sexta-feira, 31 de março de 2023

REFÉNS DA COLISÃO

Dora Kramer, Folha de S. Paulo

De volta à cena, senão dos crimes ainda a serem juridicamente configurados, mas ao cenário da política nacional onde não há sinal de pacificação à vista, Jair Bolsonaro chegou para confrontar. E o PT, na voz da presidente do partido, já mostrou que topa a briga. "Tá voltando, genocida?", provocou Gleisi Hoffmann na véspera do desembarque do antagonista.

Armado o ringue, o Brasil segue prisioneiro das narrativas conflagradas. Duas forças opostas que se retroalimentam numa dinâmica de sinais trocados, que sequestra o debate e faz dos brasileiros reféns da colisão permanente. A conferir se o presidente Luiz Inácio da Silva entrará no embate ou se deixará a tarefa para porta-vozes. Na essência, dá no mesmo, na escalação mútua do malvado predileto.

Os combatentes divergem no conteúdo, mas na forma se parecem. Cultuam a mitologia do herói, são intolerantes ao contraditório, têm talento para criar distrações, alimentam fantasias persecutórias, nutrem rancores, exibem-se onipotentes, não permitem que lhes façam sombra, profetizam como quem descobriu a pólvora e enxergam no adversário um inimigo a ser aniquilado.

Há outras semelhanças. Fiquemos nas mais evidentes a fim de não atrair a ira dos arautos da tese da falsa equivalência. As descritas acima bastam para desenhar o traço de união que demonstra o atrativo que as exorbitâncias exercem sobre a conduta do eleitor.

Atraentes o bastante para superar o senso de moderação visto nas pesquisas. Vejam a coincidência. Em 2021, a consultoria Quaest apontava que 57% preferiam candidatura alternativa a Lula ou Bolsonaro. Em 2023, o Ipec apontou também 57% desejando o mesmo para a próxima eleição presidencial.

O apreço ao centro não se viu nas urnas em 2022. Tampouco se vê agora, embora a maré possa virar se os extremos seguirem mais ocupados em criar caso, apostando no medo e na rejeição.

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ATÉ NOS ÁLIBIS FAJUTOS BOLSONARO IMITA TRUMP

Andrei Meireles, OS DIVERGENTES

Se não fosse o fuso horário pareceria apenas mais um amigável pingue pongue. Na manhã dessa quinta-feira (30), depois de um discreto desembarque em Brasília, no retorno de sua fuga na véspera da posse de Lula, Jair Bolsonaro, em um evento reservado para políticos e amigos na sede do PL, elogiou a oposição no Congresso e afirmou que o governo petista “não vai fazer o que bem quer do futuro da Nação”.

Para fiéis que interpretam suas falas como orientações messiânicas, e políticos oportunistas que aproveitam disso, o recado nessa fala algo vaga é que Bolsonaro assume a liderança da oposição e qualquer ação nos inquéritos judiciais contra ele será interpretada como perseguição política. Foi a primeira vez que Bolsonaro se antecipou a Donald Trump nos malabarismos para iludir o séquito de seguidores e tentar engabelar a Justiça.

Horas depois, o Grande Júri de Nova York aceitou uma denúncia criminal contra Trump por suborno à atriz pornô Stormy Daniels, pago com dinheiro da sua campanha eleitoral em 2016, para que ela não revelasse um caso que tiveram anos antes. Assim, ele se tornou o primeiro ex-presidente dos Estados Unidos a responder a uma ação criminal. A sua reação foi se declarar vítima de perseguição política por ser mais uma vez candidato a candidato à Presidência da República.

Nesse imbróglio, Trump tenta se esquivar de uma denúncia que parece bem fundamentada, mas é periférica em sua folha corrida. Ele tem contas bem maiores a prestar à Justiça, como a incitação a sua insana militância para invadir o Capitólio numa tentativa de melar o resultado da eleição presidencial, vencida pelo presidente Joe Biden.

Bolsonaro também tem encrencas a enfrentar em inquéritos nos quais está muito enrolado antes mesmo de prestar contas sobre a sua participação na tentativa de golpe no dia 8 de janeiro. Trump lá e Bolsonaro aqui tentaram virar a mesa da democracia, crimes muito graves.

Como Trump lá, Bolsonaro aqui terá que responder antes em outros inquéritos. Na terça-feira (4), segundo seus advogados, Trump comparecerá à Justiça de Nova Iorque, onde será fotografado e fichado como outros denunciados. No dia seguinte, Bolsonaro vai depor na Polícia Federal sobre as milionárias joias recebidas do governo saudita.

Nessa quinta-feira, na maior cara de pau, dando o dito por desdito, ele finalmente confessou o que todo mundo já sabia: as joias apreendidas pela Receita Federal, avaliadas em R$ 16,5 milhões, eram mesmo um presente para Michele Bolsonaro, que até hoje finge que não sabe do que se trata. 

Depois de ter movido toda a máquina governamental no apagar de seu governo, com inúmeras carteiradas, pra tentar tirar no grito as milionárias joias apreendidas pela Receita Federal no Aeroporto de Cumbica, inclusive o fascinante colar cravejado de diamantes, Bolsonaro tentou emplacar uma nova cascata. Negou que tenha tentado resgatar o presente “na mão grande”. “Se eu quisesse camuflar isso aí, jamais descobririam isso aí”.

Quanto os demais objetos, apresentou uma justificativa que somente os mais incautos acreditarão. “Eles têm coisas que nós não temos: três esposas, por exemplo. Eles são muito bem-sucedidos. São riquíssimos, e eles procuram agradar as pessoas”. Cascata pra corar até os fiéis bolsonaristas.

Trump e Bolsonaro são pré-candidatos nas próximas sucessões presidenciais. Ambos têm antes que ultrapassar obstáculos judiciais e políticos. Fraudes fiscais e tentativa de burlar o resultado eleitoral na Geórgia perseguem Trump. Tem no seu encalço no partido Republicano o governador da Flórida, Ron DeSantis.

Antes de liderar a oposição Bolsonaro também terá que se desvencilhar de outros problemas com a Justiça. Sem foro privilegiado e a proteção do procurador-geral da República, Augusto Aras, que o livrou de muitos problemas nos últimos quatro anos, poderá responder a uma penca de crimes na Justiça Comum. Tais como a acusação de divulgar notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 (INQ 4888); o vazamento de dados sigilosos de ataque ao TSE (INQ 4878); Inquérito das fake news, sobre ataques e notícias falsas contra ministros do STF (INQ 4781) e a acusação de interferência na Polícia Federal (INQ 4831).

Já no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pesam contra ele pelo menos 16 ações sobre abuso de poder político, abusos de poder econômico, político e uso indevido dos meios de comunicação social. Basta a condenação em uma delas para que Bolsonaro fique inelegível. Além disso, liderar a oposição dá trabalho, coisa a qual Bolsonaro nunca foi muito afeito.

Mas o entorno de Trump e Bolsonaro acredita ou se ilude na avaliação de Steve Bannon, guru de ambos, que diz que, em vez de enfraquecê-los, as acusações vão fortalecê-los. Parece delírio.

Mas vale conferir.

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TRUMP É INDICIADO

Do g1

Trump indiciado: o ex-presidente pode ser algemado? Veja o que deve acontecer nos próximos dias

Trump teria pagado US$ 130 mil (cerca de R$ 682 mil na cotação atual) à atriz pornô Stormy Daniels nas semanas prévias às eleições de 2016, para que ela se mantivesse em silêncio sobre um suposto relacionamento extraconjugal.

O ex-presidente Donald Trump foi indiciado por um grande júri da cidade de Nova York na quinta-feira (30) em decorrência de um caso relacionado com o pagamento para comprar o silêncio de uma atriz pornô.

Só se saberá a natureza dos crimes pelos quais Trump é acusado no momento em que ele for apresentado. Pelo histórico do caso, espera-se que ele enfrente as seguintes acusações:

Os próximos dias

Dada a proeminência do indiciado, ainda há dúvidas sobre o que deve acontecer nos próximos dias.

O Ministério Público liderado pelo promotor Alvin Bragg já entrou em contato com os defensores legais de Trump para negociar a forma pela qual o ex-presidente vai se entregar.

Susan R. Necheles, uma das advogadas de Trump, disse ao "New York Times" que Trump deve se entregar na na terça-feira (4) para ser indiciado na Suprema Corte Estadual de Manhattan.

Geralmente, os réus que se apresentam para o indiciamento em frente a um juiz são algemados. Pode ser que Trump, por ser ex-presidente, não passe por isso.

"Isso não tem precedentes e não há um procedimento definido", disse o ex-agente do Serviço Secreto americano Robert McDonald, agora professor de justiça penal na Universidade de New Haven.

Dada à proeminência de Trump e sua candidatura em curso às eleições presidenciais de 2024 (ele já lançou sua pré-candidatura), é provável que o juiz não considere que o ex-presidente traga risco de fuga, e Trump poderá ir embora depois do procedimento, mediante o pagamento de uma fiança, se necessário.

Se ele não cooperar

No entanto, alguns acreditam que o ex-presidente pode se negar a se entregar, desafiando o promotor distrital de Manhattan a detê-lo.

"Alguém pode imaginar que Trump esteja querendo fazer isso", disse o ex-promotor Shan Wu. "Isso é algo que o escritório do promotor Alvin Bragg estaria temendo".

Trump é pré-candidato a presidente pelo Partido Republicano. Ele pode tentar usar o indiciamento para antagonizar com os adversários políticos (ele já disse que o Bragg está a serviço de Joe Biden).

Se o ex-presidente fizer isso, ele pode se recusar a deixar o estado da Flórida, onde ele vive. Nessa circunstância, o promotor teria que pedir uma extradição para a Justiça da Flórida.

Na Corte de Nova York, Trump deverá ser acompanhado o tempo inteiro por agentes do Serviço Secreto, o órgão responsável pela segurança de presidentes e ex-presidentes dos EUA.

Polícia a postos

Antes do indiciamento, o ex-mandatário de 76 anos afirmou que poderia haver “morte e destruição” com o indiciamento criminal.

