segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A ERA DA IRA

Nelson Motta, O GLOBO
Quem acredita que com FH, Lula, Dilma, e até Temer, o Brasil esteve à beira do socialismo, como disse Bolsonaro na ONU, ou não sabe o que é socialismo ou não sabe o que é Brasil. Para ele, socialismo, comunismo, é tudo a mesma merda: vermelho é vermelho, pô. Ele é verde e amarelo. Verde-oliva.
Como os soldados japoneses que ficaram perdidos na selva e só foram resgatados 20 anos depois do fim da Segunda Guerra, Bolsonaro ressurge das brumas da Guerra Fria vendo comunistas e conspirações contra ele e sua família em toda parte. Fala coma certeza de que ninguém na Assembleia Geralda ONU leu jornais, ouviu rádio, viu televisão e navegou na internet nos últimos 50 anos.
Chegou a ser covardia tripudiar sobre a devastada Venezuela e a alquebrada Cuba como exemplos do fracasso do comunismo, e covardia maior não mencionara terrivelmente comunista China e seu espetacular sucesso internacional, nossa querida maior parceira comercial. Talvez a China seja a síntese do melhor do comunismo e do capitalismo, enquanto o Brasil parece sempre adotar a pior parte do socialismo estatizante e do capitalismo liberal m amador no Estado. Questão de gestão.
A melhor parte do progresso do Ocidente não veio pela colonização, mas pelo comércio internacional e o trânsito de ideias. Substituir o internacionalismo pelo patriotismo provinciano estimula competições e guerras e implanta aerado cada um por sie todos contra todos, sob alei domais forte.
No Brasil, nunca o “nós contra eles” foi tão exacerbado, e nefasto, num momento em que um terço da população adora Bolsonaro, um terço detesta, e um terço não gosta nem desgosta. Nesse equilíbrio precário, que pode mudar rapidamente, todo mundo depende de todo mundo, e nenhuma oposição pode fazer nada sozinha. Talvez por isso não faça nada.
Pode ser que a economia, o emprego e os salários algum dia melhorem, que haja alguma ordem e progresso, mas muito tempo vai passar até que fechem as feridas e os ressentimentos dessa era da ira.
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DISCURSO ATABALHOADO

Do O GLOBO
RIO — O discurso do presidente Jair Bolsonaro na cerimônia de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), na última terça-feira, foi um dos mais longos dos 147 que havia feito até aquele dia e, também, o de maior repercussão nacional e mundial. Mas engana-se quem pensa que o repertório usado para uma plateia de líderes estrangeiros difere do que aparece em cada um dos discursos do chefe de Estado em eventos e atividades no Brasil e outras viagens internacionais. Analisados em detalhe pelo GLOBO, com a ajuda de acadêmicos, chega-se à conclusão de que a fala oficial de Bolsonaro gira ao redor das mesmas palavras e ideias, muitas usadas durante a campanha e voltadas para sua base eleitoral, mas, também, a um mundo conservador que vem crescendo.
No total, os 147 discursos, desde 1º de janeiro, totalizam dez horas e 47 minutos. Uma média de 4,27 minutos por dia. O GLOBO utilizou as transcrições disponíveis no site da Presidência da República.
Na análise quantitativa, alguns elementos chamam a atenção e mostram para onde vai o pensamento do presidente: a palavra brasileiro foi mencionada 149 vezes, militar, 141 e Exército, 137. As mais presentes nos discursos não surpreendem: Brasil (1.079) e Deus (360).
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O LOBO E O CORDEIRO NO STF

Artigo de Fernando Gabeira
A semana que passou foi complicada demais para caber num só artigo. Começou com aquele discurso de Bolsonaro na ONU e, no final, nem se falava mais nele.
Estava no Ceará cobrindo um encontro dos povos do mar. Nele, discutia-se o conhecimento das populações litorâneas: cultivo de algas para cosméticos e alimentação ou mesmo fazer um bonito lustre com escamas de um peixe grande, chamado lá de camburubim. No final do encontro, as praias nordestinas foram invadidas por um vazamento de óleo, morte de tartarugas e tudo mais.
Bolsonaro voltou de viagem, e dela ficou apenas sua briga com o cacique Raoni e a adolescente sueca Greta Thunberg, atacada pela família presidencial.
O grande fato foi produzido pelo STF, que aplicou uma derrota na Operação Lava-Jato e todas as outras que combatem a corrupção no Brasil.
Alguns processos serão anulados por uma filigrana jurídica: o condenado não apresentou suas declarações finais depois dos delatores.
A discussão desse tema poderia aperfeiçoar as coisas daqui para a frente. Mas anular processos que desviaram milhões só por causa da ordem final é apenas o sinal do momento.
A conjuntura mudou. A correlação de forças é outra. Os vazamentos do Intercept enfraqueceram a Lava-Jato, da mesma forma que a eleição de Bolsonaro, embora o discurso seja outro, e ele tenha integrado Moro ao seu governo.
Não adianta discutir filigranas quando a correlação de forças muda. A convergência de juízes com políticos e o próprio presidente tornou-se forte. Criou uma situação de fábula. O lobo comeria o cordeiro, independentemente do argumento. Como recompor, por onde recompor o sistema defensivo da sociedade para se proteger do sindicato dos ladrões?
No meu entender, e já escrevi isso, o primeiro grande golpe sofrido pela sistema anticorrupção partiu de Tofolli em conluio com Bolsonaro.
Ao neutralizar o Coaf, Tofolli quebrou o tripé da Lava-Jato, que era composto de PF, Receita e Ministério Público. Não se pode mais informar sobre operações financeiras suspeitas, sem autorização da Justiça.
No meu trabalho cotidiano, uso o tripé sempre que preciso de mais estabilidade na imagem. O tripé da Lava-Jato tinha uma função mais importante ainda: permitia ver coisas que escapam ao olho nu.
O que Tofolli fez com o apoio de Bolsonaro para livrar a cara do filho senador, Flávio, tumultuou inúmeras investigações no país e rompeu com alguns compromissos internacionais do Brasil no combate à lavagem de dinheiro.
Como acentuei, o bombardeio à Lava-Jato não significa apenas libertar os presos, mas reduzir as possibilidades de prender futuros envolvidos em corrupção. O velho esquema que domina o Brasil ganhou nova cara, encarnou-se em novos personagens, estruturou-se numa ampla frente e está pronto para reiniciar a roubalheira. Só que as condições não são as mesmas do passado. O nível de informações cresceu, a transparência se ampliou por força de lei.
Juízes, políticos e até jornalistas empenhados em derrotar o aparato de investigação contam apenas com um certo cansaço da sociedade. Ignoram as dimensões internacionais de sua escolha. No caso de lavagem de dinheiro, vamos nos isolar.
Aliás, já estamos isolados por causa das opções de política ambiental e pelo reposicionamento do Brasil no campo da extrema direita.
Quanto menos preparados, mais arrogantes são os governantes brasileiros. Tenho criticado a decisão de Bolsonaro de tirar os radares das estradas. Os especialistas também o fizeram. Meu ponto de vista é o de quem vive nas estradas.
Soube na semana passada que o número de acidentes aumentou, algo que não acontecia desde 2011. A quem apelar se a Justiça não se interessa, e os políticos querem apenas ganhar votos reduzindo multas? Em situações extremas, como foi a da África do Sul num determinado momento, intelectuais se voltam para o exterior, pedindo socorro.
Desfrutamos de liberdade de expressão. A sociedade brasileira não é uma coitadinha dominada por saqueadores. Ela encontrará o seu caminho. O apoio internacional é apenas um complemento. De nada adianta, sem que se faça a lição de casa.
Artigo publicado no jornal O Globo em 30/09/2019
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LÁ COMO CÁ

