse que foi um erro. Porém, nada atenua o que foi postado. Presidentes não têm palavras extraoficiais, nem declarações para serem apagadas como se não tivessem sido feitas. O governante tem que saber como se comporta. No início, alguns diziam que haveria uma curva natural de aprendizado. Dez meses depois, qual é a parte que o presidente Jair Bolsonaro não entendeu sobre como funciona uma república democrática com independência dos poderes?
Bolsonaro é definido no filme como um conservador patriota. Aí também cabe reparos. Pode-se ser conservador, liberal, progressista. Há liberdade de opinião. Mas a melhor palavra para definir certos valores e comportamentos do presidente é reacionário. Tecnicamente, reacionário é aquele que defende um mundo que já morreu e gostaria de trazê-lo de volta. Suas manifestações de saudosismo e de defesa da ditadura militar se enquadram nessa definição.
Sobre o patriotismo, no sentido de amor ao Brasil, ele não é monopólio de conservadores, muito menos de um grupo político. Essa terra comum que nos abriga é um legado de todas as pessoas que integram o grande mosaico étnico, de classe social, de idade, de regiões, de convicções políticas, de orientação sexual, de crenças. Populistas manipulam o sentimento nacional para confundir o amor à Pátria com o apoio a um governo. Autoritários definem-se como reis da selva. Democratas entendem os limites institucionais e convivem com as diferenças de pensamento.
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POLÍTICA NA SELVA

Editorial Folha de S.Paulo
A alusão a animais na propaganda política é recurso antigo dos demagogos. A imagem de ratos roendo a bandeira nacional, utilizada pelo PT em 2002, vem sendo retomada há décadas como uma maneira de desumanizar os adversários.
A publicação do presidente Jair Bolsonaro (PSL), numa rede social, de alegoria baseada no cerco de um grupo de hienas a um leão tem, no entanto, as suas peculiaridades.
Alegoria constitui, aliás, palavra sutil demais para qualificar o vídeo, que deixa muito claro, por meio de trucagens toscas, quem são as tais hienas: o Supremo Tribunal Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil, veículos da imprensa (incluída esta Folha), o PT e até o PSL, que o mandatário luta para controlar com a mão pesada do Executivo.
Tampouco resta dúvida sobre a identidade do felino rodeado pelos bichos carniceiros: presidente Bolsonaro, estampa a legenda.
No reino da Arábia Saudita, que o chefe de Estado brasileiro visitava quando o vídeo foi divulgado, o regime especializou-se não só em rugir para seus críticos. Ele os mata e trucida, como foi feito com o jornalista Jamal Khashoggi em pleno consulado saudita de Istambul (Turquia), em outubro de 2018.
Com a fantasia de rei leão, Bolsonaro talvez vislumbre a latitude dos monarcas absolutos. O traje combina com os elogios velados e explícitos que veio fazendo a aspectos tenebrosos da ditadura militar (1964-1985), seja ao longo de sua extensa carreira de deputado periférico, seja mais recentemente, como candidato e presidente.
Não combina, entretanto, com as instituições da República brasileira sob a guarda da Carta de 1988.
Onde a fábula bolsonarista vê hienas, há na verdade organizações civis e estatais incumbidas de evitar o abuso no exercício do poder de Estado. Onde vê o leão, há o chefe eleito do Executivo, submetido não a seus desejos de supremacia, mas ao império universal das leis, como qualquer outro cidadão.
O choque com essa realidade levou Jair Bolsonaro a retirar o vídeo do ar e a pedir desculpas pela postagem. É um modus operandi que, de tanto repetir-se, afasta qualquer ilusão de que o presidente esteja de fato arrependido ou que tenha se convencido das vantagens do Estado democrático de Direito —se é que foi capaz de compreendê-lo.
A mensagem do leão ameaçado vem juntar-se a outra, do início de setembro, quando Bolsonaro disse que, se levantasse “a sua borduna”, todos viriam atrás dele. São rabiscos de conclamação a forças extraconstitucionais que felizmente não vicejam no Brasil de hoje.
O primeiro presidente deste ciclo democrático a apostar no “Não me deixem só” acabou isolado e defenestrado. Que Bolsonaro consiga absorver ao menos essa lição.
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TUITADA INFELIZ

Do Blog do Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense
Palpite infeliz, de Noel Rosa, é um marco da nossa música popular. O samba, composto em 1935, praticamente pôs um ponto-final na sua polêmica com outro grande sambista, Wilson Batista, que havia glamorizado a malandragem no samba Lenço no pescoço, que fazia a apologia do sujeito desocupado e bom de briga; Noel respondeu com o samba Rapaz folgado, uma crítica àquele estilo de vida.
Wilson não deixou por menos e tentou ridicularizar Noel, no samba O mocinho da Vila, ao qual o poeta respondeu com o antológico Feitiço da vila. Nessa altura da polêmica, os dois monopolizavam a audiência nas rádios e as conversas de botequim. Wilson responde novamente, com Conversa Fiada, mas Noel retruca com outra obra-prima: Palpite infeliz, cuja letra, em certo trecho, diz: “Pra que ligar a quem não sabe/ Aonde tem o seu nariz?/ Quem é você que não sabe o que diz?/ Quem é você que não sabe o que diz?/ Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!”. Wilson ainda compôs Frankenstein, uma alusão ao defeito facial de Noel, grosseria que o compositor da Vila Isabel ignorou, e Terra de cego, aos quais Noel respondeu com Deixa de ser convencido. A homérica disputa musical, porém, já estava decidida: os sambas Feitiço da Vila e Palpite infeliz são cantados até hoje.
Ideia infeliz foi o vídeo postado no Twitter do presidente Jair Bolsonaro na segunda-feira, no qual um leão, representando Bolsonaro, é cercado e atacado por várias hienas ao redor, numa alusão aos supostos inimigos do presidente da República, entre os quais estaria o Supremo Tribunal Federal (STF). O vídeo permaneceu no ar por duas horas e causou perplexidade, porque disparava em todas as direções: imprensa, partidos políticos — como o PCdoB, o PT e o próprio PSL, ao qual Bolsonaro é filiado —, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras instituições foram identificadas como as hienas.
Ontem, o presidente Jair Bolsonaro pediu desculpas ao Supremo Tribunal Federal (STF). Participava de encontros bilaterais na Arábia Saudita e comentou o caso em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo: “Me desculpo publicamente ao STF, a quem porventura ficou ofendido. Foi uma injustiça, sim. Corrigimos e vamos publicar uma matéria que vai para esse lado das desculpas”. A reação do presidente da República foi provocada por duras críticas do decano do STF, ministro Celso de Mello, que costuma ser o porta-voz da Corte nessas situações.
Surpresa
A nota de Celso de Mello foi dura, porém, com uma porta aberta para a retratação de Bolsonaro: “A ser verdadeira a postagem feita pelo Senhor Presidente da República em sua conta pessoal no Twitter, torna-se evidente que o atrevimento presidencial parece não encontrar limites”. O ministro defendeu a separação dos Poderes e fez uma alusão ao rei das selvas: “É imperioso que o senhor presidente da República — que não é um “monarca presidencial”, como se o nosso país absurdamente fosse uma selva na qual o leão imperasse com poderes absolutos e ilimitados — saiba que, em uma sociedade civilizada e de perfil democrático, jamais haverá cidadãos livres sem um Poder Judiciário independente, como o é a magistratura do Brasil”.
No exterior, o presidente Bolsonaro foi pego de surpresa pelo vídeo, cuja origem disse desconhecer, mas todos suspeitam que tenha sido uma iniciativa do vereador carioca Carlos Bolsonaro, que gerencia as mídias sociais do pai e costuma aprontar no Twitter. O vídeo está em linha com a estratégia de vitimização do pai em relação às dificuldades do governo, e sintonizado com a insatisfação das bases de Bolsonaro com o Supremo Tribunal Federal (STF). O filho nega autoria e, no Twitter, disse que foi coisa do próprio presidente da República.
Ocorre que a posição de Carluxo, como é chamado no Palácio do Planalto, não está afinada com os interesses do pai e do irmão, senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), beneficiado por uma liminar do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, que suspendeu todas as investigações com base em dados fiscais sigilosos obtidos sem autorização judicial. A liminar paralisou as investigações do caso Fabrício Queiroz, ex-assessor do parlamentar na Assembleia Legislativa fluminense.
A propósito do Supremo, ontem, Dias Toffoli encaminhou aos presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-RJ), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-AP), uma proposta para impedir a prescrição de processos até o fim do julgamento de recursos nos tribunais superiores. A prescrição se dá quando decorre o tempo máximo que o Judiciário tem para aplicar punição pelo crime. A proposta foi bem-recebida por Maia e tem o objetivo de mitigar o impacto da mudança de jurisprudência quanto à execução da pena após condenação em segunda instância, que está em julgamento no Supremo e deve ser alterada, restabelecendo o princípio do “trânsito em julgado”.