Todos os agentes de polícia de Nova York que atuam em patrulhas precisarão estar preparados para serem convocados depois do indiciamento, de acordo com um comunicado da polícia revelado pelo "New York Times".

O texto afirma que todos os membros devem estar preparados para mobilização a qualquer momento.

Relembre o caso

Trump teria pagado US$ 130 mil (cerca de R$ 682 mil na cotação atual) à atriz pornô Stormy Daniels nas semanas prévias às eleições de 2016, para que ela se mantivesse em silêncio sobre um suposto relacionamento extraconjugal.

Esse pagamento não seria ilegal, mas na prática o dinheiro foi justificado como honorário advocatício para um dos advogados de Trump, Michael Cohen —é essa tentativa de esconder a natureza do pagamento que pode ser considerada criminosa; os promotores afirmam que foi uma falsificação de registro comercial.

Além disso, o pagamento indireto também seria uma tentativa de esconder uma relação dos eleitores, afirmam os promotores.

O que é indiciamento?

Ser indiciado na Justiça dos EUA significa que uma pessoa foi acusada formalmente de um crime por um júri popular ou por um promotor público. O indiciamento é o resultado de uma investigação policial ou do FBI que reuniu evidências suficientes para sustentar a acusação. Ser indiciado não significa que a pessoa é culpada, mas apenas que há motivos para levá-la a julgamento.

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MARCO FISCAL : AGORA É QUE VEM O MAIS DIFÍCIL

Vera Magalhães, O Globo

Primeiro teste foi bem-sucedido para Haddad, mas etapas da aprovação e da execução da proposta serão bem mais complicadas para o governo

Fernando Haddad se saiu bem no primeiro ato de dar à luz a nova regra fiscal, marco inicial do governo Lula 3, pois vai ditar sua capacidade de cumprir promessas eleitorais sem estourar o caixa. Em resumo, seu sucesso ou fracasso.

Esse primeiro teste já envolvia alguns desafios bem significativos: que a proposta fosse aceita pelo famigerado mercado, que não fosse detonada nas redes sociais pelo PT, que fosse bem recebida na primeira reação pelos líderes no Congresso e que arrancasse uma piscadela do Banco Central.

Tudo se concretizou e, como bônus, a sua apresentação ainda teve o condão de tirar os holofotes da volta de Jair Bolsonaro, tratada com exagerada atenção inclusive por parte da imprensa. Bingo, cartela cheia.

Escrevi sobre os aspectos, por assim dizer, políticos, da apresentação da nova âncora fiscal no blog ainda nesta quinta-feira.

O problema, para Haddad, é que tudo isso foi apenas o ensaio geral, e os verdadeiros testes para a proposta e para ele ainda nem começaram.

A começar do fato de que o projeto de lei complementar ainda não foi redigido. Portanto, as boas intenção, quando colocadas preto no branco ainda podem conter inconsistências não detectadas na primeira audição.

Não bastasse isso, essa proposta será virada de ponta cabeça e feita de gato e sapato quando chegar no Congresso. Dos lobbies poderosos dos tais setores que ainda não pagam impostos e, segundo a Fazenda, passarão a pagar a ponto de propiciar o espetáculo do crescimento da arrecadação à ideia que sempre acompanha deputados e senadores de vender dificuldades na discussão de matérias para colher facilidades na forma de concessões de emendas, cargos e outras benesses.

Passos como a definição do relator vão ditar a maior ou menor dificuldade nesse tortuoso tráfego da proposta pelo Legislativo. Antes de se lançar a ele, aliás, convém ao governo usar outras matérias menos capitais para fazer o que o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, chama com propriedade de “teste de painel”. Ou seja: saber se o governo dispõe ou não de maioria, uma base para chamar de sua.

Digamos que Haddad, como num videogame, passe também por essa “fase”, com o auxílio, e não boicote, de seu partido, dos demais partidos aliados, e da ala política do governo. Nesse caso, o arcabouço será uma realidade e passará a ser executado, o que traz, de todos, o maior desafio.

São muitos os pontos de atenção apresentados nesse primeiro momento, a despeito da enorme boa vontade geral na acolhida da ideia de Haddad de que o governo será fiscalmente responsável, mas vai cumprir a plataforma de campanha de Lula de promover a redução da desigualdade social e o crescimento mais robusto da economia.

Um dos principais sinais de incerteza é quanto à ideia de que será possível mesmo se gastar menos do que se arrecada sem que fique claro de onde virá essa explosão de receita. E tendo tantos gastos fora de tetos e outros que crescerão exponencialmente, como aqueles com a Previdência.

Os próximos dias serão tensos para a equipe econômica, porque surgirão os cálculos mais detalhados a partir do que foi apresentado, a negociação com o Congresso ganhará sua dinâmica própria e sempre intensa, e os setores interessados começarão a se mobilizar para não arcar com a conta da expansão de gastos sociais e investimentos.

Haddad parece contar com um trunfo que será crucial e que chegou a ser colocado em dúvida nos últimos meses em que ele ficou sob fogo amigo: o aval de Lula. Ao liberar a proposta para a divulgação pública, depois de diluir no tempo a promessa de superávit primário, o presidente finalmente arbitrou a disputa interna em favor da equipe econômica.

Mas nada assegura que ele não vá promover novos rounds de disputa pública nas próximas etapas da matéria rumo à aprovação final. Esta quinta-feira funcionou como um bom teste de resiliência para o ministro, mas os mais difíceis ainda virão nos próximos capítulos.

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ANISTIA, AINDA QUE TARDIA

Bernardo Mello Franco, O Globo

Comissão começa a exorcizar legado do bolsonarismo, que tentou culpar vítimas por violências que sofreram

Num dia marcado pelo retorno de Jair Bolsonaro e pela apresentação do novo marco fiscal, a notícia passou quase despercebida. Não deveria. Depois de quatro anos, o Estado brasileiro voltou a reconhecer crimes praticados pela ditadura militar. Foi a retomada da Comissão de Anistia, que havia sido sequestrada pela extrema direita no governo passado.

Com nova composição, o órgão promoveu ontem os primeiros julgamentos de 2023. A sessão virou uma catarse coletiva. “São processos doloridos, de sofrimento, mas que precisam vir à tona”, avisou o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, André Carneiro Leão. Seguiram-se relatos de perseguições, prisões ilegais e torturas praticadas pelo regime autoritário.

Herdeiro dos porões, Bolsonaro entregou a comissão a notórios defensores do arbítrio, como o general Luiz Eduardo Rocha Paiva. Capturado, o órgão negou 95% dos pedidos de anistia. Ontem quatro desses processos foram revistos.

“Gostaria de avisar que vocês estão à frente de uma terrorista sanguinária”, ironizou a professora Cláudia de Arruda Campos, de 74 anos, que esperou os últimos 15 pelo julgamento. Em 1968, ela foi perseguida, presa e forçada a deixar o magistério. Militava na Ação Popular, organização de esquerda que não atuou na luta armada. Mesmo assim, foi chamada de “terrorista” por Rocha Paiva. “A arma mais poderosa que já peguei foi esta”, respondeu ontem, apontando para o microfone.

A comissão também reconsiderou o caso do deputado Ivan Valente, de 76 anos. Preso em 1977, ele foi brutalmente torturado no DOI-Codi do Rio. Os agentes o submeteram à chamada cadeira do dragão, método em que a vítima era amarrada e submetida a choques elétricos na cabeça, nos membros e nos órgãos genitais. No ano passado, Bolsonaro debochou das violências sofridas pelo rival.

A Constituição afirma que o Estado deve identificar e indenizar os cidadãos perseguidos por razões políticas. A tarefa cabe à Comissão de Anistia, criada no governo Fernando Henrique Cardoso. O bolsonarismo aparelhou o órgão e distorceu sua função, tentando culpar as vítimas pelas perseguições que sofreram.

Reconhecer os crimes da ditadura não é só um acerto de contas com o passado. “Os atos golpistas de 8 de janeiro foram mais uma prova cabal de que o esquecimento e o silenciamento cobram um preço altíssimo”, disse ontem o ministro Silvio Almeida. Boa reflexão para um 31 de março, aniversário do golpe de 1964.

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AGORA, SIM, O GOVERNO LULA MOSTRA SUA POLÍTICA FISCAL

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

Falta ainda combinar com os beques. O governo precisa mandar o texto da Emenda Constitucional para o Congresso e convencer deputados e senadores de que a proposta é eficaz

Responsabilidade fiscal com responsabilidade social, esse é binômio da política econômica do governo Lula, reiterado, ontem, pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao lado da ministra do Planejamento, Simone Tebet. A tradução técnica dessa política é o novo “arcabouço fiscal”, como vem sendo chamado o mecanismo adotado para enfrentar o problema do deficit público com gradualismo, sem um choque fiscal que jogaria o país numa crise social ainda maior do que a que já existe. A nova regra fiscal substitui o teto de gastos, a emenda constitucional que limita o aumento de despesas à inflação do ano anterior, que caducou durante a pandemia de covid-19.

O anúncio foi feito no Congresso, tendo boa repercussão no mercado e na opinião pública. Entre os políticos da oposição, a primeira reação foi deixar a proposta decantar no mercado, para aprová-la ou não, dependendo da reação. A proposta prevê metas de superavit primário flexíveis, com uma banda de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) de ajuste para cima ou para baixo. Segundo Haddad, essa margem de manobra permitirá o fechamento do exercício fiscal do Orçamento da União com mais segurança, sem medidas atabalhoadas. A adoção de um mecanismo anticíclico daria mais flexibilidade para a gestão da economia em conjunturas radicalmente distintas, ao permitir correções de rota em momentos de necessidade.

Falta ainda combinar com os beques. O governo precisa mandar o texto da Emenda Constitucional para o Congresso e convencer deputados e senadores de que a proposta é eficaz. Também precisa superar a má vontade dos agentes econômicos, o “instinto animal” que faz os empresários deixarem de investir, temendo um desarranjo econômico.

No governo, o assunto também não foi pacífico, refletindo a queda de braços entre o ministro Haddad e a cúpula petista, principalmente a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, que gostariam de uma política mais expansionista. Com o apoio de Lula, Haddad venceu a queda de braços.