Elena Landau, O Estado de S.Paulo
Em seu discurso na ONU, Bolsonaro foi ele mesmo. Em tom quase belicoso confirmou, com orgulho, os desacertos das suas políticas internas e externas. Mais um constrangimento que se junta à lista que marca sua presidência. A lista é longa e ampla nos temas, do desrespeito aos direitos humanos à negação da ciência, o festival é assustador. A começar pelo pouco apreço à vida dos seus “inimigos” – dos esquerdistas aos presos comuns –, refletido nas suas homenagens a ditadores e torturadores, e o aplauso à degola em presídios.
Bolsonaro transforma em inimigos todos que divergem de suas convicções. Há limitação à liberdade de expressão, abandono do compromisso com um estado laico e demonização da mídia, nacional e internacional. Revela enorme preconceito com sua obsessão com homossexualidade e questões de gênero. Na cultura, ele ignora artistas reconhecidos, como fez com o prêmio Camões dado a Chico Buarque, ou na indiferença com a morte de João Gilberto. Como o exemplo vem de cima, o diretor da Funarte se sentiu à vontade para ofender Fernanda Montenegro. Na sua visão, os comunistas estão por todos os lados, crescendo de forma inversamente proporcional à piora da avaliação do governo.
O presidente vai radicalizando no discurso autoritário, se recolhendo ao grupo que, quase religiosamente, ainda o apoia. Aos amigos, tudo. Cargos são distribuídos sem critério além da fidelidade absoluta, gerando o que se vê na condução dos Ministérios da Educação, Relações Exteriores e Meio Ambiente. Para a família não há limites. A ocupação do governo com pautas pessoais é evidente. A intervenção nos órgãos de fiscalização, como Coaf, Receita e PGR, ou a tentativa de afastar o diretor-geral da Polícia Federal, foram feitas quando tais instituições chegaram próximas dos seus. Não enrubesceu ao indicar o filho como embaixador, apesar do seu despreparo, confirmado pelas rotineiras postagens nas redes sociais.
O terraplanismo domina ações públicas implementadas com base em achismos. Bolsonaro acaba, numa canetada, com anos de experiência acumulada em diversas áreas, como o uso da cadeirinha para crianças nos carros e os ataques ao Inpe. E o Brasil vai virando piada, isolado e retirado dos debates mais relevantes na economia mundial, do acordo UE-Mercosul à Cúpula do Clima na ONU. Seu discurso reforçou esse caminho.
O obscurantismo das ideias do presidente poderia ser apenas tema de paródias, se ele fosse uma rainha da Inglaterra. O tratamento dispensado a quem dele discorda é grave. Ameaças explícitas ou veladas levam à autocensura em diversas instituições, consequência do um instinto de preservação, ou covardia, de alguns funcionários públicos. Ninguém escapa, nem mesmo o alto escalão ministerial, como mostra a passividade dos ministros Moro e Guedes às intervenções nas suas áreas. Essa censura silenciosa que afeta a Receita Federal ou a cultura, em tão pouco tempo de governo, é um retrocesso democrático claro. Calar a divergência, a crítica, o debate é o caminho para o autoritarismo.
Há quem ainda argumente que uma suposta agenda econômica liberal compense tudo isso. Esse discurso não faz sentido algum. A economia vai mal, com crescimento medíocre e desemprego elevado. O Executivo está confuso e inoperante. A reforma da Previdência só andou porque a Câmara assumiu o protagonismo, como vem fazendo com a reforma tributária.
A abertura comercial não veio e se resume a concessões de ex-tarifários, regime em que a redução de tarifas se aplica a bens sem produção nacional, e é continuidade de uma política que até Dilma praticava. A privatização não existe para além do anúncio de uma lista tímida de empresas. A reforma do Estado até o momento é um conjunto de ideias colocadas de forma desorganizada na mídia. O novo pacto federativo é um mistério a ser desvendado.
Tendo entregue bem menos do que prometeu, nem mesmo Guedes está protegido dos humores de Bolsonaro, que anda impaciente com a falta de recursos para investir. Foi obrigado a demitir Marcos Cintra por conta da CPMF, tributo de seu gosto e que, aliás, continua defendendo. As promessas já não encontram o mesmo eco na sociedade. Como o menino pastor que gritava lobo, a credibilidade vai sendo perdida.
Ainda que a economia estivesse indo de vento em popa, e uma agenda verdadeiramente liberal estivesse em curso, nada justifica ignorar os arroubos autoritários de Bolsonaro. Sem democracia não há liberalismo, que é muito mais que uma receita econômica. Não existe a separação entre economia e o resto. O chamado milagre econômico dos anos militares, que terminou com hiperinflação e a pior distribuição de renda do mundo, não apaga as monstruosidades cometidas, nem justifica o AI-5, como querem alguns.
*Economista e advogada
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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