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BOLSONARO E A ARTE DE NÃO FAZER AMIGOS

Guilherme Amado, ÉPOCA
Dezembro costuma ser um mês chuvoso em Brasília, o primeiro em que a seca de fato começa a ficar para trás e respirar volta a ser uma tarefa agradável. Mas naqueles primeiros dias de dezembro de 2018 o ar do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), o QG em que se montava o futuro governo Bolsonaro, era mais do que prazeroso para Alexandre Frota. “Todos estavam excitados quando eu cheguei”, lembrou Frota numa conversa recente. O recém-eleito deputado, na época o nome forte do bolsonarismo na área cultural, subiu acompanhado de um grupo que esperava, nos próximos dias, ser anunciado para ministérios e secretarias. Fardados, olavistas, evangélicos, empresários, políticos de diferentes matizes da direita, todos ainda inebriados com a vitória do dia 28. Mas nem tudo era festa. Hoje um dos principais adversários de Bolsonaro, que abraçou como sua missão número um tirar o capitão do Planalto, Frota contou que foi naquele dia, seu primeiro no CCBB, que percebeu um traço até então desconhecido para ele do novo presidente. “O Jair é o Jair e os filhos. O resto é o resto. Comecei a perceber isso naquele dia, quando descobri que Bebianno, o cara que deu o sangue pelo Jair, não tinha nem sala no gabinete de transição. O governo nem tinha começado e o homem que tinha viabilizado a eleição de Bolsonaro já estava sendo deixado para trás.”
Nos últimos dias, conversei com alguns dos personagens centrais que foram ejetados do bolsonarismo nesses quase dez meses de governo. Fiz a todos as mesmas perguntas: por que rompeu com Bolsonaro? O que causou sua saída ou seu afastamento? Por que o presidente é tão desagregador? As respostas seguem quase todas o mesmo roteiro e apontam para um presidente excessivamente influenciado pelos filhos, notadamente Carlos e Eduardo, e que leva nas veias não o DNA do diálogo ou da conciliação, que deveriam ser inerentes a qualquer líder, mas sim os genes da paranoia e da discórdia.
Desde a posse, Bolsonaro afastou, seja pela caneta, seja pela palavra, figuras importantes para sua eleição. Além de Bebianno e Frota, estão na lista o general Carlos Alberto dos Santos Cruz; os governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro; o presidente de seu partido, Luciano Bivar; e cerca da metade dos 53 deputados e senadores do PSL, que, instados a escolher entre o poder do Planalto e o poder da máquina partidária, deram uma banana para o presidente.
A conta inclui ainda o vice, Hamilton Mourão, que nos primeiros meses de governo enviou o que pareciam recados públicos para que Bolsonaro parasse de brigar e se concentrasse no governo. Entre os militares, aliás, os que não se converteram em militantes cegos optaram pelo silêncio — ao menos em público. Privadamente, admitem o constrangimento que o extremismo de Bolsonaro lhes impõe.
“Somos um instituto independente. Não temos idolatria cega a uma figura política. O eleitor do Bolsonaro está confuso. A pauta econômica está correta, mas não dá para entender as decisões na área de combate à corrupção nem a incapacidade na articulação política”, analisou.
O Twitter de Carluxo também afastou um tanto de gente. Foram aqueles poucos caracteres que explodiram muitos dos aliados do pai. “Desde o divórcio de Rogéria, mãe de Flávio, Carlos e Eduardo, o Jair tenta compensar a mágoa que aquilo causou ao Carlos. Ele sempre fez tudo que o Carlos pediu. Mas isso impacta seu governo. Ele simplesmente não sabe dizer ‘não’ ao Carlos. E, mesmo quando o pai diz, o Carlos ignora e começa a fritar seus alvos nas redes sociais. O primeiro foi o Bebianno”, explicou um amigo de anos de Bolsonaro, sob a condição de anonimato.
Bebianno percebe com clareza hoje que o antigo amigo teve dois momentos. No começo de 2018 e durante a campanha, lembrou o ex-presidente do PSL, havia problemas concretos que podiam tirar Bolsonaro do páreo. Segundo ele, naquela época os filhos se mantinham distantes. “Especialmente o Carlos, que nunca fez absolutamente nada.” O Bolsonaro dali era cordato. “Jair mantinha uma postura mais humilde e conciliadora perante seus aliados, pois sabia que, naquele momento, não poderia prescindir de nenhum deles.” Passado o 28 de novembro, o ex-braço direito viu surgir outra pessoa.
“Depois de eleito, os dois filhos mais novos, Carlos e Eduardo, passaram a agir de forma arrogante, prepotente e pouco inteligente, pressionando o pai a não ouvir ninguém, salvo eles próprios”, analisou Bebianno.
O ex-ministro disse ver o presidente manipulado: “Fazem isso por meio de teorias de conspiração absurdas e constantes”. Mas as teorias da conspiração são a maneira de Bolsonaro encarar o mundo. A facada, Bebianno acredita, foi uma chancela. “Piorou a paranoia.”
A exemplo de Joice Hasselmann, Bebianno também aponta a milícia virtual que seria comandada por Carlos e Eduardo como um elemento desagregador. “Os dois filhos mais novos não têm educação, limites ou respeito por ninguém. Tratam a todos os aliados como se fossem capachos submissos. Quando seu ego é contrariado, atuam de forma covarde, insuflando milícias virtuais a promover linchamentos nas redes”, disparou Bebianno, sem poupar Bolsonaro: “O pecado do pai é não dar um basta. É seguir dando ouvidos a esses dois, o que está destruindo seu próprio governo”.
Os governadores dos dois maiores estados, que colaram em Bolsonaro para se eleger na onda do antipetismo, foram alijados quando o presidente viu neles futuros adversários na briga por 2022. Witzel passou a ser tratado com frieza, e duas mensagens enviadas por ele ao WhatsApp de Flávio Bolsonaro ficaram sem resposta. Doria passou a ser criticado publicamente por Bolsonaro e Eduardo. “( O conflito ) parece ser a natureza, a alma dele ( Bolsonaro ). Eu não entro nisso”, analisou um Doria cuja administração, a exemplo de todas as demais, precisa dos cofres federais. A propósito, o governador de São Paulo vem exercitando a conciliação e a lealdade. Acusado de virar as costas para Geraldo Alckmin em 2018, agora está decidido a seguir a todo custo com o projeto de reeleição de Bruno Covas. Traição na política tem custo alto.
Com Eduardo Barretto e Naomi Matsui
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MAIS UMA VEZ...