Agora, a resistência vai mudar de lado. Enquanto o governo se unifica, os setores que não querem arcar com os custos da inclusão dos mais pobres no Orçamento da União vão se mobilizar. Bolsa Família, aumento real do salário mínimo e ampliação de gastos com a educação e a saúde, principalmente, vão consumir boa parte das receitas disponíveis. Ao anunciar uma ampliação da base de arrecadação de impostos, Haddad remeteu essa disputa para a reforma tributária.

É a política

O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, recebeu a proposta de forma positiva. É bom sinal, porque a taxa de juros de 13,75%, mantida pela instituição, vem sendo alvo de críticas públicas do presidente Lula e dos seus aliados. Se o novo arcabouço for aprovado e der certo, os juros poderão baixar. Por força dos mandatos que receberam, Campos Neto forma com o procurador-geral da República, Augusto Aras, a dupla de altas autoridades sobreviventes do governo Bolsonaro.

O nome já diz, economia política. Apesar de se basear em números e muita econometria, a economia não é uma ciência exata. Obedece a algumas regras universais aceitas por todos, mas não existe unanimidade. Há muita controvérsia sobre a situação estrutural da economia brasileira, principalmente em relação ao deficit público e à política de juros. Entretanto, cada modelo econômico escolhe perdedores e ganhadores. Quando Lula resolve contemplar em seu projeto de governo a grande massa de eleitores com renda até 2 salários mínimos, que garantiram sua eleição, faz uma redistribuição da renda nacional.

Os economistas liberais não acreditam no sucesso dessa política, que consideram populista. Preferem preservar o chamado “mais do mesmo”: controle de gastos, meta de inflação e câmbio flutuante. Responsável pelo controle da inflação, Campos Neto é um neoliberal e não vacila, prefere os juros altos para controlar a inflação, mesmo que isso venha a provocar recessão.

Desenvolvimentistas pensam diferente. Como vivemos num país subdesenvolvido, segundo esses economistas, a política econômica exige soluções criativas, que levem em conta as desigualdades sociais e regionais, o atraso tecnológico, a ausência de crédito e financiamento e a posição subordinada na hierarquia monetária. Celso Furtado, o papa dos nossos desenvolvimentistas, dizia que o subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento econômico, mas uma construção histórica e social. O atraso e a iniquidade social fazem parte do modelo político que os reproduz.

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CATÁSTROFE HISTÓRICA

Cristovam Buarque*, Correio Braziliense

No início de 1964, as forças políticas conservadoras estavam descontentes com o presidente João Goulart por propor reformas sociais que o Brasil, havia séculos, se negava a fazer. Os norte-americanos não estavam satisfeitos porque temiam o Brasil assumir posição de não alinhado na guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética. E o povo brasileiro estava descontente com a instabilidade social, a indisciplina e a polarização política, a inflação, a recessão, o desemprego, sucessivas greves, mobilizações, confrontos nas ruas, impasses e falta de rumo no parlamento. Havia um quadro propício à vitória de candidatos da oposição nas eleições de 1966, mas as Forças Armadas, com sua desconfiança permanente em relação aos civis e sua vocação para intervir na política, destituiu o presidente, interrompeu a democracia, prendeu líderes de esquerda e cassou direitos dos democratas de direita, suspendeu o funcionamento autônomo das instituições e aboliu liberdade acadêmica e de imprensa durante 21 anos.

Quase 60 anos depois, é possível dizer que o golpe de 1964 foi o maior de diversos erros históricos e oportunidades perdidas pelo Brasil no século 20. Se tivéssemos esperado as eleições de 1966 e as seguintes impedidas, teríamos enfrentado a crise conjuntural e encontrado rumos para superar nossos problemas estruturais.

A ideia de que o golpe militar evitou a implantação de um sistema comunista não resiste à análise séria. O partido comunista brasileiro era minúsculo e sempre foi conservador, no máximo defendia reforma agrária, tanto quanto qualquer democrata minimamente progressista da época. A União Soviética não queria outra Cuba na América Latina nem um Vietnam ou Coreia a 15 mil quilômetros de distância. Qualquer pessoa lúcida e bem-informada sabe que não havia ameaça de o comunismo ser implantado, tanto que, desde Cuba, nenhum país latino implantou esse sistema nem mesmo socialismo. A avaliação do golpe de 64 deve analisar o que os governos militares fizeram e suas consequências para o Brasil atual.

Uma potente infraestrutura foi construída ao custo de endividamento e inflação; houve crescimento econômico sem inovação nem competitividade, nossa economia não deu o salto que países democráticos conseguiram; foram criadas universidades e institutos de pesquisas sem liberdade e com professores presos, exilados ou silenciados. A pobreza se manteve, a tragédia social se agravou e a concentração de renda aumentou. O debate político sobre o futuro do país foi tolhido com Parlamento e Justiça tutelados e a população sem participação. Os partidos políticos foram desfeitos, a democracia suspensa, a moeda aviltada, a educação de base continuou abandonada. Foi montado um moderno sistema de comunicações, sob permanente censura.

Desde 1964, os militares se recusam a ver a história real da ditadura praticada em nome deles, mantêm desprezo ao poder civil, não percebem o divórcio criado entre FFAA e população. O regime militar não enfrentou nenhum dos problemas estruturais do Brasil, nem formulou estratégia para o país ingressar na civilização do conhecimento e da sustentabilidade ecológica que a década de 1960 já anunciava, não formou um "instinto nacional" desejoso e esperançoso por um Brasil eficiente, justo, culto, sustentável e democrático.

É possível imaginar que o Brasil teria hoje mais coesão política e rumo histórico se os militares tivessem permanecido nos quartéis, deixassem os civis e a democracia administrarem as crises. Se não tivessem imposto silêncio político por 21 anos sob a violência da censura, do medo, da tortura, da prisão, do exílio, do assassinato e do desaparecimento para impor um desenvolvimento arcaico, injusto e insustentável. Se não impedissem seis eleições presidenciais diretas, que teriam amadurecido e conduzido o país, naquele período, sem os retrocessos políticos, sociais, civilizatórios e humanistas que o autoritarismo provocou.

O regime militar, entre 1964 e 1985, foi um passo em falso da história brasileira, que nos permite a lição de "golpe nunca mais". O período posterior, até 2023, nos alerta para lacunas nos avanços da democracia dominada por interesses corporativos, polarizada em grupos sectários cegos por ideologias superadas, com políticas e políticos imediatistas que não aglutinam, não definem rumo e não estão enfrentando os desafios estruturais que o Brasil ainda atravessa.

*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

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POR UMA VISÃO DE LONGO ALCANCE

Artigo de Fernando Gabeira

Um programa de governo não se limita apenas a uma política social nem aos pré-requisitos de uma política econômica.

Apesar da importância da viagem à China, sem ela o governo ganhou tempo para acelerar o projeto de arcabouço fiscal. Ele não significa, mecanicamente, uma queda na taxa de juros. Mas, segundo a própria ata do Comitê de Política Monetária (Copom), se for sólido e tiver credibilidade, pode impulsionar o processo de normalização da economia brasileira, que vive hoje com a maior taxa de juros do mundo, uma posição que ocupa desde maio do ano passado.

Há no ar uma certa insatisfação com o ritmo do governo. Às vezes ela se manifesta no próprio presidente, às vezes na forma não de uma onda, mas de uma pequena marola de eleitores descontentes.

A insatisfação prematura é fruto de uma limitada análise da realidade. Ela tem como modelo o início de outros governos no período democrático. Mas as coisas mudaram nos últimos 20 anos.

Se o início do governo fosse uma corrida, era possível descrevê-la como tendo queimado a fita muitas vezes. Praticamente na primeira semana, houve o episódio de 8 de janeiro. Em seguida, a tragédia Yanomami e, para completar, as chuvas de verão, cada vez mais fortes e mais destrutivas.

O próprio arcabouço fiscal, que descrevi aqui como um começo de governo, não saiu tão leve e desenvolto como se pode pensar. Houve discussões sobre as despesas, quais delas poderiam suplantar os limites? Em certo momento, comentou-se que saúde seria um tópico com gastos ilimitados. Por mais que entusiasme, a ideia não é de fácil realização. As demandas no campo da saúde são crescentes e tendem ao infinito. No passado, não se faziam operações para diminuir o estômago. Remédios para doenças raras são muito caros e a cada momento aparece uma novidade. Para certas doenças, o SUS não só banca os remédios, como o suplemento alimentar necessário.

De certa maneira, o arcabouço fiscal tem de reduzir despesas, pois o objetivo declarado da equipe econômica é também reduzir o déficit de R$ 230 bilhões para algo em torno de R$ 120 bilhões.

Não há grandes mágicas.

A reforma tributária já está no pipeline. Logo em seguida, ela deverá concentrar a atenção do governo e do Congresso. Segundo todos os especialistas que a discutem, ela vai liberar recursos das empresas, envolvidas hoje no cipoal de impostos. Não só elas devem ser beneficiadas, mas também consumidores e os diversos níveis de estruturas estatais. Para que isso aconteça, é preciso racionalizar, simplificar e, certamente, discutir muito.

Mas, ainda assim, mesmo que realizados com êxito, arcabouço fiscal e reforma tributária não sintetizam um programa de governo, mas são apenas condições para que ele se materialize.

Um programa de governo como aqueles que eram feitos no passado, na verdade, ainda não apareceu. Tópicos importantes da política social já estão em curso, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, e boas ideias como o Desenrola também foram articuladas.

Mas um programa não se limita apenas a uma política social nem aos pré-requisitos de uma política econômica. Depois da pandemia, alguns países do Ocidente apresentaram propostas de reconstrução baseadas na economia verde e na expansão digital.

O discurso do presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, acentua essas prioridades do banco. Mas era necessário um programa mais completo explicitando onde os empregos verdes podem ser abertos, onde a digitalização, inclusive no interior do governo, deve acontecer.