MORRE JACQUES CHIRAC

Do G1
O ex-presidente Jacques Chirac, que governou a França entre 1995 e 2007, morreu nesta quinta-feira (26) aos 86 anos. A Assembleia Nacional fez um minuto de silêncio em sua homenagem imediatamente após o anúncio da morte feito pelo genro do ex-presidente.
"Ele morreu cercado por entes queridos. Pacificamente ", declarou Frédéric Salat-Baroux, marido de Claude Chirac, sem especificar a causa da morte.
Desde que sofreu um derrame, em setembro de 2005, quando ainda era presidente da França, os problemas de saúde de Jacques Chirac se sucederam. Após deixar o Palácio do Eliseu, em maio de 2007, ele foi hospitalizado várias vezes.
Ao passar 12 anos na presidência, Chirac se tornou o chefe de Estado mais longevo no cargo depois de seu antecessor socialista, François Mitterrand. Ele foi também duas vezes primeiro-ministro, três vezes prefeito de Paris, ministro em diversas oportunidades, além de criador e líder do partido Reunião Pela República (RPR). Sua morte encerra um capítulo da história da direita francesa e da V República.
Em janeiro de 2014, sua mulher, Bernadette Chirac, estimou que o marido, que sofria de “problemas de memória”, não falaria mais em público.
A última vez que Chirac apareceu oficialmente em público foi em novembro de 2014, em um evento da fundação Chirac ao Serviço da Paz, que ele fundou em 2008. Enfraquecido, apoiado por um segurança, ele foi muito aplaudido quando chegou à cerimônia. Recentemente, a morte de sua filha mais velha, Laurence, aos 58 anos, o abalou profundamente.
História
Jacques Chirac nasceu em Paris, em novembro de 1932. Filho único, ele cresceu na Corrèze, no centro-oeste francês.
Na juventude, que teve como pano de fundo a Guerra Fria nos anos 1950, foi simpatizante do comunismo. Ele assinou o Apelo de Estocolmo pró-URSS contra a bomba atômica. Ele chegou a estudar nos Estados Unidos e, ao retornar à França, concluiu a trajetória clássica de estudos da elite francesa na prestigiosa Escola Nacional de Administração (ENA). Em em 1956, Chirac se casou com uma aristocrata, Bernadette Chaudron de Courcel, com quem teve duas filhas e adotou uma terceira.
No fim da década de 1950 cumpriu o serviço militar na Argélia, onde participou nas operações militares contra os independentistas, o que rendeu uma medalha de honra.
Sua carreira política começou no conselho municipal de Sainte-Féréole, em Corrèze, em 1965. Depois, foi eleito deputado.
Em 1967, ele passou a integrar um dos últimos governos do general De Gaulle. Como secretário do Estado para o Trabalho, negociou com os sindicatos aumentos salariais durante os distúrbios de maio de 1968. Rumores dizem que ele comparecia armado às reuniões com a CGT, o poderoso sindicato.
Em 1974, aos 41 anos, se tornou o primeiro-ministro de seu grande rival na direita, o presidente Valéry Giscard d'Estaing, pró-Europa e liberal, que permitiu pouca margem de manobra para governar. Chirac renunciou ao cargo em agosto de 1976.
Adepto de um "trabalhismo à francesa", chamava Giscard e seus simpatizantes de "partido do exterior". Herdeiro autoproclamado do general De Gaulle, Chirac fundou o próprio partido, Reunião Pela República (RPR), venceu a prefeitura de Paris, em 1977, e disputou a presidência pela primeira vez em 1981.
Convertido ao liberalismo dos anos Thatcher e Reagan, Jacques Chirac voltou a ser primeiro-ministro em 1986 em um governo de "coabitação" com o presidente socialista François Mitterrand, que o derrotou com grande folga nas eleições de 1988.
Em 1995, ele foi eleito presidente pela primeira vez e, em 2002, foi reeleito para um segundo mandato, após uma eleição que marcou a história recente francesa. Para surpresa geral, o presidente da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen, chegou ao segundo turno. Chirac concentrou, então, o apoio dos opositores da direita radical e obteve 82,21% dos votos.
Herança chiraquiana
Internacionalmente, Jacques Chirac entrou para a história como o presidente que ousou resistir aos Estados Unidos e não entrar na guerra no Iraque em 2003. Ele também foi o primeiro presidente da República a reconhecer a responsabilidade do Estado francês na deportação dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
A França da era Chirac foi um dos primeiros países desenvolvidos a apoiar a candidatura do Brasil a uma cadeira do Conselho de Segurança da ONU. Esse apoio, aliás, foi ressaltado durante sua visita à Brasília, em maio de 2006, quando foi recebido pelo presidente Lula. Foi também durante seu último mandato que foi realizado, em 2005, o bem sucedido "Ano do Brasil na França", que comemorou os laços históricos entre os dois países.
Em relação a Europa, a política de Chirac é mais contrastada. Sua indefinição é apontada como responsável pelo não francês ao referendo de 2005 sobre a Constituição europeia, o que o enfraqueceu politicamente. Mas o ex-presidente também defendeu a entrada no bloco de outros países, principalmente do leste europeu.
Condenação judicial
O ex-presidente também tem uma mancha em seu histórico político. Chirac foi o primeiro chefe de Estado francês a ter sido condenado pela Justiça. Em 2011, depois que tinha perdido sua imunidade como presidente, ele foi condenado a dois anos de prisão, com direito a sursis, por empregos-fantasmas quando era prefeito de Paris, entre 1977 e 1995. Já sofrendo da doença degenerativa, ele obteve autorização para não comparecer ao tribunal.
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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