Do G1
A Polícia Civil do RJ prendeu, na manhã desta quarta-feira (30), os ex-governadores Anthony Garotinho e Rosinha Matheus. O casal estava em casa, no Flamengo, na Zona Sul do Rio.
Os mandados de prisão preventiva foram cumpridos às 6h30. O casal deixou a residência às 6h50. É a quinta vez que Garotinho é preso, e a terceira de Rosinha.
Na terça-feira (29), os desembargadores da 2ª Câmara Criminal derrubaram o habeas corpus que mantinha o casal em liberdade, por dois votos a um, e expediram um novo mandado de prisão.
A Justiça atendeu a um pedido do Ministério Público, que afirma que o casal está interferindo nas investigações - incluindo ameaças a uma testemunha-chave.
O casal tinha sido preso em setembro, acusado de participação em um esquema de superfaturamento em contratos celebrados entre a Prefeitura de Campos e a construtora Odebrecht.
Um dia depois, os dois foram soltos após um habeas corpus deferido pelo juiz Siro Darlan, no Plantão Judiciário.
Defesa vai recorrer
A defesa diz que recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). “A ordem de prisão é ilegal e arbitrária, pautada apenas em suposições e conjecturas genéricas sobre fatos extemporâneos, que supostamente teriam ocorrido entre os anos 2008 e 2014", afirma o advogado Vanildo José da Costa Junior.
Em outra nota, assinada por Garotinho e Rosinha, eles se dizem vítimas de "perseguição".
De acordo com delações premiadas à força-tarefa da Lava Jato, o prejuízo aos cofres públicos causado pelo esquema que teria contado com a participação do casal pode chegar a R$ 60 milhões.
O Ministério Público afirmou que a prisão preventiva do casal foi pedida por risco de alguma interferência de ambos nas investigações. A medida se fez necessária, segundo o MP, porque eles têm "poder dissuasório" em Campos dos Goytacazes, Norte Fluminense. Ambos foram prefeitos da cidade.
CPI investigou contratos
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara de Vereadores de Campos investigou os contratos da Prefeitura com a construtora e o relatório final, divulgado em março de 2018, apresentou indícios das seguintes irregularidades: associação criminosa, fraude ao caráter competitivo de licitação, fraude de concorrência, corrupção passiva, caixa dois eleitoral e improbidade administrativa.
A CPI investigou por nove meses os contratos referentes ao programa de habitação. Segundo a CPI, foram ouvidos cinco ex-secretários do município durante as investigações.
Histórico de prisões
  • Operação Secretus Domus - em setembro deste ano, foi a quarta prisão do ex-governador Garotinho.
  • Operação Chequinho - A primeira foi em 16 de novembro de 2016, em uma investigação de um esquema de compra de votos envolvendo o programa social Cheque Cidadão na eleição municipal daquele ano. Dois dias depois, o ex-governador resistiu quando a Justiça determinou a transferência do Hospital Souza Aguiar, onde estava internado, para Bangu.
  • Fraude eleitoral - A segunda prisão de Garotinho foi em 13 de setembro de 2017, enquanto apresentava seu programa de rádio. O MP afirmara que, em troca de votos em candidatos a prefeito e vereadores em 2016, a Prefeitura de Campos oferecia inscrições no Cheque Cidadão, que dava R$ 200 por mês a cada beneficiário. Garotinho era secretário de Governo da mulher. A Justiça acabou liberando-o para cumprir a pena em casa, com o uso de tornozeleira eletrônica.
  • Contrato fantasma - A terceira prisão foi em novembro de 2017, junto com Rosinha. Segundo delação de Ricardo Saud, da JBS, foi firmado um contrato de R$ 3 milhões para serviços de informática que jamais foram prestados - a suspeita é de repasse irregular de valores para a utilização nas campanhas eleitorais.
Garotinho chegou a lançar sua candidatura ao governo do Rio nas eleições de 2018, mas o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) barrou a candidatura com base na Lei da Ficha Limpa.
Este ano, a Justiça determinou que Garotinho fosse monitorado por tornozeleira eletrônica - dentro da Operação Chequinho -, mas sua defesa conseguiu derrubar as medidas cautelares.
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BANZAI ! BANZAI ! BANZAI !

Ricardo Rangel, O GLOBO

A crise viajou”, dizia FHC quando Sarney saía do país. Hoje o presidente viaja, mas deixa os filhos, e leva o twitter, de modo que a balbúrdia no PSL prossegue. Do outro lado do mundo, Bolsonaro virou o jogo e emplacou o filho líder do partido. No dia seguinte, bradou “Banzai! Banzai! Banzai!” num tuíte.

“Banzai” é uma interjeição que significa “dez mil anos” e costuma ser usada como saudação ao imperador ou como grito de guerra desesperado — como faziam os kamikazes na Segunda Guerra. Não ficou claro por que Bolsonaro a empregou três vezes. Talvez, além de saudar Naruhito, tenha declarado dois ataques desesperados, a Luciano Bivar e ao peixe cru.