Outro fator que merecia um destaque programático é a relação entre governo e iniciativa privada. Existe uma convicção de que investimentos do governo impulsionam a economia e podem resolver os principais problemas. Mas quase todos os grandes projetos necessitam de parceria com a iniciativa privada. Tenho escrito sobre isso aqui. O interessante é que a experiência norte-americana não se limita a coordenar grandes esforços conjuntos. O governo Biden usa também a iniciativa privada como um instrumento auxiliar na sua política social.

Esse conjunto de ideias não faria necessariamente com que as coisas andassem mais rápido. Mas é destinado a fortalecer um rumo. Quando se tem um rumo, há mais conforto sobre o ritmo, não precisa ser alucinado nem lento demais. De um ponto de vista popular, o critério será o da picanha na mesa de todos. Mas um programa mais amplo para o Brasil poderia até superar essa premissa: de um ponto de vista da saúde e do meio ambiente, existem outras alternativas.

Infelizmente, o próprio Congresso brasileiro, que começa a trabalhar depois do carnaval, só engrenará mesmo depois da Páscoa. No momento, está perdido numa discussão sobre como conduzir medidas provisórias, disputando o poder na análise desse instrumento. Interessante como se debatem em torno de algo que os enfraquece, como se lutassem em torno do próprio túmulo parlamentar.

O grande debate nunca foi o de como compor essas comissões. A Constituição as define como mista e uma decisão interna designa 12 senadores e 12 deputados para ela. O grande debate é como limitar as medidas provisórias e liberar mais espaço para as grandes decisões parlamentares, muitas delas fora do alcance do programa presidencial.

Por enquanto, Câmara e Senado se debatem em torno de sua própria desimportância, como se a adotassem e se orgulhassem dela.

Artigo publicado no jornal Estadão em 31/03/2023

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RACHA DO CENTRÃO

Ranier Bragon, Folha de S. Paulo

Novo bloco de 142 deputados racha centrão e desafia poder de Lira

Republicanos, que compunha o centrão com o PL e legenda do presidente da Câmara, se une a MDB, PSD, Podemos e PSC

Cinco partidos de centro e de direita criaram formalmente na Câmara dos Deputados um bloco que reúne 142 dos 513 deputados, num racha do centrão que desafia o poder do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).

Até então integrante do trio que formava o centrão ao lado do PL de Jair Bolsonaro e do PP de Lira, o Republicanos aderiu agora a MDB, PSD, Podemos e PSC, formando a maior força política da Casa —MDB e PSD integram a base de apoio de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e, juntos, ocupam seis ministérios.

A movimentação tem reflexos não só no dia a dia das votações no Congresso, como também na montagem da base de Lula e na sucessão de Lira em fevereiro de 2025.

De acordo com parlamentares ouvidos pela Folha, o governo, que tem trabalhado até agora em alinhamento com o presidente da Câmara, não influenciou na montagem do bloco.

A notícia da criação do bloco foi antecipada pela Coluna do Estadão, do jornal O Estado de S. Paulo.

Após a formalização da união, líderes de Republicanos, MDB, PSD e Podemos se encontraram com o presidente da Câmara nesta quarta-feira (29) para sinalizar que não há intenção de afronta.

Lira postou uma foto em suas redes sociais parabenizando os partidos e afirmando que sempre defendeu a redução dos partidos, "fortalecendo-os e dando à sociedade confiança no nosso sistema partidário".

A união do Republicanos aos governistas PSD e MDB teve como objetivo formal fazer frente às articulações de Lira para formar uma federação entre PP e União Brasil, o que acabou não ocorrendo. Os dois partidos, porém, podem ainda formar um bloco.

PP e União Brasil, porém, somariam 108 deputados, ficando atrás dos 142 do novo bloco capitaneado por MDB, PSD e Republicanos.

A criação dessa nova força política na Câmara não significa que Lira deixa de ser peça fundamental no Congresso. Na cadeira da presidência, ele tem o poder de pautar matérias e influenciar na distribuição de verbas do Orçamento, tendo ascendência inclusive sobre parlamentares do bloco recém-formado.

Além do simbolismo político de reunir o maior contingente de cadeiras, a união dá poder ao bloco na composição das comissões mistas (entre Câmara e Senado) que devem ser retomadas para a análise das medidas provisórias, na Comissão de Orçamento e no dia a dia das votações em plenário.

Alguns integrantes do novo bloco afirmam que a união pode ser um estímulo para adesão futura de parte do Republicanos a Lula, embora dois componentes conspirem contra: 1) a avaliação consensual de que nenhum partido de centro e de direita deve dar apoio fechado ao governo e 2) o fato de o partido abrigar o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, um dos nomes cotados para a disputa presidencial de 2026.

Outra implicação da formação do bloco, essa a longo prazo, diz respeito à sucessão de Lira no comando da Câmara.

O líder da União Brasil, deputado Elmar Nascimento (BA), é considerado por vários parlamentares como o candidato de Lira à sua sucessão.

Com o novo bloco, ganham força outros nomes do campo do centro e da direita, como o presidente do Republicanos e vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (SP), e o líder do MDB, Isnaldo Bulhões Jr. (AL).

Embora dois anos seja tempo mais do que suficiente para bruscas mudanças na política, se a eleição para o comando da Câmara fosse hoje, Elmar teria um apoio potencial de cerca de 200 deputados —a soma de PP, União Brasil e o oposicionista PL— contra 142 do candidato do novo bloco. Os cerca de 120 votos do PT e demais partidos de esquerda, nesse caso, seriam decisivos para um dos dois lados.

O movimento que esvazia o poder interno de Lira ocorre ao mesmo tempo em que o presidente da Câmara trava uma disputa com o Senado em torno da tramitação das MPs, que são o principal mecanismo do governo para legislar —mas que precisam ser validados pelo Congresso.

O deputado defende um modelo que mantenha em suas mãos o poder sobre a tramitação dessas medidas, mas o Senado quer retomar o que está previsto na Constituição: a formação inicial de comissões compostas meio a meio por deputados e senadores.

Lira já cedeu em seu pleito inicial, propondo que essas comissões tenham três deputados para cada senador, mas essa proposta de proporcionalidade deve ser recusada pelos senadores.

O imbróglio persiste, com potencial de estrago para os interesses do governo. Alguns aliados de Lira dizem reservadamente que o presidente da Casa forçou a mão nesse episódio e que agora será obrigado a ceder.

Tendo sido eleito com uma base de partidos de esquerda que ocupam apenas um quarto das cadeiras da Câmara, o presidente Lula buscou em um primeiro momento atrair para a base do governo PSD, MDB e União Brasil, distribuindo três ministérios para cada uma dessas legendas de centro e de direita.

Fruto da fusão do DEM (ex-PFL, partido arquirrival do PT) e PSL, partido que elegeu Bolsonaro, a União Brasil projeta-se como a sigla com potencial de ter o maior número de dissidentes contra o Planalto.

Na votação de quarta-feira, por exemplo, a sessão da Câmara foi derrubada a pedido da própria liderança do governo por receio de derrota, já que Elmar Nascimento, o líder da bancada da União Brasil, havia orientado os deputados a entrar em obstrução.

Mesmo que haja uma adesão majoritária de PSD, MDB e União, o governo terá uma base que não é considerada folgada —para isso, precisaria de um apoio que superasse com relativo conforto o mínimo necessário para aprovação de emendas à Constituição, que são 308 das 513 cadeiras. Por isso, Lula busca também a adesão de dissidentes do centrão.

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COM BOLSONARO VEM A BAGUNÇA

Editorial O Estado de S.Paulo

O ex-presidente Jair Bolsonaro desembarcou ontem em Brasília trazendo na bagagem o caos. É espantoso que um político tão desqualificado como ele seja tido por seu partido como grande líder. Sem estatura intelectual e moral para nenhum cargo público nem para nenhum debate sério sobre os rumos do País, Bolsonaro pretende ser o catalisador da oposição ao petista Lula da Silva. Para Lula, por sua vez, a volta de Bolsonaro à ribalta é um presente valioso, porque coloca em segundo plano os muitos problemas de seu governo e ressuscita o cenário de confronto que o petista soube tão bem capitalizar na campanha eleitoral do ano passado. Ou seja, é uma situação de ganha-ganha para Bolsonaro e para Lula. Só o País perde.

Sendo agente do caos, Bolsonaro não tem nenhuma pretensão de oferecer uma visão alternativa à de Lula. Seu objetivo é apenas atrapalhar o máximo que puder, disseminando desinformação e promovendo o que há de pior na política nacional. Os pequenos bolsonaros eleitos para o Congresso não estão ali para propor nada nem para negociar nada: à imagem e semelhança de seu guru, pretendem testar os limites da decência e, com isso, amealhar ainda mais votos de eleitores desencantados com a democracia.

Eis por que cabe à direita democrática desvincular-se de Bolsonaro e oferecer ao País uma alternativa competente e moralmente correta de oposição ao governo petista. É preciso impedir não apenas que Lula da Silva cumpra suas ameaças de arruinar as bases da estabilidade econômica do País, como também que, na esteira desse provável desastre, Bolsonaro (ou alguém tão desqualificado quanto ele) se apresente como alternativa eleitoralmente viável.

O fato é que a volta de Bolsonaro tende a drenar as energias do País para temas tão divisionistas quanto irrelevantes para os destinos nacionais, como questões identitárias e culturais. A índole destrutiva de Bolsonaro, marca maior de seu tormentoso mandato, decerto seguirá produzindo efeitos nocivos para além de seus dias no poder, ainda que o ex-presidente venha a ser declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral – cenário que se descortina como altamente provável.

Para o bem do Brasil, este jornal espera que nem Lula nem os representantes dessa direita civilizada, que começaram a se reorganizar concluída a eleição, se deixem pautar pelas diatribes de Bolsonaro e, menos ainda, que lhe deem a brasa e o combustível para que ele incendeie o País. É tudo o que Bolsonaro quer para se manter relevante na política nacional. Tido e havido como “mau militar”, Bolsonaro se forjou como político em meio à confusão. A normalidade institucional do País não lhe faz bem.