BOLSONARO EM NOVA IORQUE

Artigo de Fernando Gabeira
Bolsonaro deve falar amanhã em Nova York. É o acontecimento da semana, embora as semanas no Brasil surpreendam com frequência.
Escrevi um artigo tentando elaborar sobre o contexto que espera Bolsonaro. No passado não era assim. Os presidentes brasileiros inauguravam a sessão da ONU com discurso protocolar e bocejos na plateia.
Sarney foi criticado por citar um obscuro poeta maranhense em seu discurso. Se o problema agora fosse esse, nem valeria escrever sobre o tema.
Bolsonaro ignora o ímpeto das forças que despertou com sua política amazônica. Ninguém o avisou. Seu chanceler acha que a Nasa não distingue fogueira de queimada. Internamente, estimulou os predadores. Era evidente que o enfraquecimento da fiscalização, a promessa de trazer mineradoras americanas para atuar na Amazônia, tudo isso contribuiu para a frase que estava no ar: da próxima vez o fogo.
Nos Estados Unidos houve quem afirmasse que as queimadas na Amazônia são uma grande ameaça à segurança nacional e devem ser tratadas como armas de destruição massivas.
Macron recuperou, timidamente, o discurso de Mitterrand sobre soberania limitada. Mitterrand a mencionou em dois casos: destruição ambiental e grandes violações dos direitos humanos.
Esse debate aparece pouco no Brasil. Mais concretas são as consequências econômicas. Fundos de pensão estrangeiros, que administram trilhões, exigem uma política de preservação da Amazônia. No meio da semana, a Áustria fez saber que não apoiaria o tratado da Europa com o Mercosul por razões ambientais.
São muitas as oportunidades que o Brasil pode perder se insistir no tom de Bolsonaro. O centro do debate não é a soberania, mas o que o Brasil faz dela numa região específica que interessa ao planeta.
Num contexto tradicional de buscar as melhores vantagens para o país, a Amazônia é dos maiores trunfos para nossa diplomacia. Basta reconhecer como legítima a preocupação internacional, que não é apenas dos líderes mundiais, mas também de seus eleitores.
A partir daí, é possível definir um amplo campo de cooperação. Só não fico aflito porque sei que uma coisa é Bolsonaro e suas redes; outra é o Brasil real. Nove governadores da Amazônia Legal falam pela região e desenvolvem uma política própria. Sabem melhor o que estão fazendo porque conhecem a Amazônia e se preocupam com a sorte de 28 milhões de pessoas que vivem na região.
De uma certa forma, isso acontece também com o Trump nos Estados Unidos. Os governadores que levam a sério as mudanças climáticas desenvolvem uma política própria.
O problema, no caso brasileiro, é que Bolsonaro é um presidente bastante conhecido no exterior. Nova York não se importa tanto com a ONU e os discursos. Mas a imprensa e a televisão certamente vão se interessar. Será uma semana de grandes debates sobre o clima na ONU. Manifestações e tudo mais.
Não sei precisamente o que Bolsonaro falará. Mas, se falar o que pensa, vai escandalizar; se falar o que não pensa, talvez não seja convincente.
Se pelo menos citasse poetas maranhenses. O passivo já é grande. É preciso reconstruir a relação com os europeus, afastar as sempre presentes ameaças de boicote comercial.
Bolsonaro vê a Amazônia com os olhos dos fazendeiros que o apoiam. Critica os fiscais e ignora um campo em que precisa crescer: o combate à biopirataria.
O centro da tragédia de sua política amazônica é subestimar o conhecimento que a floresta pode produzir e o já acumulado pelos seus habitantes. No Pará existe um homem que cria cobras e vende seu veneno para a indústria farmacêutica. Ganha bem, e o veneno tem inúmeras utilidades medicinais. Novas espécies são identificadas pelos pesquisadores, às vezes cinco por semana.
O conhecimento da Amazônia é o instrumento estratégico que o Brasil precisa manobrar, definindo a cooperação estrangeira, direitos autorais de povos da floresta, enfim exercendo sua soberania nos fatos onde realmente ela interessa, e não em discursos para entusiasmar eleitores, cada vez menos entusiastas, cada vez mais envoltos nas brigas internas.
Quando não há horizontes, a sensação é de naufrágio, que, aliás, se define mesmo como a perda do horizonte.
Artigo publicado no jornal O Globo em 23/09/2019
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sexta-feira, 20 de setembro de 2019