O peixe cru venceu, e o presidente retirou-se, derrotado, para comer miojo no quarto do hotel. A saudação a Naruhito foi pelo ralo depois de Bolsonaro contar que preferiu miojo ao banquete (a vingança nipônica foi instantânea como o macarrão: miojo, uma versão vagabunda, para quem não tem dinheiro nem paladar, do “lamen”, é invenção de japonês). Quanto a Bivar, ninguém sabe no que vai dar.

Ou, vai ver, Bolsonaro confundiu “Banzai!” com “Tora! Tora! Tora!”, o código usado pelos japoneses para avisar do sucesso do traiçoeiro bombardeio a Pearl Harbor (“tora” significa “ataque relâmpago”), e estava comemorando o ataque relâmpago e traiçoeiro (segundo os bivaristas) que instalou Zero Três na liderança. Jair revelou que a tarefa do herdeiro é “pacificar” o PSL.

“Para o bem do povo e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico”, anunciou, da tribuna, o príncipe-regente, digo, deputado. Magnânimo, Eduardo abriu mão da mais alta colocação diplomática do país para tornar-se líder do PSL — posto que, como se sabe, é importantíssimo para a República.

Conciliador, Zero Três anunciou que não haverá retaliação, e iniciou a pacificação destituindo 12 vice-líderes. Explicou que vai apenas retomar o status quo — aprendeu o significado de “status quo” com o Marechal Lott, que, em 1955, devolveu o país “aos quadros constitucionais vigentes”. Ou com o documentário em que diz ter estudado o papel da Princesa Isabel na Independência. Indagado sobre a marca de sua gestão, respondeu que será a paz. Pelo jeito, a paz dos cemitérios.

Abordado pela imprensa após a primeira reunião (entrou mudo, saiu calado) como líder, Zero Três demonstrou que tem preparo e fôlego para o cargo: correu, desesperado, três anexos com obstáculos. Rocha Loures correu para esconder o dinheiro; Witzel, para comemorar a morte do terrorista; Eduardo, para ocultar suas ideias (ou a falta delas): as personagens mudam, as corridas insólitas permanecem.

A oposição enfim acordou e convidou Joice Hasselmann e o Delegado Waldir para a CPMI das Fake News. Waldir é o ex-líder, deposto por Eduardo, que se referiu a Jair Bolsonaro como “vabagundo” e “essa porra”, afirmou ter uma gravação capaz de derrubá-lo e informou que não se subordina a “nenhum presidente”. Ao ouvir o áudio do Queiroz (que diz ainda ter influência com os Bolsonaro e será convidado para a CPMI também), Waldir entendeu que “em nenhum momento a rachadinha parou” e disparou: “ao fingir que a corrupção não ocorre, é visível que ele (Bolsonaro) se afastou das propostas de campanha”.

Ex-líder do PSL no Congresso, Joice foi destituída pelo presidente, e o acusa de ingrato. Diz que Eduardo é canalha, picareta, moleque e zero à esquerda (Eduardo é zero à esquerda e três à direita), e assinou pedido para destituí-lo do comando do PSL de São Paulo. Afirma que os filhos de Bolsonaro controlam “milícias digitais” com 1.500 perfis falsos para difamar e disseminar notícias falsas, e que se produz material “dentro do gabinete do presidente”. Promete dar detalhes na CPMI.

É bom Eduardo pacificar o partido rápido: se Joice e Waldir depuserem na fúria em que estão, o estrago pode ser grande. Melhor Jair se preparando para bradar “Banzai!” novamente.

E, enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal vai demonstrando que Stefan Zweig, que disse que o Brasil é o país do futuro, estava certo, mas que mais certo estava De Gaulle, que esclareceu que continuaremos sendo o país do futuro indefinidamente. “Dez mil anos!”, diria Naruhito.

*Ricardo Rangel é empresário
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MANIFESTAÇÃO INTEMPESTIVA