Em relação a Lula, há pouca esperança para um comportamento magnânimo diante da oposição irracional que Bolsonaro representa. Petistas e bolsonaristas são representantes de forças políticas que se retroalimentam do medo e do ódio que nutrem uma pela outra. Lula sabe que o adversário ideal dele e do PT é e será a extrema direita. Se hoje o presidente encontra tempo para bater boca em público com um senador, é improvável que ignore olimpicamente seu adversário na eleição passada e faça o que tem de fazer pelo Brasil.

Bolsonaro, por sua vez, sabe que seu grande triunfo na política decorreu da exploração do antipetismo que anima grande parte do eleitorado. A ascensão de uma direita conservadora, não reacionária, democrática e republicana que possa antagonizar com o PT o levaria de volta a um lugar que ele conhece muito bem: a obscuridade. Justamente por isso, Bolsonaro volta agora ao País contando com uma parcela da sociedade eletrizada e dispersa para, a um só tempo, manter viva a guerra particular que trava contra Lula e impedir a ascensão de novas lideranças políticas à direita capazes de reduzi-lo a um mero acidente da história.

A esperança de um país menos tumultuado e mais concentrado em uma agenda de reconstrução e pacificação nacional recai sobre os ombros dos genuínos democratas, tanto à direita como à esquerda.

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LULA ELEGE INIMIGOS

Carlos José Marques, ISTOÉ

Ninguém está entendendo essa sanha alucinada de ataques de Lula. Primeiro contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Depois contra o ex-juiz e atual senador, Sergio Moro. Soa como algo mal calculado, padrão ingênuo, não à altura de um político experiente e calejado de sua estirpe. Cristaliza, sem dúvida, uma mácula inesperada, falha grave de percurso na trajetória até então fulgurante do mandatário. Muitos atribuem à tática do “bateu por bater” um certo desejo do demiurgo de voltar às origens, aos padrões do radicalismo ideológico típico, esperado e previsível dos tempos em que ensaiava projeção, ainda no papel de um metalúrgico de palanque a vociferar ante a ganância de algozes patrões. Outros delimitam o movimento no campo da vingança pura e simples. Lula estaria magoado, ressentido, e, ao que tudo indica, não gostaria de esconder isso de ninguém. Os dias na cadeia podem tê-lo deixado rancoroso, não seria surpresa. 

É sabido, Lula identifica no ex-juiz Moro, por exemplo, não apenas aquela pessoa que o condenou a uma longa e (pelo visto) indevida fase atrás das grades, como também a figura que o impediu de realizar a última e digna despedida do neto no leito de morte. Isso, definitivamente, Lula não perdoa. E falou inclusive em desforra, durante entrevista recente. Pode ter razões até mesmo pessoais, mas a opção do revide não lhe cai bem no momento. Em nenhuma das hipóteses. Além de fora de contexto é, inapelavelmente, prejudicial aos resultados de um governo que está apenas começando. No caso da ofensiva sistemática em relação a Campos haveria formas melhores de conduzir o assunto. Ele até está absolutamente correto ao trovejar contra a prática de juros escorchantes e abusivos. A bandeira encontra eco e reflete de forma adequada os anseios do eleitorado que o recolocou na cadeira de presidente. 

De mais a mais, configura uma luta justa, sensata, essencialmente legítima. O erro estaria em focar os rompantes diretamente na figura de Campos Neto e a estabilidade de cargos no BC. Equívoco tremendo, até por induzir desconhecimento sobre os meandros das escolhas do BC. Na política monetária não é o titular do Banco quem manda. As análises e decisões decorrem do consenso de um colegiado do COPOM. A recente autonomia legada aos membros da instituição é, indiscutivelmente, uma vitória da boa governança, da transparência. Representa avanço operacional, em sintonia com a prática corrente nas grandes economias do mundo. A insurgência de Lula, visando derrubar essa conquista, pode, ao fim e ao cabo, significar um retrocesso incalculável no País e não é bem quista nem pelo empresariado, muito menos pelo mercado de investidores. 

Por mais inexplicável que possa parecer, Lula mirou justamente nos tais grupos para disparar armas de ataque. Desde o início do novo ciclo no Planalto, mostra-se possesso com as queixas do capital. O sentimento que acalenta é de injustiça e desprezo para com aqueles que poderiam lhe ajudar na retomada do desenvolvimento. O grave é que o cabo de força armado com os senhores da Faria Lima não deve resultar em coisa boa. Ao contrário. Parte considerável do PIB indica, abertamente, ter mesmo virado-lhe as costas. Pesquisa recente da Quaest com representantes da produção mostra descrença, desconfiança e baixa expectativa nos resultados da gestão do demiurgo. É uma saia justa. Sem recursos privados, qualquer estratégia governamental fica comprometida. Lula terá de encarar uma sinuca de bico. A ideia de montar um ambiente elegendo claramente inimigos desvirtua as prioridades, colocando em segundo plano a atenção necessária a demandas urgentes. É hora de unir forças, não de confrontá-las ou de dissipá-las. 

Claro que a boa vontade precisa surgir de ambos os lados e, fazendo justiça, não é o que ocorre hoje. A politização de escolhas e movimentos do BC, bem como de parte do empresariado, é uma realidade. Há muitas evidências desse rumo sem sentido. Nem é preciso lembrar o pendor bolsonarista e de oposição que o ex-juiz Sergio Moro nutre, por sua vez, na atual empreitada que abraçou como senador. Na hipótese em questão é uma mera escolha de lado. Basicamente assim a banda toca. Lula é quem deveria ter desconsiderado o confronto, saindo da rinha para evitar trazer o desafeto aos holofotes, como acabou fazendo. Erro primário de um velho cacique da política. São nessas falhas, denotando um passionalismo anacrônico ou mesmo desatenção aos efeitos colaterais do caminho trilhado, que Lula tem inexplicavelmente recaído. Não é um bom começo. Para alguém que deu a volta por cima e foi mais uma vez guindado ao posto máximo do Planalto, a expectativa é grande e a necessidade de que faça a coisa certa, também.

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quinta-feira, 30 de março de 2023

CHEFE DE BOLSONARO SÓ FICA COM ELE ATÉ A ELEIÇÃO MUNICIPAL

Helena Chagas, OS DIVERGENTES

O novo “chefe” de Jair Bolsonaro, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, pretende ficar com ele até as eleições municipais do ano que vem. Segundo políticos próximos, Valdemar considera Bolsonaro um bom eleitor, que o ajudará a captar os votos do eleitorado de direita pelo país e multiplicar o número de prefeitos da legenda — que, a reboque do ex-presidente, fez a maior bancada da Câmara. Os planos de Valdemar, porém, param por aí. No PL, a expectativa é de que, a essa altura, o ex-presidente estará inelegível — ou coisa pior — e a direita vai procurar outros rumos para 2026.

No curto prazo, Valdemar continuará fazendo as honras da casa para Bolsonaro, pagando altos salários e outras despesas, aturando seus filhos e fingindo acreditar que Michelle será uma revelação nas urnas. O presidente do PL sabe que depende disso a preservação de sua bancada e, sobretudo, do controle do partido, hoje dividido exatamente ao meio entre a ala bolsonarista e a dos antigos integrantes da legenda — aqueles que sempre fecharam com todos os governos. 

A força de Bolsonaro, porém, deve acabar se reduzindo na maratona jurídica que enfrentará a partir de agora no TSE e no STF, em meio a acusações que vão da apropriação indébita das jóias das Arábias  ao incitamento dos atos golpistas do 8/1. Basta uma condenação, ou uma inelegibilidade, para que ele se torne carta fora do baralho de 2026 — e essa será a senha para a debandada dos aliados.

Nesse momento, aquilo que hoje ainda se chama de bolsonarismo começará a gravitar em torno de outros nomes do campo da direita.  Valdemar, tendo assegurado o controle do PL , já não terá o risco de ser derrubado pela ala bolsonarista e vai negociar o apoio de PL, que está se tornando um partido grande. Fará isso do seu jeito: sem preconceitos, seguindo as próprias simpatias. 

O hoje chefe de Bolsonaro, dizem aliados, dificilmente apoiará uma candidatura presidencial do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, nome mais citado para ocupar a vaga com uma inelegibilidade do ex-capitão. Valdemar detesta Tarcísio desde que o governador, então diretor do DNIT (governo Dilma),  demitiu todos os seus apadrinhados. Bem relacionado com o PT, ele não descartaria, segundo amigos, uma aliança com Lula  em  eventual reeleição, ou o apoio a seu candidato — se este não for Fernando Haddad, outro desafeto.

Outra notícia ruim para Jair Bolsonaro é que, apesar de precisar dele para engordar o PL e manter seu controle,  Valdemar não pretende confrontar a Justiça para ficar a seu lado. Conhecido pão-duro, nem pensa também em gastar muito dinheiro para turbinar o ex-presidente em suas andanças pelo país. O presidente do PL comeu o pão que o Xandão amassou para pagar a multa de R$ 22 milhões recebida ao tentar contestar os resultados da eleição — a mando daquele que hoje se diz seu chefiado. 

A nota do PL na véspera da volta de Bolsonaro diz muito sobre esse estado de espírito: não promoveu grandes festanças populares vitaminadas com pagamento e transporte gratuito. Realizou evento fechado, de tamanho modesto, sem motociata, discursos apoteóticos ao povo ou maiores homenagens.  Para bom entendedor, o desfecho pode até demorar um ou dois anos, mas Valdemar Costa Neto já está, como dizia o velho Brizola, costeando o alambrado.

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GILBERTO GIL: CIDADÃO DO MUNDO

Edmundo Lima Arruda Jr., OS DIVERGENTES

O brilho de Gilberto Gil ofusca medíocres ressentidos ou, no mínimo, seres humanos desinformados. As posturas das instituições diante da barbárie nos provocam a refletir sobre ódio e esperança.