SOBERANIA EM NOVA YORK

Artigo de Fernando Gabeira
Os discursos de presidentes brasileiros são ouvidos com frieza na ONU. É a abertura da sessão, quase uma formalidade. O de Bolsonaro tende a ser uma exceção. Não por suas qualidades oratórias, mas pelas circunstâncias que o cercam.
Leio que o tom do discurso será conciliatório, com ênfase na defesa da soberania. Um tom conciliador é sempre bem recebido. O próprio conceito de soberania nacional, embora definido há séculos por Jean Bodin, foi ratificado no pós-guerra pela ONU ao reconhecer o direito de autodeterminação dos povos.
Em termos diplomáticos, Bolsonaro tem dito barbaridades, se consideramos que fala pelo País. Zombou da mulher de Macron, ironizou a Alemanha, criticou a Noruega e defendeu a ditadura de Augusto Pinochet. Pesa contra ele, também, sua desconfiança da ONU e de instrumentos internacionais, incluídos os que trabalham com as mudanças climáticas.
Embora outros biomas, como o Cerrado e o Pantanal, estejam igualmente em chamas, a questão da Amazônia é a mais importante. O exercício da soberania nacional sobre um governo que administra uma extensa área indispensável ao planeta coloca inúmeras questões.
Como se vê a soberania no Brasil? É um debate que existe também nos EUA. Nele, ambas as partes defendem a soberania. Mas uma delas a vê fortalecida com a cooperação internacional e a outra, com o isolacionismo. Como Bolsonaro navegará entre esses polos não sei exatamente.
O conceito puro de soberania vem sendo questionado. Lembro-me da primeira menção a esse questionamento numa conferência na Holanda. Já naquele momento Mitterrand experimentava a expressão soberania limitada, aplicável em pelo menos dois setores: a destruição do meio ambiente e o desrespeito maciço dos direitos humanos.
Agora, no cenário norte-americano, vejo uma nova forma de questionar a soberania. Enquanto alguns senadores falavam em boicote comercial, alguns articulistas e acadêmicos afirmaram que a destruição da Amazônia é um ataque à segurança nacional dos EUA. Um deles afirmou que as queimadas podem ser vistas como arma de destruição em massa.
Tudo isso se dá no campo democrático. Mas é o que vai disputar as eleições com Trump e, segundo as pesquisas, com chances de vitória, embora seja muito cedo para falar disso.
Aos poucos, a questão não é mais o conceito de soberania a ser questionado, mas posto contra outro de grande alcance nos EUA: a segurança nacional.
A expressão arma de destruição em massa certamente é um cálculo sobre os prejuízos humanos e ambientais. Pode-se discordar da análise. Mas o fato é que se trata de uma expressão perigosa, o Iraque que o diga. Com ou sem armas de destruição em massa, Saddam Hussein foi para o espaço.
Bolsonaro já é uma espécie de vilão na imprensa internacional. Trabalhou para isso e parece não se importar muito com as consequências para a imagem do Brasil. Afinal, os estrangeiros não votam.
A julgar pelas intervenções do ministro Ernesto Araújo, o tom será de negação das mudanças climáticas, inexistentes ou exageradas. Segundo ele, a Nasa não consegue distinguir uma queimada de uma fogueira. Seus sensores devem pirar no Nordeste com as festas juninas.
Li que Araújo será o principal formulador do discurso. Li, também, que Araújo consultou Steve Bannon para se inspirar. Bannon certamente vai querer fortalecer uma coalizão de extrema direita da Hungria ao Brasil, passando por partidos como o de Marine Le Pen, na França, e pela extrema direita latino-americana. Se isso transparecer no discurso de Bolsonaro, será um contrabando, uma vez que o partido de Bolsonaro pode ser de extrema direita, mas a política nacional, não. É a mesma cantilena do passado, a dificuldade no governo do PT de levar uma política internacional diferente da visão partidária.
Esta passagem por Nova York, embora breve, é um teste para Bolsonaro, com repercussões em nossa vida política. Ele já pensou em visitar a cidade em outras circunstâncias. Numa delas, iria ao Museu de História Natural, onde seria homenageado. Foi rejeitado.
Imagino que as pessoas em Nova York não se importem muito com o que acontece na ONU nem se interessam pelos discursos que se fazem ali. Mas desta vez, creio, a presença de Bolsonaro falando como presidente do Brasil interessa aos jornais e à televisão. Impossível prever um desfecho, mas dentro dos limites é possível elaborar sobre o contexto em que esta fala de Bolsonaro se coloca.
Lembro-me das críticas a Sarney por citar um obscuro poeta maranhense no seu discurso na ONU. Pecado venial, mesmo porque não estavam prestando tanta atenção assim a um discurso protocolar. Os tempos de terraplanismo, negação do aquecimento global, da diversidade da culturas – enfim, tantas armadilhas – podem nos fazer sentir saudades dos tempos em que o único reparo era o nome de um poeta maranhense.
Um caminho que me parece correto seria reconhecer a legitimidade da preocupação internacional com a Amazônia, e não descartá-la apenas denunciando interesses escusos. Outro passo seria contar com a cooperação de outros países para preservá-la de forma sustentável e inclusiva.
Não há contradição entre cooperação multilateral e soberania, desde que os objetivos sejam idênticos: manter a floresta em pé, recompor parte dela, explorar seus recursos de forma sustentável, melhorar as condições de 28 milhões de pessoas em nove Estados do País.
Esta me parece ser a posição de todos os governadores da Amazônia Legal. Falando em nome do Brasil, Bolsonaro não pode ignorá-la. E teria de defendê-la de forma bastante convincente, pois todos os olhos e ouvidos são conhecedores de sua biografia política.
Estarão esperando um lance para reconhecerem o Bolsonaro que têm na cabeça. Seria preciso que desaparecesse por trás de um discurso sensato. Mas tenho minhas dúvidas.
Artigo publicado no Estadão em 20/09/2019
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quinta-feira, 19 de setembro de 2019