Gustavo Uribe, Folha de S.Paulo
Bolsonaro ataca Globo e Witzel e nega envolvimento no caso Marielle
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) reagiu à citação de seu nome na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e, em tom irritado e agressivo, fez uma transmissão em redes sociais na qual atacou a TV Globo e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC).
Em viagem à Arábia Saudita, Bolsonaro acordou na madrugada de quarta-feira (30), noite de terça-feira (29) no Brasil, para responder a uma reportagem do Jornal Nacional, baseada no depoimento à Polícia Civil de um porteiro do condomínio onde o presidente tem casa no Rio de Janeiro.
Segundo a reportagem, o ex-policial militar Élcio Queiroz, suspeito de envolvimento no assassinato de Marielle e do motorista Anderson Gomes em março de 2018, disse na portaria que iria à casa de Jair Bolsonaro, na época deputado federal, no dia do crime. Os registros de presença da Câmara dos Deputados, no entanto, mostram que Bolsonaro estava em Brasília nesse dia.
Além de negar envolvimento no assassinato da vereadora, Bolsonaro chamou o governador do Rio de "inimigo" e ameaçou a não renovação da concessão da emissora de televisão em 2022.
"Acabei de ver aqui na ficha que o senhor [Witzel] teria vazado esse processo que está em segredo de Justiça para a Globo. O senhor só se elegeu governador porque o senhor ficou o tempo todo colado no Flávio Bolsonaro, meu filho", disse o presidente.
Segundo ele, o governador do Rio teria vazado essa informação da investigação porque é pré-candidato à disputa presidencial em 2022 e estaria empenhado em, segundo ele, "destruir a família Bolsonaro".
"Deixa muito claro que algo muito errado está neste processo. Eu gostaria de falar muito neste processo, conversar com esses delegados. Colocar em pratos limpos o que está acontecendo em meu nome. Por que querem me destruir? Por que essa sede pelo poder, senhor Witzel?", questionou.
Bolsonaro disse ainda que o processo de investigação da morte da vereadora está "bichado" e ressaltou que uma solução seria que, a partir de agora, ele fosse supervisionado pelo Conselho Superior do Ministério Público.
"Agora querer me vincular à morte da Marielle? Não vai colar. Não tinha motivo para matar quem quer que seja no Rio de Janeiro. Conheci essa vereadora no dia em que ela foi executada, em 14 de março", disse.
O PSOL afirmou que tentará audiência com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, nesta quarta (30) para tratar do caso. O partido quer que a corte autorize a polícia a investigar a menção a Bolsonaro, que tem foro privilegiado em razão do cargo. 
Em uma série de críticas, Bolsonaro acusou a TV Globo de querer infernizar a sua vida e disse que, se a emissora tivesse "o mínimo de decência", não teria divulgado detalhes de uma investigação em segredo judicial.
"Vocês vão renovar a concessão em 2022. Não vou persegui-los, mas o processo vai estar limpo. Se o processo não estiver limpo, legal, não tem renovação da concessão de vocês, e de TV nenhuma. Vocês apostaram em me derrubar no primeiro ano e não conseguiram", disse.
No Brasil, as emissoras de TV e de rádio funcionam por concessões públicas, que precisam ser renovadas periodicamente.
Bolsonaro já havia feito menção à TV Globo nesta semana. A atual permissão da emissora vence em abril de 2023. A concessão é renovada ou cancelada pelo presidente, e o Congresso pode referendar ou derrubar na sequência o ato presidencial em votação nominal de 2/5 das Casas (artigo 223 da Constituição).
Segundo lei sancionada no governo Michel Temer (MDB), o presidente pode decidir sobre a concessão até um ano antes de ela vencer —ou seja, em abril de 2022, último ano do mandato de Bolsonaro.
Em tom exaltado, Bolsonaro chamou ainda de "patifaria" a cobertura que a emissora faz de seu mandato e disse que é feito um jornalismo "podre" e "canalha". Ele chamou ainda a imprensa de "porca" e "nojenta".
"Não vou conversar com vocês da TV Globo. Temos uma conversa em 2022. Eu tenho que estar morto até lá. O processo de renovação da concessão não vai ser perseguição", disse. "Mas tem de estar enxuto, legal. Não vai ter jeitinho para vocês, nem para ninguém, essa é a preocupação de vocês", acrescentou.
Para ele, o objetivo da emissora de televisão é prender o seu filho e senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por suspeitas das práticas de lavagem de dinheiro, peculato e organização criminosa em seu gabinete parlamentar na época em que era deputado estadual.
"Parem de trair o Brasil. Não estão traindo a mim, não. Estão traindo o Brasil", disse. "Não tem dinheiro público para vocês. Vão ficar me infernizando até quando?", questionou.
Em relação ao caso Marielle, Bolsonaro afirmou ainda que o porteiro pode ter assinado o depoimento sem ler. "O que parece? Ou que o porteiro mentiu, ou que induziram o porteiro a cometer um falso testemunho, ou que escreveram algo no inquérito que o porteiro não leu e assinou na confiança. A intenção é sempre a mesma", afirmou.
Em entrevista à TV Record ainda na noite desta terça, Bolsonaro voltou a acusar Witzel de ter vazado à TV Globo as informações sobre o depoimento.
Bolsonaro afirmou que o inquérito da Polícia Civil do Rio de Janeiro está sendo mal conduzido e que há uma tentativa de criar uma cortina de fumaça para encobrir a real autoria do crime. 
WITZEL CRITICA REAÇÃO DE PRESIDENTE; GLOBO LAMENTA DECLARAÇÕES
A Globo afirmou em nota que lamenta que o presidente demonstre "não conhecer a missão do jornalismo de qualidade e use termos injustos para insultar aqueles que não fazem outra coisa senão informar com precisão".
Disse que "não fez patifaria nem canalhice" e que a mera citação do nome do presidente leva o Supremo a analisar a situação.
"[A reportagem] ressaltou, com ênfase e por apuração própria,  que as informações do porteiro se chocavam com um fato: a presença do então deputado Jair Bolsonaro em Brasília, naquele dia, com dois registros na lista de presença em votações. O depoimento do porteiro, com ou sem contradição, é importante, porque diz respeito a um fato que ocorreu com um dos principais acusados, no dia do crime."
Sobre as declarações de Bolsonaro de que renovará em 2022 a concessão se o processo estiver "enxuto", a Globo disse que não poderia esperar do presidente outra atitude. "Há 54 anos, a emissora jamais deixou de cumprir as suas obrigações."
O governador Wilson Witzel divulgou nota no fim da noite dizendo lamentar profundamente a "manifestação intempestiva do presidente" e que foi "atacado injustamente".
"Jamais houve qualquer tipo de interferência política nas investigações conduzidas pelo Ministério Público e a cargo da Polícia Civil. Em meu governo, as instituições funcionam plenamente e o respeito à lei rege todas nossas ações. Não transitamos no terreno da ilegalidade, não compactuo com vazamentos à imprensa", disse o governador.
Ele também afirmou que defenderá o equilíbrio e o bom senso nas relações pessoais e institucionais, como fez nos anos em que exerceu a magistratura. 
O procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro, Eduardo Gussem, disse que as investigações sobre as mortes de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes continuam a cargo da Delegacia de Homicídios subordinada à Polícia Civil do Rio. Também afirmou que o trabalho é acompanhado pelo Ministério Público e tramita sob sigilo. 
Colaborou UOL
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terça-feira, 29 de outubro de 2019

MITOS OU VERDADES

Ana Carla Abrão, O Estado de S.Paulo

A reforma administrativa do governo federal nem chegou ao Congresso Nacional, mas a mobilização contrária já ganha corpo. Na última semana, antes mesmo do governo trazer a público o teor da sua proposta, um conjunto de entidades representativas dos servidores públicos federais divulgou um extenso documento em que verdades absolutas são questionadas e seus objetivos desvirtuados. Há que se reforçar, portanto, as motivações que justificam uma reforma da máquina pública brasileira. E elas são, fundamentalmente, a melhora da qualidade do serviço público, o aumento da produtividade da economia brasileira e a necessária redução dos gastos obrigatórios que vêm comprimindo a capacidade do Estado de investir e melhor servir a população.

Embora legítimo na defesa dos interesses das entidades que apoiaram a sua elaboração, o documento da Frente Parlamentar Mista pela Defesa do Serviço Público precisa ser confrontado com dados e informações que jogam por terra as teses que ele busca defender. Afinal, há fartas evidências na direção contrária. Além disso, a necessidade de se reformar a máquina pública não está vinculada ao seu desmonte, mas sim à sua melhora operacional, com impactos positivos significativos também para o servidor público.

O Brasil tem gastos públicos que atingem hoje o equivalente a 39% do PIB. Boa parte disso, com o financiamento da máquina pública. Esse número, calculado pelo Tesouro Nacional com informações de 2016, é muito superior ao que países como México ou Chile gastam e se aproxima dos níveis de gastos observados em países como Inglaterra ou França. Pode-se argumentar (corretamente) que o Brasil, sendo um país em desenvolvimento e com uma população tão carente, deve mesmo ter uma máquina pública maior e mais cara. Verdade, desde que a contrapartida fossem serviços públicos de qualidade e uma população bem atendida. Não é o caso. Estamos dentre os países com pior avaliação na qualidade dos serviços públicos, segundo pesquisa da OCDE. Portanto, relativamente ao que deveríamos estar oferecendo à população brasileira, sim, o Estado no Brasil é muito grande e a máquina pública está inchada, consumindo recursos em níveis e trajetórias que não se refletem na qualidade do serviço público e no atendimento à população.

E a explicação principal está na alocação dos recursos públicos. Gastamos, segundo dados do Banco Mundial publicados recentemente, cerca de 10% do PIB com o pagamento de salários e benefícios a servidores da ativa. Somando as despesas com os regimes próprios de Previdência, chega-se a cerca de 15% do PIB. Como o número de servidores não parece alto em relação à população empregada no setor privado, o gasto de pessoal no serviço público se mostra elevado quando comparado a outros países.