Fico pensando nos vereadores de Florianópolis (a maioria) que se prestaram ao desserviço e ao vexame de apostar no preconceito e na onda reacionária. O preconceito tem vários nomes, entre eles o racismo. A aversão a drogas ilícitas na conhecida violência policial envolvendo Gilberto Gil, há décadas, endossa e perdoa a prisão arbitrária, ao arrepio da Lei em Florianópolis (junho de 1976). Afinal, na ditadura e sistemas não democráticos as instituições costumam ser menosprezadas e substituídas pela vontade de autocratas e seus sicários de plantão.

No fundo a questão era e continua a ser política. O gênio baiano é um homem humanista, e um humanista é progressista. Foi Ministro da Cultura da frente petista. E notório antibolsonarista. Isso é imperdoável. Crime de lesa majestade para os coveiros da cultura.

Já a UFSC firma na história, sob o comando do Professor Dr. Irineu Manoel de Souza, um grande Reitor, magnífico em todos os sentidos, o registro do reconhecimento ao excepcional homem público que é Gilberto Gil Orgulho do Brasil. Doutor Honório causa.

A UFSC recupera com louvor uma intervenção nacional em prol da cultura, homenageando um imortal da ABL e um cidadão octogenário em plena luta por democratização.

Os vereadores que votaram contra a concessão de Cidadão honorário de Florianópolis ao insigne intelectual deram um triste atestado dos tempos protofascistas.

A prefeitura marcou um golaço. O prefeito Topázio Neto portou-se como verdadeira autoridade, trocando presentes com o grande compositor, cantor, diante do espetáculo que marcou o encerramento da maratona cultural da cidade, dia 26 e março. Outro registro da boa política, democrática e justa.

Barbárie ou civilização?

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ALI BABÁ E OS 40 BOLSONAROS

Ruy Castro, Folha de S.Paulo

As joias da Arábia já deixam longe, em milhões, o Fiat de Collor e o sítio e o tríplex de Lula somados

Sugiro que, ao descer nesta quinta-feira (30) em Brasília e contornar a alfândega, Bolsonaro seja pendurado pelos pés até se certificarem de que abotoaduras de ouro e Rolexes de diamantes não cairão de seus bolsos. Eu sei, Bolsonaro não está chegando da Arábia Saudita, cujo ditador, o príncipe Mohammed bin Salman, cumulou-o de presentes milionários como prova de afeto pessoal e, quem sabe, gratidão por serviços prestados. Vem de três meses de aprisco em Orlando, Flórida, urbe identificada com o Pateta —erroneamente, já que os únicos patetas por lá são os turistas.

Para quem sempre fez profissão de fé religiosa e pobreza, Bolsonaro revelou-se de extrema flexibilidade. Aceitou os ditos presentes das mãos ou a mando de um ditador acusado de, entre outras, ordenar em 2018 a morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi, esquartejado vivo com serra cirúrgica no consulado da Arábia Saudita em Istambul, Turquia, e depois dissolvido em ácido no jardim. Apesar de as autoridades turcas terem provas de tudo isso, Bolsonaro afirmou sentir "certa afinidade" com Bin Salman.

Pobreza? Usuário de uma humilde Bic em público, Bolsonaro devia reservar suas canetas Chopard de ouro, mimos do ditador, para os documentos que assinava em palácio, como o referente ao sinal verde para o desmatamento da Amazônia ou à fabricação de cloroquina.

Por enquanto, é sabido que Bolsonaro recebeu e se apossou de três estojos de joias no valor de R$ 18 milhões. Sem descartar possíveis novas surpresas, isso já deixa longe o valor do Fiat Elba que liquidou Fernando Collor em 1992 e os do sítio e tríplex que levaram Lula à prisão em 2018 —somados.

Para embolsar as joias, Bolsonaro contou com auxiliares de vista grossa. Um dia saberemos tudo. E, como há algo das "1001 Noites" nessa história, ofereço um título inspirado em meu amigo Telmo Martino: "Ali Babá e os 40 Bolsonaros".

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O ARCABOUÇO E O APITO

Malu Gaspar, O Globo

Novela do arcabouço fiscal mostra como os métodos de Lula vão definir os rumos do governo

O desfecho da primeira temporada da série do arcabouço fiscal, que deixou ontem o Palácio do Planalto para ser apresentado ao Congresso, traz informações importantes para compreender o rumo do terceiro mandato de Lula — tanto sobre como ele manobrará as peças do governo como sobre o novo desenho geopolítico de Brasília. Acima de tudo, porém, ensina uma lição bem útil sobre como tratar as guerras internas do governo e os chamados que o presidente da República lança ao debate público.

A constatação mais óbvia é que Lula continua fiel ao velho método de deixar os subordinados se digladiarem para depois arbitrar a disputa, de preferência optando pelo pragmatismo. Foi assim no primeiro e no segundo mandato, e o resultado do embate fiscal sugere que será igual no terceiro.

Não quer dizer, claro, que a decisão será sempre a melhor para o país ou que não haverá escorregões. Mas serve de aviso aos navegantes do novo momento político: é bom tomar cuidado antes de aderir incondicionalmente aos “apitos de cachorro” do presidente da República para controlar a narrativa sobre seu próprio governo.

A guerra dos juros altos, por exemplo. Enquanto os auxiliares debatiam internamente as novas metas fiscais, Lula comprou uma briga pública feroz com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, a quem já em fevereiro, na primeira alta dos juros sob seu governo, chamou de “aquele cidadão”, exigindo “explicações ao povo brasileiro”.

Desde então, vários interlocutores do presidente puderam conferir que a irritação é real, e ele de fato não engole Campos Neto. Mas quem conhece os mecanismos da política econômica sabe que, se Lula acreditasse mesmo no que dizia sobre os juros altos e quisesse de fato forçar a redução dos juros, poderia ter levado o Conselho Monetário Nacional, o CMN, a aumentar a meta de inflação. Se daria certo ninguém sabe, mas seria uma manifestação inequívoca de vontade política.

Lula, porém, não fez isso. Soltou os ministros — e os cachorros — para cima de Campos Neto, ao mesmo tempo que o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, reunia no Rio de Janeiro um grupo de economistas heterodoxos para falar… heterodoxias, criticando os juros altos e relativizando a necessidade de fazer superávit. Deu verniz à discussão o fato de nela haver um Nobel, Joseph Stiglitz.

Teria sido útil, porém, observar que o último discípulo de Stiglitz que comandou uma economia latino-americana — Martín Guzmán, na Argentina — previu derrubar a inflação, de 53,8% quando assumiu, em 5 pontos percentuais ao ano, mas deixou o cargo com a taxa em 71%. Quem achar que é um bom modelo, que compre a passagem só de ida para Buenos Aires.

Enquanto políticos interessados e acólitos distraídos se encantavam com o discurso “disruptivo” de Stiglitz e sua turma, Fernando Haddad buscava aliados para o arcabouço fiscal entre ministros da área econômica, além do próprio Campos Neto e do presidente da Câmara, Arthur Lira.

O desenho final ficou mais parecido com o que os “fiscalistas” pretendiam do que com o que sonhavam os heterodoxos. Em linhas gerais, o governo se propõe a zerar o déficit público já em 2024, chegando a 1% de superávit em 2026. Prevê, ainda, que as despesas — todas elas, mesmo com saúde e educação — só poderão crescer ao limite de 70% do aumento da receita.

Haddad, portanto, sai vitorioso, o que nunca teria acontecido se o Lula do mundo real seguisse o próprio apito de cachorro.

Com a experiência acumulada, Lula sabe que a sustentabilidade das contas públicas é o que lhe permitirá investir na área social e em infraestrutura, ao mesmo tempo que cria condições para a queda de juros. Tanto que disse à equipe econômica fazer questão de chegar ao final do governo com superávit.

O arcabouço ainda precisa ser destrinchado para que se saiba se tem consistência ou se carrega truques para sustentar responsabilidade fiscal de fachada. Para o momento, contudo, basta dizer que nem Paulo Guedes, que tocava afinado com a Faria Lima, respeitou o teto de gastos em sua gestão.

Se contribuir para criar alguma confiança de que os comandantes da economia têm juízo, já terá cumprido uma função. Manejar a economia é também gerir expectativas, e Lula está cansado de saber disso. Ao fazer um discurso raivoso e depois desmenti-lo na prática, o presidente “está na dele”, como diz o povo.

Quem estiver a fim de segui-lo deve saber que corre o risco de ficar falando sozinho — ou de ser obrigado a recuar quando Lula recolher o apito.

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FUJÃO, BOLSONARO VOLTA AO BRASIL TENTANDO MAIS UM EMBUSTE: EXPLORAR O 31 DE MARÇO

Carlos Alberto dos Santos Cruz, O Estado de S.Paulo

Nenhum presidente da República cometeu um ato de traição desse nível contra as Forças Armadas; leia artigo

Populista, aproveitador. Nesta quinta-feira, 30, volta ao Brasil o ex-presidente fujão, que desavergonhadamente fugiu do Brasil ainda durante seu mandato, mostrando ao mundo inteiro o Brasil como republiqueta com um governante medíocre. Vergonhoso para o País!

Durante quatro anos tentou encobrir seu despreparo com fanfarronices e shows de besteiras. Embusteiro que destruiu a direita e o conservadorismo no Brasil, se apresentando como “de direita-patriota-conservador” e explorando dísticos de nacionalismo e a religiosidade. Deixou um Brasil doente e em conflito permanente por conta de fanatismo político. Desgastou as instituições (FA, MRE, PF, PRF, RF, Saúde, Educação etc). Teve a seu favor uma milícia digital, uma máfia na internet, manipulando parte da opinião pública e alguns seguidores com uma verdadeira indústria de fake news.

Na campanha para a reeleição não foi capaz de sair do nível rasteiro de briga de rua e apresentar realizações e projetos. Ficou à vontade no seu padrão político, fazendo uma campanha xingatória do mais baixo nível. Com a perda das eleições, se fez de vítima, com “trauma eleitoral”, numa omissão absurda e encenações ridículas.