BOLSONARO À CAÇA DO TRAIDOR

Do Blog do Noblat, VEJA
Reforma ministerial adiada
O presidente Jair Bolsonaro desembarcou, ontem, em Brasília furioso com a informação de que encomendou aos auxiliares que o cercam mais de perto o esboço de uma ampla reforma ministerial que pretende fazer em breve. Está à caça da fonte, ou das fontes, que vazaram a informação para as jornalistas Helena Chagas e Lydia Medeiros, editoras do boletim TAG Reporter. Este blog obteve a mesma informação.
Recomenda-se ao presidente que amplie a investigação que pretende fazer em busca do que chama de “traidor” infiltrado entre as pessoas de sua confiança. A quem poderia interessar o vazamento da notícia? Resposta óbvia: a quem desejasse abortar o que estava sendo estudado. Ou porque seria prejudicado com a reforma ou simplesmente porque discordava dela a essa altura. O governo passaria cedo demais o recibo de que vai mal.
O episódio da reforma negada por Bolsonaro, especialista em se desdizer e em desmentir o que com frequência acaba se confirmando adiante, lembra episódio parecido que ocorreu em 1984 quando a eleição de Tancredo Neves para presidente era dada como certa. Em um esforço desesperado para vencer, Paulo Maluf, candidato do regime militar, convenceu o presidente João Figueiredo a fazer uma reforma ministerial a seu favor.
A informação vazou para Tancredo. Então pela primeira e última vez na sua vida, ele deu uma entrevista coletiva em “off”. Repassou a informação para um grupo de repórteres dos maiores jornais da época mediante a condição de não ser citado. Deu o nome dos ministros que seriam demitidos e dos que entrariam com a missão de ajudar Maluf. Ao ver a informação publicada no dia seguinte, Figueiredo desistiu da reforma.
Não se cobre a Bolsonaro conhecimentos históricos nem sabedoria política em excesso, apanágio de figuras que existiram no passado e de raras que ainda vivem. Bolsonaro é binário – preto ou branco, terra ou ar, amigo ou inimigo. É da sua formação. Paraquedista faz parte das chamadas Forças Especiais do Exército. O governo está repleto deles. Não é estimulado a pensar muito e tampouco a discutir. Ordem é ordem. Quando acionado, cai atirando para matar ou morrer. Selva!
Fora do hospital antes da hora
Tudo bem
Seria um exagero dizer que o presidente Jair Bolsonaro se deu alta do hospital onde foi internado em São Paulo para mais uma operação por conta da facada que levou há um ano em Juiz de Fora.
Mas se tivesse dependido unicamente dos médicos que cuidam dele, Bolsonaro ficaria por lá mais alguns dias. Sua recuperação foi boa e não há indicação de retrocesso.
Bolsonaro voou de volta a Brasília porque, na sua paranoia, enxerga perigos por todos os lados e não confia em ninguém – salvo na mulher e nos seus filhos.
Está disposto a fazer o que disse – comparecer à abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, nem que seja em cadeira de rodas. Um bom paraquedista não foge ao combate.
Os médicos acham cedo demais para que ele viaje – mas que médicos dizem não a um presidente da República? Está para nascer o primeiro. Não disseram não a Tancredo Neves e foi o que se viu.
O racha em meio aos bolsonaristas preocupa Bolsonaro e os garotos. Aumenta entre os devotos do capitão a desconfiança de que esfriou seu compromisso com o combate à corrupção.
E tudo por causa do envolvimento de Flávio com desvio de dinheiro público, do acordo entre Bolsonaro e o ministro Dias Toffoli para salvar Flávio, e, por consequência, o enfraquecimento de Moro.
A viagem a Nova Iorque foi esvaziada. Descartaram-se encontros com Bolsonaro pedidos por chefes de Estado. O presidente preferiu se reunir com generais americanos no Texas.
Até lá, deverá estar se alimentando normalmente. No momento, alimenta-se de coisas cremosas. Evoluirá para as pastosas. Está proibido de falar muito. Mas como forçá-lo a obedecer?
Resta aos devotos e às pessoas de bom coração torcerem para que tudo dê certo. Selva! Ou melhor: Amém!
No meio do caminho tinha um tanque
Witzel invadiu os domínios do capitão
Anteontem, ainda hospitalizado, o presidente Jair Bolsonaro negou que tivesse ordenado ao PSL carioca a retirada do apoio ao governador Wilson Witzel (PSC). Ontem, o PSL carioca anunciou que seus 12 deputados estaduais deixarão de apoiar Witzel.
Nada de mais. Nada de original. Bolsonaro não tem compromisso com o que diz. E por não ter, orientou seus correligionários a dizerem que o rompimento se deve ao fato do governador do Rio ter revelado que será candidato a presidente em 2022.
Não foi por isso. É fake! Bolsonaro foi o primeiro a saber que Witzel pretende se candidatar à sua sucessão. Mas desde que ele, Bolsonaro, não seja candidato. Como Bolsonaro soube disso? Ouviu do próprio governador ao sobrevoar o Rio em um helicóptero ao lado dele.
Testemunhas da confissão de Witzel: agentes de segurança de Bolsonaro e o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. Bolsonaro ouviu a confissão calado, e não gostou. Ela serviu para aumentar sua desconfiança e antipatia pelo governador.
O copo d’água transbordou quando Bolsonaro assistiu Witzel pontificar no desfile militar de 7 de setembro a bordo de um tanque de guerra do Exército. O que é isso? Witzel quer fazer média com os militares, reduto eleitoral de Bolsonaro? Pode parar!
E o PSL desembarcou
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GUEDES, OUÇA O SILÊNCIO DE SIMONSEN

Elio Gaspari, O GLOBO
O repórter Ancelmo Gois contou: o ministro Paulo Guedes caminhava pela orla do Leblon quando foi interpelado por alguns cidadãos. Nada como o que acontecia a ministros petistas em restaurantes, mas, compreensivelmente, ele se incomodou: “Na terceira abordagem como essa, eu largo tudo e vou embora. Aí vocês vão ver o que é bom, como é que fica.”
Dias depois, o secretário da Receita, Marcos Cintra, foi defenestrado. Essa era uma pedra cantada, pois o doutor era um monotemático defensor de uma nova CPMF, mesmo sabendo que o presidente da República detestava a ideia. O chamado “mercado” fingiu acreditar que o episódio estava circunscrito a essa divergência, mas o problema ia muito além. Guedes também foi um defensor do imposto sobre transações e sabia há meses que essa girafa não passa no Congresso. Até aí, nada demais, desde que o “Posto Ipiranga”, além de vender a gasolina da CPMF, venda também diesel, etanol, aditivos, refrigerantes e Aspirinas.
Só Guedes sabe o tamanho do seu desconforto, mas a pior coisa que pode acontecer a uma economia sonâmbula é uma explosão de posto de gasolina, porque irá junto o quarteirão: “Aí vocês vão ver o que é bom, como é que fica.”
Fica ruim, mas foi Guedes quem se amarrou em convicções inviáveis (a CPMF) e promessas visionárias (zerar o déficit primário ao fim deste ano).
As calçadas do Rio têm história. Guedes rogou sua praga a poucas centenas de metros das areias onde, num fim de semana de agosto de 1979, apareceu a alva figura do professor Mário Henrique Simonsen, que acabara de se libertar do Ministério da Fazenda do general João Baptista Figueiredo.
Simonsen nunca ameaçou. Avisou que ia embora no dia 2, chamou o caminhão da mudança, demitiu-se no dia 9, tomou o avião e foi para a praia.
Essa é a liturgia da saída, mas desde que o país voltou à democracia, sabe-se que a questão está sobretudo na liturgia da entrada de um novo ministro. Paulo Guedes é o 20º ministro da Economia desse período. Três deles foram marcantes (Fernando Henrique Cardoso, Pedro Malan e Antonio Palocci).
Somados, ficaram 12 anos na cadeira. Dos 17 outros, alguns tinham uma perigosa característica: pouca biografia para o cargo e muita confiança pessoal do presidente que os escolheu. É aí que mora o perigo. Ao mandatário, pareciam a melhor solução para a hora, sobretudo porque não lhe trariam maiores problemas. Basta olhar para trás e lá está a ruína que produziram.
A ideia segundo a qual os ministros são sábios que sabem fazer contas é uma lenda urbana. Para ficar num exemplo estrangeiro e passado, durante alguns anos da Depressão dos anos 30 o mundo parecia estar nas mãos dos três gênios que comandavam as economias de Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha.
O único que tinha a cabeça no lugar era o nazista Hjalmar Schacht. O americano Benjamin Strong estava mal de saúde, pendurado em doses de morfina. O inglês Montagu Norman achava que tinha o poder de atravessar paredes. Doidos existem, e conseguem ser convincentes, sobretudo quando do outro lado do balcão está alguém que se sente pressionado por maus números e pela falta de projeto. Nessa hora, tentam-se até rezas ou poções.
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O FUNDÃO ELEITORAL, O CARGUINHO DO FILHO E A REPÚBLICA DO MISERÊ