Some-se a isso a desigualdade salarial no setor público brasileiro, há disfunções que precisam ser corrigidas se quisermos melhorar os serviços públicos na ponta, o atendimento ao cidadão. A Inglaterra, por exemplo, gasta cerca de 6% do PIB com salários e benefícios dos seus servidores e tem o melhor serviço público do mundo, segundo índice da Blavatnik School. Além disso, as despesas de pessoal no serviço público brasileiro vêm consumindo parcelas crescentes das receitas totais graças ao crescimento orgânico e vegetativo dos gastos com salários no setor público. Tanto que, entre 2008 e 2018, o crescimento acumulado real do gasto com servidores ativos foi de 26%, ainda segundo o Banco Mundial. Sim, as despesas de pessoal são muito altas e estão descontroladas.

As outras quatro verdades divulgadas como mitos no documento da Frente Parlamentar Mista tratam da ineficiência do Estado, do privilégio da estabilidade, do fato de que chegamos ao colapso fiscal e finalmente da importância das reformas estruturais para a retomada do crescimento. Todas questões amplamente debatidas e amadurecidas e que merecerão mais algumas linhas nesse espaço nas próximas semanas.

Mas vale aqui ressaltar a relevância do tema e comemorar a entrada desse debate na pauta nacional. A construção de uma reforma estrutural da máquina pública se dará a partir do Executivo, passará pelo necessário debate legislativo e pela negociação com os servidores e seus representantes e carecerá do entendimento do Judiciário. Mas para que os resultados convirjam para o seu objetivo, qual seja o de melhorar o funcionamento do setor público brasileiro e garantir que os serviços públicos básicos sejam instrumento de justiça social, gerando igualdade de oportunidades para os mais pobres, ele terá de contar com o envolvimento da sociedade. Daí a importância de deixar claro desde já que verdades são verdades. Não são mitos.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman

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JUSTIÇA DE RICO E DE POBRE

José Casado, O GLOBO
São 337 mil. É gente suficiente para encher quase cinco Maracanãs em dia decisivo para o Flamengo matar a fome de 38 anos na Libertadores.
São quase todos jovens, periféricos, pobres, negros e mulatos, alguns quase brancos ou quase pretos de tão pobres, como descreve Caetano Veloso em “Haiti”.
Presos “provisórios”, para a burocracia, e já somam 41,5% do total de encarcerados (818,8 mil em agosto). São pessoas forçadas a viver dentro das 2,6 mil cadeias. Cumprem pena mesmo sem condenação.
A maioria está trancada há pelo menos quatro anos, 48 meses ou 192 semanas. Espera a assinatura de um juiz para decidir o rumo: vida em liberdade ou no exército oferecido pelo Estado brasileiro aos 80 grupos criminosos que controlam presídios.
Semana passada foram lembrados no plenário do Supremo pelo juiz Luís Roberto Barroso: “Justamente porque o sistema é muito ruim, perto de 40% dos presos do país são presos provisórios. Muitos, sobretudo os pobres, já estão presos desde antes da sentença de primeira instância.”
Debatia-se um aspecto da Constituição, a prisão após condenação em segunda instância. O tema é de interesse legítimo, imediato de 1.799 pessoas encarceradas (0,21% do total) por desvio de dinheiro público (1.161), corrupção ativa (522) e passiva (116). É a quarta revisão do STF em uma década.
É a mesma Constituição que assegura “a todos” o direito à “razoável duração do processo” e “a celeridade de sua tramitação”. No entanto, 337 mil estão lá, provisoriamente, nos porões do Judiciário.
“Pobre não corrompe, não desvia recursos públicos, nem lava dinheiro”, comentou Barroso, realçando a ausência de nexo num sistema que mantém pobres aos magotes aprisionados nas trevas — centenas de milhares, sem sentença—, enquanto conduz um punhado de ricos condenados à vida iluminada pela liberdade até o último recurso em Brasília, com chance de prescrição do crime (quase mil em dois anos).
O Judiciário brasileiro precisa resolver a equação da própria ineficácia. Até porque, já é um dos mais caros do planeta. Custa 1,3% do Produto Interno Bruto, nível de gasto só encontrado na Suíça, cuja população é 25 vezes menor e a renda cinco vezes maior.
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ATREVIMENTO PRESIDENCIAL

Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

‘Atrevimento parece não encontrar limites’, diz Celso de Mello sobre vídeo de Bolsonaro

BRASÍLIA – O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, disse em nota nesta segunda-feira, 28, que “o atrevimento presidencial parece não encontrar limites”, ao comentar um vídeo publicado nas redes sociais do presidente Jair Bolsonaro que mostra o ex-deputado federal do PSL como um leão encurralado por hienas. Na lista das hienas que atacam o leão Bolsonaro, estão o STF, a Organização das Nações Unidas (ONU), o seu partido PSL e siglas de oposição – entre as quais o PT e o PC do B –, além da imprensa.

“É imperioso que o senhor Presidente da República – que não é um ‘monarca presidencial’, como se o nosso País absurdamente fosse uma selva na qual o Leão imperasse com poderes absolutos e ilimitados – saiba que, em uma sociedade civilizada e de perfil democrático, jamais haverá cidadãos livres sem um Poder Judiciário independente, como o é a magistratura do Brasil”, disse o decano, em nota.

O vídeo foi postado nas redes sociais de Bolsonaro e apagado depois. No filme, o rei da selva se alia a outro leão, chamado “conservador patriota”, parte para o contra-ataque e vence seus inimigos. “Vamos apoiar o nosso presidente até o fim. E não atacá-lo. Já tem a oposição para fazer isso!”, dizem os letreiros sobrepostos às imagens da fuga.

“O atrevimento presidencial parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar no exercício de suas altas funções, pois o vídeo que equipara, ofensivamente, o Supremo Tribunal Federal a uma ‘hiena’ culmina, de modo absurdo e grosseiro, por falsamente identificar a Suprema Corte como um de seus opositores”, afirmou Celso de Mello.

Nos bastidores, a autoria do vídeo foi atribuída ao vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), filho zero dois do presidente, que gerencia as publicações do perfil do chefe do Executivo, nas redes sociais.Desde que Bolsonaro assumiu o Palácio do Planalto, Celso de Mello tem se tornado o principal defensor do Supremo de ataques do governo e em defesa da liberdade de expressão.

“Esse comportamento revelado no vídeo em questão, além de caracterizar absoluta falta de ‘gravitas’ e de apropriada estatura presidencial, também constitui a expressão odiosa (e profundamente lamentável) de quem desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”, frisou o decano.
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MACRON, MACRI...