Não cumpriu suas obrigações mínimas de se pronunciar sobre os assuntos e acontecimentos nacionais. Manteve silêncio inaceitável, como que esperando o “circo pegar fogo” para ver como se beneficiar (claro que sem a responsabilidade pelo desastre). Não teve nenhuma consideração e respeito com os acampados manipulados pelo bombardeio de desinformação da milícia digital, que exploraram suas aparições patéticas como fantásticas mensagens enigmáticas. Nem ele nem seus seguidores mais próximos investidos de funções ministeriais ou legislativas apareceram uma única vez para dizer para os acampados voltarem para suas casas, que decisão política é própria dos políticos, que decisões políticas não seriam tomadas pelas Forças Armadas. Teve até emissário que foi levar um pen drive ao sheik no Qatar (em dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo, claro), mas não teve um para ser honesto com os seguidores manipulados nos acampamentos na frente dos quartéis.

A decisão política tinha que ser do poder político, do presidente da República. A transferência de responsabilidade, a falta de coragem de assumir as consequências das suas obrigações como presidente da República, foi uma das maiores traições, uma das maiores covardias já feitas às FA, ao Exército em particular. Nenhum presidente da República cometeu um ato de traição desse nível contra as FA. Dois meses sem trabalhar após as eleições; fuga; três meses passeando nos Estados Unidos, tudo com um enorme gasto público. E volta tentando mais um embuste: explorar a data de 31 de março. O Brasil precisa é de um governo honesto, transparente, que não diga besteiras, que solucione os graves problemas da desigualdade social, que extinga os privilégios, que reduza a corrupção, que promova desenvolvimento. Precisa também de uma oposição séria, com propostas. O Brasil não merece, no seu quadro político, de embusteiros consagrados, de populistas irresponsáveis e aproveitadores, de um “imbrochável” para brincar de motociata e jet ski.

Carlos Alberto dos Santos Cruz é general da reserva e ex-ministro da secretaria de governo

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O GARROTE BOLSONARISTA

Maria Cristina Fernande, Valor Econômico

Congresso sonha com equação fiscal da era Bolsonaro

A chegada do arcabouço fiscal ao Congresso coincidirá com a volta do ex-presidente Jair Bolsonaro ao país. Um movimento é a condição imposta pelo Banco Central para considerar uma trajetória de redução na taxa de juros com a qual o governo espera tirar a economia da letargia. O outro movimento é a tentativa de, no grito, impedir que isso aconteça.

É no Congresso que os dois movimentos ganham sintonia. Não faltam sinais de que os parlamentares pretendem endurecer o arcabouço. A ver como o modelo a ser apresentado trata as brechas para isso. Quanto mais parecido com o teto de gastos, melhor este arcabouço será para os parlamentares. Foi com o garrote no Executivo que o Legislativo avançou com o orçamento secreto no governo Bolsonaro, o Eden do poder parlamentar.

A contenda entre Câmara e Senado em torno da tramitação das medidas provisórias completa o tripé. Derrotado na tentativa de manter o rito adotado durante a pandemia - e vigente durante quase toda a era Bolsonaro -, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), busca aumentar o espaço dos deputados nas comissões mistas por onde tramitam as MPs. É com a alocação de cargos e relatorias nessas instâncias parlamentares que Lira arbitra as disputas na Casa, consolida seu poder e dimensiona a base parlamentar a ser “alugada” ao Executivo.

O início dos trabalhos nas comissões permanentes, no entanto, mostraram um Legislativo menos domesticável pela mesa da Câmara e mais ditado pela polarização do país. Foi como uma missão precursora desta polarização que se desenrolaram as duas primeiras sessões do ano da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.

Desmobilizados pela persecução penal de 8/1, os acólitos do ex-presidente estavam dispostos a se mostrar quites com a lição de casa da escolinha do professor Jair. A deputada que havia posado nas redes como uma metralhadora e uma camiseta onde se lia, em inglês, “venha pegar”, numa alusão ao desarmamento do governo Lula, surgiu cândida, com um arranjo de flores no cabelo, apelando ao ministro da Justiça, Flávio Dino, contra o Conselho de Ética.

O deputado que surgira de peruca loira, na tribuna da Câmara, numa homenagem transfóbica ao dia da mulher, reagiu transtornado ao ouvir o apelido avacalhado que lhe dirigiu seu rival mineiro, André Janones (PT). Respirava misoginia por todos os poros ao dizer que estariam todos “ovulando”, como um sinônimo de histeria, se o apelido tivesse sido usado por ele.

Se Janones retomou o papel desempenhado na campanha eleitoral, valendo-se das armas dos adversários para acuá-los, o ministro da Justiça apareceu como o posto avançado da reação governista. Alvo da estratégia bolsonarista de se vitimizar pelos crimes perpetrados em 8/1, Dino desmontou, um a um, argumentos e provocações que lhe foram dirigidos, com didatismo, sarcasmo, deboche e ironia. Se a estratégia bolsonarista era lacrar no debate para tirar o terceiro lote de joias sauditas das redes, até conseguiu diversificar a pauta, mas em franca desvantagem.

Está claro que Bolsonaro volta nesta quinta, 30, para mobilizar novamente os radicais que dão visibilidade política nas redes. Encontra, porém, reações governistas mais apetrechadas do que na época em que ditava a pauta. O simples anúncio de sua volta fez com que suas mensagens nas redes, até então letárgicas, alcançassem, segundo a Bites, uma interação nove vezes maior do que aquela registrada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

É bem verdade que este período convergiu com a pneumonia de Lula, que o tirou no noticiário. O que não deixa de ser uma boa notícia para o governo, já que a capacidade de reação de seus aliados se mostrou não apenas competitiva como, muitas vezes, superior à de Lula, que pode até ser estimulado a adotar uma postura mais presidencial que de provocador.

Há quem aposte que Lula, ao provocar Sergio Moro com insinuações sobre as quais não tinha prova, tenta polarizar com o senador para que ele tome o lugar de Bolsonaro. Lula enfrenta limitações na tarefa. Seria preciso que o senador tivesse uma fração da argúcia política de Bolsonaro para ameaçar sua liderança. Os holofotes que Lula lhe dirigiu, porém, o animaram a se expor mais ao debate e, nele, se enredar nas escaramuças do governismo.

A prorrogação da disputa entre lulismo e bolsonarismo é inevitável. Basta constatar a herança de um país marcado por quatro anos de apologia oficial à discriminação e à violência. Se o bolsonarismo está suficientemente vivo para reivindicar a redução da maioridade penal como subproduto da morte de Beth Tenreiro, os valores que pautaram o rechaço ao ex-presidente embalaram o velório da professora morta a facadas numa escola na zona oeste de São Paulo por um adolescente racista.

Se o velho aliado bolsonarista, Alberto Fraga (PL-DF), provoca “sou pistola, não chupeta”, Dino, por outro lado, informa que o recadastramento de armas já superou os registros anteriores. Ou seja, nem todo mundo que comprou armas impulsionado pelo liberou-geral do bolsonarismo pretende militar na clandestinidade miliciana.

Bolsonaro conta com uma tropa de choque mobilizada no Congresso, como mostraram os embates desta semana, mas viu minguar o respaldo que tinha em setores das Forças Armadas. Não bastasse o efeito demonstração do infortúnio do seu ex-ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, a presença do almirante Flavio Rocha, ex-secretário de Assuntos Estratégicos de Bolsonaro, na reunião do Alto Comando da Marinha com Lula mostrou que a ordem do dia é o pragmatismo. Bolsonaro marcou sua volta para a véspera dos 59 anos de golpe militar, mas a efeméride deve passar em branco nos quartéis.

A mobilização nas redes sociais deixa claro que é uma volta estridente que se prepara, mas há uma reação institucional anunciada. Há um ano, faltaram oito votos para o projeto de lei das “fake news” ganhar urgência de tramitação. As “big techs” se aliaram ao bolsonarismo contra a celeridade da pauta. Desta vez, apesar de as empresas se manterem resistentes ao relatório do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), o atual governo deveria ter motivos de sobra para mover sua base pelo projeto, mas a queda de braço entre Congresso e Supremo no tema acaba por imobilizar o Executivo.

É nos tribunais superiores que está a corda mais ou menos esticada com que Bolsonaro será administrado nesta volta. O embate entre os tribunais e o Congresso já está contratado.

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MULTIVERSOS

Merval Pereira, O Globo

Só acreditando em universos paralelos é possível entender que tanta gente continue dando a Bolsonaro apoio consolidado

O guru da extrema direita mundial Steve Bannon disse em entrevista à Folha de S.Paulo que a questão das joias das Arábias não tem a menor importância e que Bolsonaro continua com a mesma força, assim como Trump nos Estados Unidos. Estou entre os que não gostaram do vencedor do Oscar “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo”, mas devo admitir que só acreditando em universos paralelos é possível entender que tanta gente continue dando a Bolsonaro apoio consolidado.

As lambanças que andou fazendo não afetam a militância. Ele está ferido de morte com quem não é bolsonarista nem extremista e o preferiu ao PT pelo que considerava um mal menor. Esse grupo, que é forte, está desembarcando dele, mas não embarca no PT, não da maneira como o governo vai se conduzindo, repetindo comportamentos que pareciam exclusivos de Bolsonaro, mas acabam se revelando uma posição comum a autocratas.

Juca Chaves morreu, e o governo que preza a cultura foi incapaz de enviar uma manifestação de pêsames, assim como Bolsonaro se calou diante da morte de Gal Costa ou de Erasmo Carlos. Juca Chaves é o autor de uma modinha satírica sobre o mensalão que o colocou no índex petista, assim como Gal e Erasmo eram considerados inimigos pelos bolsonaristas. Bolsonaro vivia às turras com os jornalistas, e o ministro da Secretaria de Comunicação Social de Lula, o jornalista acidental Paulo Pimenta, destrata uma jornalista na televisão e inventa uma instituição oficial de checagem de informações.

Está inaugurada a era da “verdade oficial”, uma situação tão esdrúxula que só pode sair da cabeça de autoritários que desconhecem que verdade oficial é propaganda. A direita civilizada está embarcando em alternativas como os governadores Tarcísio de Freitas, de São Paulo, ou Romeu Zema, de Minas. A militância extravagante, agressiva e radical continua com Bolsonaro, mas é minoritária. Assim como é minoritária a esquerda que apoia Lula.