Bruno Boghossian, Folha de S.Paulo
O procurador que chamou seu salário de R$ 24 mil de “miserê” poderia ser nomeado porta-voz de um grupo que está espalhado pela máquina pública. Sua desfaçatez representaria bem os partidos que tentaram engordar seus caixas em mais um ano de crise. Serviria também ao político que move montanhas para dar um cargo ao próprio filho.
Numa cultura de privilégios e cegueira deliberada, servidores, parlamentares, dirigentes partidários e o presidente da República tratam o Estado como patrimônio pessoal.
Um integrante do Ministério Público de Minas achou razoável fazer queixa de sua remuneração numa reunião do órgão. “Já estou baixando meu padrão de vida bruscamente, mas eu vou sobreviver”, afirmou. Num lamento, ele disse que precisou reduzir seus gastos com cartão de crédito para R$ 8.000 por mês.
Certas autoridades costumam deixar de lado o pudor quando discutem seus interesses financeiros, mesmo quando as contas do governo estão na pindaíba. A manobra desastrada dos partidos para colocar até R$ 3,7 bilhões no fundo eleitoral e reduzir as regras de fiscalização desse dinheiro é uma face desse pouco-caso.
O país ainda não conseguiu elaborar uma maneira justa e responsável de financiar as campanhas depois que foram proibidas as doações empresariais. É inexplicável, porém, que o Congresso tenha trabalhado só para pegar mais recursos enquanto, na surdina, afrouxava as regras para a prestação de contas.
Mas a república do miserê não se manifesta só em busca de moedas no cofre. É a mesma força que impulsiona Jair Bolsonaro a colocar a Presidência a serviço do esforço para emplacar um filho na embaixada brasileira em Washington e a interferir em órgãos de investigação para proteger outro de seus rebentos.
Governantes que atuam em causa própria são uma tradição brasileira. Alguns podem tentar se esconder atrás da retórica da nova política e de reformas econômicas, mas dificilmente conseguirão disfarçar suas ambições particulares.
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SALÁRIO MÍNIMO, CUSTO MÁXIMO

Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo
Tem todo o jeitão de balão de ensaio que será esvaziado por Jair Bolsonaro em breve a ideia de congelar o salário mínimo. Este tem sido um método recorrente do ministro da Economia, Paulo Guedes, e de sua equipe: jogar a proposta no ar para ver se cola.
Do ponto de vista do impacto fiscal, o mínimo não tem nada de diminuto. Cada R$ 1 de aumento equivale a R$ 300 milhões no Orçamento. A indexação de benefícios como aposentadoria e Benefício de Prestação Continuada (BPC) ao mínimo explica a relação explosiva e por que a equipe econômica olha para essa rubrica com vontade de mudá-la.
Mas não é simples do ponto de vista político esta equação. A política de valorização real do mínimo, impulsionada a partir de 2007 com a regra, que vigorou até este ano, de reajustes anuais pela inflação mais a variação do PIB dos dois anos anteriores, ajudou na redução da desigualdade social naquela década. Mais: foi um combustível eleitoral poderoso para o PT, considerado mais relevante para a reeleição de Lula e as duas eleições de Dilma Rousseff que o Bolsa Família.
É fato que o efeito social do mínimo se perdeu após a recessão prolongada. Ainda assim, mexer nisso significa enfrentar um tabu, sobretudo na região Nordeste, em razão das aposentadorias e do BPC. O ganho de R$ 35 bilhões anuais estimado não parece compensar o risco de impopularidade galopante junto aos mais pobres – eleitorado no qual o presidente Jair Bolsonaro já patinou em 2018, e para o qual ainda não disse a que veio.
Maia oscila entre reformista e comandante do baixo clero
A exposição à luz do sol do indefensável projeto de lei, aprovado na surdina pela Câmara, que liberava geral o uso de recursos do Fundo Partidário, tirava controles da prestação de contas de seu uso e abria brechas para a impunidade a infrações eleitorais expôs a resiliência de uma faceta de Rodrigo Maia que ele vinha tentando mudar: a de comandante do baixo clero, com os líderes do Centrão a seu lado. A forma como o projeto pulou todas as etapas nas comissões para ser aprovado a toque de caixa no plenário deixa turva a imagem de reformista econômico e moderador dos arroubos autoritários de Bolsonaro que Maia vinha querendo passar para a sociedade.
Alta de preços de combustíveis reacende debate sobre tabela de frete
A alta dos preços internacionais do barril de petróleo após o ataque a instalações na Arábia Saudita já gera receio por parte de setores como o agronegócio em razão da possibilidade de levar a um reajuste na tabela de frete de cargas. Desde julho, a nova tabela elaborada pela Esalq a partir de consultas a vários setores foi suspensa pelo governo e a antiga, fixada logo após a greve dos caminhoneiros de 2018, voltou a vigorar.
A tabela não agrada aos contratantes de fretes, que aguardam decisão do STF em ações de inconstitucionalidade cujo relator é o ministro Luiz Fux, mas que foram retiradas da pauta. A tabela tem gatilho de reajuste automático caso o diesel suba 10%. Resta saber se Bolsonaro permitirá o repasse da alta dos preços para as bombas. “Já é hora de fazer com que a tabela da Esalq volte a vigorar”, cobra André Nassar, presidente da Associação Brasileira de Óleos Vegetais (Abiove), uma das entidades que se opõem ao uso da tabela antiga.
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POLÊMICAS E AVANÇOS DO STF