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
Quem atacou primeiro, Bolsonaro ou Macron, Bolsonaro ou Alberto Fernández? Cada um tem sua versão, mas o resultado é que as relações do Brasil com a França se deterioraram e com a Argentina têm um horizonte sombrio. E para que? Quem lucra com isso?
O presidente Jair Bolsonaro não deveria se meter nas eleições da Argentina, apoiando um candidato já então virtualmente derrotado e destratando a chapa favorita e afinal vitoriosa. Nem por isso Fernández deveria, já no primeiro instante, lançar o “Lula livre”. Uma provocação boba, além de um desrespeito ao Judiciário brasileiro. E a guerra continua.
Brasil e Argentina são parceiros inseparáveis, gostem ou não seus presidentes. Juntos, lideram o Mercosul, somam dois terços do território, da população e da economia de toda a América do Sul e, apesar de muito menor do que os gigantes China e EUA, a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial brasileiro, logo atrás dos dois. Crises nesses casos cruzam fronteiras.
As ondas na América do Sul são historicamente coordenadas: o populismo a la Peron e Vargas, as ditaduras militares monitoradas por Washington no Uruguai, Paraguai, Argentina, Brasil e Chile, a redemocratização com hiperinflação de Alfonsin e Sarney, a estabilização econômica (ou “neoliberalismo), liderada pelo Brasil e disseminada por toda parte.
A onda seguinte foi um tsunami, o “bolivarianismo” de Hugo Chávez na Venezuela, que arrastou Bolívia, Equador, Argentina, Uruguai e, rapidamente, também Paraguai, mas deixando de fora Colômbia, Chile e Peru, que se mantiveram fiéis à abertura do mercado, à desestatização e à globalização.
Com a debacle venezuelana e os desvios da esquerda no Brasil, os “neoliberais” pareciam o paraíso, soprando ventos conservadores que, de certa forma, reforçaram e vitória de Bolsonaro na potência regional. O paraíso, porém, não era tanto assim e o Chile, sempre citado como exemplo de estabilidade política, econômica e social, virou um verdadeiro inferno com o governo Sebastián Piñera. A classe média, e não só ela, tinha sido expulsa do paraíso.
A guinada à direita, desde o Cone Sul até os Países Andinos, excluía a Venezuela, conferia ares pragmáticos à Bolívia de Evo Morales e deixava o México falando sozinho à esquerda no Norte. Entretanto, não parece ter ido muito longe. E o que se tem é que a hegemonia da esquerda foi fugaz com Chávez, Lula, Kirchner, Mujica, Lugo e Rafael Correa e, de certa forma, Bachelet. E a direita não se consolidou com Bolsonaro, Piñera e afins.
Há uma polarização em que ninguém tem razão, ninguém ganha, todos perdem. Assim como o Brasil não enxerga vida além de Lula e Bolsonaro, o subcontinente se digladia entre uma esquerda populista e oportunista e uma direita mesquinha, atrasada, reacionária. Que tal tentar equilibrar responsabilidade fiscal com inclusão social? Rigor com generosidade? Deveres para os poderosos e direitos para os mais desvalidos?
Enquanto a guerra ideológica corre solta, o maior problema do Brasil e dos países à sua volta continua sendo o mesmo, onda atrás de onda, regime atrás de regime, governo atrás do governo, líder atrás de líder: a desigualdade social. A maioria parece conformada, mas costuma produzir surpresas. As lições do Chile são preciosas para todos os vizinhos da região, particularmente para Bolsonaro e Paulo Guedes.
Alerta
Bolsonaro fala em criar o Partido da Defesa Nacional, para chamar de seu e abrigar a leva de majores, delegados, generais e capitães do PSL. Nada poderia ser pior para as Forças Armadas, que não estão sabendo avaliar devidamente os riscos da contaminação política dos quartéis. Isso nunca deu certo.
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AS PRAIAS A PERIGO

Cacá Diegues, O GLOBO
O Brasil se encontra radicalmente dividido entre duas grandes formas antagônicas de pensar o país. De um lado, pseudo-conservadores que pretendem restaurar aqui um passado que nunca tivemos. De outro, pseudo-revolucionários projetam nosso futuro para amanhã de manhã. De preferência, bem cedinho. Nada disso foi possível em nenhuma nação do mundo, de qualquer hemisfério.
O caso do óleo nas praias do Nordeste nos coloca diante dessa polarização das duas alienações da realidade. Já se falou muito, de um lado, de inimigos externos que teriam provocado o desastre. Do outro, condena-se as autoridades incapazes de tomar providências. As duas reações são apenas culpabilizadoras e irresponsáveis quanto às consequências do acidente. Repetidas pelos alto-falantes da mídia e das redes sociais, elas eludem o mais importante.
No dia 4 de setembro, chegaram as primeiras manchas de óleo, trazidas pelas ondas ao litoral de Pernambuco. Elas não causaram estrago paulatino, e sim uma destruição imediata de todo o litoral nordestino e do que ele representa para aquela população. Não só o envenenamento do que se tira do mar e das areias, o alimento regular e diário, além do turismo que despenca. Mas também o significado natural e simbólico daquelas praias para a população local. As praias do Nordeste não são apenas um orgulho do Nordeste; elas são uma reserva de energia para os sonhos dos nordestinos. A população local as usa com proveito físico, e ainda como símbolo poderoso de seu valor.
Poucos dias depois de chegar a Pernambuco, o óleo já se espalhava do Maranhão à Bahia. Mas o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, não estava nem aí. Literalmente. Ele tinha ido para os Estados Unidos e Europa, parece que para explicar o fogo na floresta. Quando o ministro voltou, fez duas rápidas “vistorias” nas praias, de poucos minutos cada uma. E foi para a televisão contar ao país o que estava acontecendo, como se estivesse de fato a par de tudo. Na televisão, o ministro tentou, como faz sempre esse governo, ideologizar a questão, apesar de o desastre ser ambiental, no campo dele.
Primeiro, botou a culpa num navio de ONG internacional, como se ela estivesse praticando terrorismo contra o Brasil. Remontou um vídeo para fazer prova, e foi prontamente desmoralizado pelos acusados que mostraram, em sua rede social, o vídeo original. O ministro insinuou também que, como o óleo era comprovadamente de origem venezuelana, era à Venezuela que devíamos, no mínimo, protestar. Só faltou declarar guerra ao país lá do norte, tão distante de nós e de nossas praias. Fiquei imaginando que, se em vez de óleo, as praias do nordeste se enchessem, por um absurdo qualquer, de bananas, deveríamos imediatamente declarar guerra aos macacos de todo o mundo.
Eu também não gosto do Maduro, mas nem por isso ia sair por aí acusando o país dele. Sobretudo depois de nossa própria Marinha de Guerra ter descoberto cientificamente que haviam passado 30 navios, de dez diferentes nações, pela região do mar em que deve ter começado o vazamento. O ministro ainda parece ter esquecido que o Plano de Contingência para essas situações tinha sido abandonado pelo presidente, quando este decidiu eliminar o comitê que o montou. Vários Conselhos Federais, como aquele, foram desmontados para “evitar o aparelhamento do serviço público”.
Há 58 dias, o óleo torna as praias do Nordeste inviáveis e infectas, capazes de aborrecer a população e provocar doenças. O ministro do Meio Ambiente e grande parte do governo federal nada fizeram em benefício das praias e das vítimas, a não ser insinuar lorotas, fofocas de conspirações inventadas para distrair nossa atenção do que é de fato importante. A direita mais significativa do século passado, o nazismo, usava essa “descoberta” de inimigos externos, como pretexto para unir a população ingênua em torno de sua autocracia.
Segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, a 10ª Brigada de Infantaria, sediada em Pernambuco, participará dessa dramática tentativa de limpar as praias sujas de óleo. Em 12 de setembro, logo no começo do desastre, a Petrobras já interferira, por sua própria conta, recolhendo, segundo a empresa, 280 toneladas de óleo. O Exército e a Marinha, que são sempre convocados nesses momentos críticos, já recolheram, junto com o Ibama, mais de mil toneladas da sujeira. Pescadores, jangadeiros e outros colaboradores anônimos de cada local são voluntários emocionantes e emocionados, nessa luta para recuperar a beleza, a grandeza, o sossego e os sonhos daquelas magníficas praias.
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GOVERNA PARA UM SÓ TERÇO