O centro continua majoritário, mas incapaz de produzir uma alternativa a essa polarização. Os ativistas do bolsonarismo vivem num universo paralelo nas redes sociais e realmente conseguem neutralizar muitas acusações contra seu líder. O PT, que dominava essas redes, ficou ultrapassado pela moderna tecnologia que os bolsonaristas trouxeram de seus contatos internacionais com gurus da extrema direita feito Bannon. Portanto a adequação da volta de Bolsonaro não importa muito para esse pessoal, tanto que estão programando motociatas, desfile em carro aberto e outras manifestações para a chegada a Brasília.

A Polícia Federal (PF) montou um esquema de segurança para tentar impedir que conheçamos a verdadeira capacidade de reaglutinação de Bolsonaro. Outra questão é saber se ele tem algum risco de ser preso chegando ao Brasil. É pouco provável, mas pode aparecer um juiz de primeira instância que mande prendê-lo sem razão legal sólida. As acusações são muitas, mas os processos estão no começo, pois ele tinha imunidade até janeiro. Ainda não há perspectiva de haver algo concreto, a menos que alguma descoberta tenha sido feita e se alegue que a presença dele coloca em risco as investigações, como a possibilidade de influir na PF.

A volta de Bolsonaro é mais um elemento no choque de realidade a que Lula vem sendo submetido, num mundo que mudou sem que ele notasse. Lula está descobrindo que não tem superpoderes ou pelo menos encontrou no ex-juiz Sergio Moro a kriptonita que os neutraliza. Comecei a coluna falando em multiverso e termino com a boa e velha kriptonita. Os mais jovens não devem nem saber do que se trata. É uma tentativa, talvez inócua, de ser atual sem esquecer a tradição.

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VOLTA DE BOLSONARO MOBILIZA A OPOSIÇÃO DE RUA

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

Se a polarização com os bolsonaristas foi boa para Lula chegar ao segundo turno e nele derrotar Bolsonaro, porém não será boa para a sua governabilidade

O ex-presidente Jair Bolsonaro volta ao Brasil “causando”, como se diz nas redes sociais. A mobilização bolsonarista para aguardá-lo no aeroporto de Brasília, hoje, pretende ser uma demonstração de força, ainda que as autoridades do Distrito Federal (GDF) tenham tomado medidas para evitar uma grande manifestação política no desembarque principal do aeroporto e uma carreata em carro aberto até a Esplanada dos Ministérios. Toda a bancada bolsonarista no Congresso está sendo mobilizada para recepcioná-lo.

Bolsonaro foi intimado pela Polícia Federal a prestar esclarecimento, juntamente com seu ex-ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid, sobre o caso das joias recebidas pelo presidente na Arábia Saudita. O segurança de Bolsonaro Marcelo Câmara também foi intimado. O depoimento foi marcado para 5 de abril, às 14h30. Até lá, o ex-presidente terá uma semana de alta exposição política, ainda que negativa, principalmente nas redes sociais, em que continua forte a presença bolsonarista.

O clima no Congresso já reflete a rearticulação dos bolsonaristas e a polarização com o governo. Embora presidida pelo deputado petista Rui Falcão (SP), a Comissão de Constituição e Justiça é um palco bolsonarista. Como controlaram o colegiado por quatro anos, os aliados de Bolsonaro têm cancha para fazer muito barulho. O bate-boca de ontem entre os deputados André Janones (Avante-MG), governista, e Alberto Fraga (PL-DF), aliado do ex-presidente, mostra bem o clima que está se criando.

Janones provocou a discussão ao desafiar a oposição: “Eu fiquei esperando até aqui algum parlamentar que tivesse, aqui nessa comissão, a valentia que tem nas redes sociais. Mas, infelizmente, parece que a grande maioria dos bolsonaristas são frouxos, não têm coragem de dizer aqui quem foi que chamou o ‘deputado chupeta’ de ‘chupetinha’. Quem usou essa expressão fui eu”, afirmou o parlamentar. Nikolas Ferreira (PL-MG) é aquele deputado que pôs uma peruca loira durante discurso homofóbico na tribuna da Câmara, no Dia da Mulher.

Segundo Janones, em Minas Gerais, Nikolas Ferreira é tratado como chupeta. “Esse é o apelido. E não tem nada a ver com homofobia, não vamos transformar um problema sério como é a homofobia no nosso país, em que milhares de homossexuais são assassinados e são vítimas de ódio, com apelido”, disse. Fraga tomou as dores do colega e ameaçou o governista: “Eu não uso chupeta, não. Eu uso é revólver mesmo, é pistola”, disse. Coronel aposentado da PMDF, Fraga foi para cima de Janones, mas foi impedido por colegas de entrar em luta corporal. A sessão virou um tumulto.

À moda Lacerda

Se a polarização com os bolsonaristas foi boa para Lula chegar ao segundo turno e nele derrotar Bolsonaro, porém não será boa para a sua governabilidade. O governo precisa de uma base parlamentar ampla, que não funciona nesse tipo de confronto, e uma agenda política no Congresso que evite o isolamento do PT. O tipo de radicalização que houve ontem na CCJ, e pode se repetir em outras comissões e no plenário da Câmara, é um fator de mobilização dos bolsonaristas.

Lula enfrenta uma oposição que briga de tamancos nas mãos, nas ruas. Nos seus governos anteriores, a oposição era elitista, usava salto alto e punhos de renda. A oposição antipetista de massas surgiu nas grandes manifestações de 2013, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, e derivou para o bolsonarismo, após a campanha do impeachment. A chance de uma “terceira via” moderada naufragou no governo de Michel Temer, que fez uma boa gestão administrativa, mas foi torpedeado abaixo da linha d’água pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, após uma conversa com o empresário Joesley Batista (JBS), gravada pelo interlocutor.

Se é que isso é possível, somente um personagem da nossa política republicana pode ser comparado a Bolsonaro na virulência dos ataques aos adversários e no golpismo político: o ex-governador da antiga Guanabara Carlos Frederico Werneck de Lacerda. Fundador do jornal Tribuna de Imprensa, jornalista, liderou a oposição aos governos de Getúlio Vargas (1951-1954) e João Goulart (1961-1964), até apeá-los do poder. O primeiro se matou depois do famoso atentado da Rua Toneleiro contra Lacerda, perpetrado pelo segurança  segurança particular de Vargas, no qual o político foi baleado na perna e um major da Aeronáutica, que  acompanhava, foi morto; o segundo, foi deposto pelo golpe militar de 1964, que Lacerda apoiou de armas nas mãos.

Filho do jornalista e político comunista Maurício de Paiva de Lacerda, seu nome homenageia Karl Marx e Frederich Engels, os autores do Manifesto Comunista de 1848. Entretanto, Lacerda tornou-se um ferrenho político anticomunista e conservador, filiado à União Democrática Nacional (UDN). Ex-comunista, construiu a narrativa de que o populismo trabalhista era uma “ameaça comunista”.

Segundo as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, Lacerda era “atrevido, oportunista e mais abusado ainda”. Entretanto, ao contrário de Bolsonaro, “tinha verve, erudição, esbanjava competência e possuía uma inteligência incendiária. Lacerda sabia manejar as palavras, e era um mestre insuperável na arte da intriga política: surpreendia o adversário com suspeitas, acusava com ou sem provas, ridicularizava, achincalhava, sempre de forma sistemática e em tom contundente”. O jornalista Carlos Castelo Branco atribuiu a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, a uma intriga palaciana, que empurrou Lacerda para a oposição.

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ÀS CLASSES MÉDIAS 'ÓRFÃS DE GOVERNO'

Maria Hermínia Tavares*, Folha de S. Paulo

Demanda das ruas em 2013 já trazia necessidade de políticas sociais de qualidade

Desde que assumiu, o presidente Lula acenou mais de uma vez com a possibilidade de criar iniciativas voltadas para as chamadas classes médias. Segundo ele, por não serem contempladas com políticas públicas, acabam órfãs "de pai, mãe e governo".

Há bons motivos para que uma gestão progressista focalize esse setor tão heterogêneo quanto eleitoralmente importante. Afinal, parcela significativa dele se situa no campo antipetista, muitos habitando rincões colonizados pelo bolsonarismo.

Apropriadamente, Lula o citou ao falar do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida. Ocorre que, se for mesmo levado a sério, o desafio exigirá um conjunto de ações possíveis nas áreas econômica e social. A mais óbvia consistirá em incorporar princípios de progressividade à reforma tributária.

O governo terá de pensar também em abordar as grandes políticas sociais —saúde e educação— não só do ângulo da cobertura mas sobretudo da qualidade dos serviços oferecidos.

Subfinanciado, o SUS, eficaz na atenção básica à saúde, deixa a desejar quando seus beneficiários demandam serviços mais complexos. De seu lado, as escolas públicas, que atendem mais de 70% das crianças no ciclo fundamental, têm notórias falhas no ensino de habilidades básicas. Não por acaso, tão logo aumenta a renda da família, ela busca um seguro saúde privado e procura matricular suas crianças em escolas particulares.

Na babel de demandas que levaram milhares às ruas em 2013, a aspiração por políticas sociais de qualidade foi expressa em cartazes que pediam escolas e hospitais "padrão Fifa". Ainda assim, o governo se enganará se acreditar que pode falar aos setores médios engajados no antipetismo acenando apenas com promessas de bem-estar material e desprezando o apelo a valores.

Na formulação do discurso mobilizador que deu autoconfiança à direita e a colocou sob liderança dos mais extremados, a denúncia da corrupção teve papel central —pouco importando se fidedigna ou exagerada para fins políticos. A quem duvidar recomenda-se a autocongratulatória série "A Direita no Brasil", da produtora Brasil Paralelo.

Para os populistas de todos os matizes, o fantasma da roubalheira serve ao propósito de corrosão da democracia —oferecendo uma retórica desprovida de atos concretos. Já para os progressistas, seu combate necessariamente implica a criação de mecanismos institucionais que reduzam as oportunidades de que venha a ser praticada.

Para o governo da frente democrática, é dimensão crucial do diálogo com os setores médios enredados no antipetismo.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

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