Bernardo Mello Franco, O GLOBO

Bolsonaro é o primeiro a governar para só um terço’ , diz cientista político que preside o Cebrap

RIO – Jair Bolsonaro é o primeiro presidente que governa pensando em apenas um terço do eleitorado , na avaliação do filósofo e cientista político Marcos Nobre . Presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento ( Cebrap ), Nobre vê o protagonismo do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) como chave para entender a radicalização do governo no primeiro ano de mandato. O racha alimentado pelo clã Bolsonaro no PSL é, segundo Nobre, a etapa de um projeto político mais amplo para 2022.

Por que Bolsonaro briga até com o próprio partido?
Bolsonaro, na verdade, antecipou a corrida presidencial em três anos. A verdadeira eleição para ele é a de 2022. Agora ele precisa estar em campanha o tempo todo para transformar em algo orgânico, com substância, a confluência de fatores que o elegeu no ano passado. Seu primeiro mandato, portanto, é de destruição e enfrentamento das instituições

O sistema aprendeu a lidar com o presidente?
Bolsonaro surfou uma onda de descrédito institucional partilhada pela base mais fiel do seu eleitorado, que corresponde a 33% da população, segundo as pesquisas. Essa é a base que ele quer manter até 2022. Ele se tornou o primeiro presidente que governa para só um terço do Brasil. O sistema político tenta entrar nos espaços que Bolsonaro deixa em aberto, e ele deixa porque são temas que não mobilizam tanto este terço. A Previdência é um ótimo exemplo disso. Se os espaços são ocupados e Bolsonaro ainda fatura com isso, melhor ainda para ele.

Esta postura não traz problemas ao governo?
Bolsonaro tem um objetivo eleitoral que não inclui, agora, conquistar a maioria. Isto exime Bolsonaro de governar de fato. Todo mundo reclama que não há articulação política. Mas não é para ter, porque não é este o objetivo. Ele monitora a parte mais ativa de sua base e toma as decisões. Quando algo ataca seus interesses, como a questão da CPMF, ele recua.


É possível que este se torne o novo normal da política brasileira?
Acho espantoso o sistema político estar disposto a correr um risco desse tamanho. Todo mundo acha que a estratégia do Bolsonaro é insustentável, que a economia não vai andar, e por aí vai. E quem garante que ele perde em 2022? Se o Bolsonaro consegue a reeleição, aí ele tem margem para um governo verdadeiramente conservador ou autoritário.

Qual é o papel que Flávio, Carlos e Eduardo Bolsonaro exercem no projeto liderado pelo pai?
A radicalização do governo passa pelo afastamento do Flávio, por estar sob investigação. Ele é o filho com perfil mais próximo da política tradicional. Sua inutilização deu projeção ao Eduardo e à ideia de criar um movimento conservador no Brasil, inspirado nos EUA. Isso é uma estratégia de hegemonia com verniz de normalidade, mas é algo que não é normalizável.

Por quê?
Porque não existe comparação possível entre Trump e Bolsonaro. Trump nunca apoiou um regime ditatorial nos Estados Unidos, que simplesmente nunca existiu. Imagine um conservador americano insinuar o fechamento da Suprema Corte, como fazem aqui com o STF? Pode haver uma impressão de que Bolsonaro está sendo contido pelas instituições, mas o que ocorre é uma autocontenção, já que ele só governa para um terço. O próximo passo, para ele, é transformar este terço em um movimento. As eleições de 2020 são uma etapa necessária neste projeto, por isso a ideia é assumir o comando do partido.

As contradições do governo, por exemplo, no caso das candidaturas laranjas do PSL, podem desgastá-lo com seu eleitorado mais fiel?
É de fato contraditório o discurso de Bolsonaro, mas ele não tem oposição real. A eleição dele, como político antissistema, trouxe a reboque um descrédito da própria ideia de oposição. Quem discorda dele é visto como “sistema”. Ou seja, não tem credibilidade de saída. Há um impasse surgido pelo desenho das eleições de 2018. Diante da crise econômica e institucional que se vivia, as opções oferecidas foram manter as coisas como estavam ou quebrar tudo. O eleitorado resolveu quebrar tudo.

Os militares perderam espaço no governo?
Os militares tentam fazer o governo funcionar. Só que não são um partido. É muito difícil, portanto, dar uma unidade de políticas de saúde, econômicas, de educação, e por aí vai. Este é o primeiro governo que não se obriga a ser coerente. O ministro Paulo Guedes (Economia) pode se aliar ao (presidente da Câmara, Rodrigo) Maia e brigar com ele na semana seguinte, como já ocorreu. É um governo feudalizado, com disputas por espaço, o que faz com que não tenha uma cara, a não ser o fator antissistema. E isso dialoga justamente com o terço da população mais fiel ao Bolsonaro. Por isso o primeiro mandato é pautado pelo enfrentamento institucional.

As milícias digitais pró-governo são influentes nesta disputa por narrativas?
Minha preocupação é que as pessoas pensem que a manutenção desses 33% do eleitorado se dá só com mentira, manipulação de pessoas. Claro que existem robôs, tem algo artificial. Mas existe também uma mudança radical de fazer política. Bolsonaro se aproximou de pessoas conectadas no mundo digital, mas que se sentiam excluídas da política há muito tempo. Bolsonaro, o Steve Bannon (marqueteiro que atuou na campanha do americano Donald Trump), eles sabem operar nisso. As pessoas sentem, quando entram nessa corrente, que produzem efeitos reais. Que estão sendo ouvidas pelo líder. É muito importante não subestimar a parte viva dessas redes.
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