Míriam Leitão, O GLOBO
O ministro Dias Toffoli revelou que o inquérito aberto no STF conseguiu informações “gravíssimas” na deep web sobre as ameaças aos ministros do Supremo e aos cidadãos. Ele informa que o assunto será encaminhado ao Ministério Público e que após o inquérito “os ataques diminuíram 80%”. Toffoli defendeu a necessidade de um diálogo entre os poderes, mas disse que “pacto não é acordo” e que o tribunal já enfrentou diversas decisões tomadas pelo atual governo como a da extinção dos conselhos. “O Supremo nunca vai deixar de atuar com independência e autonomia.”
Toffoli completou um ano como presidente do STF e numa longa entrevista que me concedeu ontem tratou de assuntos polêmicos e apresentou avanços de sua gestão. Por várias vezes fez a defesa enfática da democracia. Disse que não vê necessidade de uma CPI para investigar o Poder Judiciário. Segundo ele, não há fato determinado para a CPI. Sobre o projeto que o Congresso prepara a respeito do uso dos fundos eleitorais, o ministro disse que dele “muito se diz que diminuiria a transparência das prestações de contas”. Explicou que “já houve decisões no passado em que o Supremo considerou que isso afronta a Constituição”.
Comecei a entrevista perguntando sobre a decisão tomada por ele de suspender o compartilhamento de dados pelo Coaf, que beneficiou o senador Flávio Bolsonaro e provocou a suspensão de inúmeras investigações. Toffoli disse que foi o relator da ação que declarou constitucional a lei do compartilhamento, mas que o Coaf estava extrapolando de sua competência e defendeu que o sigilo só seja levantado por ordem judicial. “É o Judiciário que garante a democracia.” Sua decisão evitaria, segundo ele, que, mais tarde, houvesse a nulidade do processo. O assunto, no mérito, será decidido em 24 de novembro.
O ministro esteve presente num evento em maio em que o presidente Bolsonaro anunciou um “pacto entre os poderes”, depois Toffoli mesmo defendeu que os julgamentos não atrapalhassem o desenvolvimento econômico. Eu perguntei como ele poderia estar num pacto em favor de medidas cuja constitucionalidade julgaria depois. Toffoli disse que o pacto não significa um acordo para aprovação das medidas do Executivo:
— E veja uma coisa que é extremamente importante lembrar, todas as leis que tratam de combate à organização criminosa, toda a legislação de transparência, toda a lei de acesso à informação foram resultados de pactos republicanos. Sem esses pactos não teríamos a Operação Lava-Jato.
Afirmou que não haverá retrocesso no combate à corrupção. Recentemente, contudo, uma decisão da 2ª Turma anulando uma sentença contra o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine acendeu a luz vermelha, porque se for seguida muitas outras condenações seriam revistas:
— Um caso semelhante a esse, o ministro Fachin liberou para julgamento no plenário e pediu preferência. A minha intenção é exatamente trazer segurança jurídica. Seja qual for a decisão, ela vai trazer parâmetros e segurança para que o processo seja feito sem risco de uma eventual anulação no futuro. Estamos buscando a previsibilidade.
Perguntei então sobre a decisão a respeito do cumprimento da pena após condenação em 2ª instância. Ele admitiu que é preciso julgar em definitivo e que o relator já liberou há mais de um ano. Disse que “se possível” será pautado este ano.
Sobre sua relação anterior com o ex-presidente Lula e seu sentimento ao vê-lo preso, Toffoli diz que, quando virou ministro, virou a página. E que “processos não têm capa”. Mas que Lula tem tido “todo o direito de defesa”.
Toffoli disse que nunca viu Bolsonaro “atuar em ondas de ódio, pelo contrário”, e definiu como “retórica” as declarações do presidente. Mas afirmou que “o Judiciário, uma vez chamado, sempre decidirá a favor da democracia, da liberdade de expressão e do respeito às instituições”. Segundo ele, o STF “vai garantir o direito das minorias e a liberdade de expressão como ocorreu na Bienal”.
O ministro anunciou com orgulho que há 34 mil processos no STF. E esse é o menor número desde 1998, um esforço de redução de várias gestões. Só este ano foram reduzidos em quatro mil. Isso dá uma dimensão da complexidade da Justiça brasileira. Em apenas duas sessões do plenário virtual em agosto foram decididas 76 ações diretas de inconstitucionalidade. “Eu duvido que exista uma corte como essa no mundo.”
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O BOM SENSO PREVALECEU

Merval Pereira, O GLOBO
Melhor ainda, prevaleceu a pressão da opinião pública, e o projeto de um simulacro de reforma eleitoral voltará para a Câmara, onde deverá ser discutido da maneira correta, à luz do dia e com amplo debate.
Sem correrias desnecessárias, como estavam querendo impor os defensores das medidas que afrouxavam a fiscalização eleitoral e reduziam a capacidade de punição da Justiça Eleitoral.
O perigo agora é a ameaça de que a Câmara, recebendo o projeto quase que integralmente vetado pelo Senado, decida ressuscitá-lo, com todos os defeitos que estão sendo rejeitados.
Seria um abuso de poder se os deputados fizessem isso, diante da reação que provocou na opinião pública a tentativa de aprovar uma reforma eleitoral que limita a fiscalização e aumenta a possibilidade de crimes como o caixa 2.
Apenas o Fundo Eleitoral será aprovado agora no Senado, para valer nas eleições municipais do ano que vem. Com o compromisso de que não será duplicado, como querem alguns.
Num momento em que o país passa por situações que exigem sacrifícios dos cidadãos, sem dinheiro para nada, há a proposta de aumentar o fundo de R$ 1,8 bilhão para R$ 3,7 bilhões.
É preocupante, no entanto, certa maneira de pensar que continua prevalecendo. O ministro-chefe do Gabinete Civil, Onyx Lorenzoni, perguntado sobre o projeto, saiu-se com essa: “Se não houver aumento de gasto, tudo bem”.
Esse não é o único problema do projeto. A questão ética é fundamental para que o Congresso prossiga na sua atuação de protagonismo na política nacional.
Correu-se o sério risco de haver um acordo entre o Palácio do Planalto e o grupo de congressistas que apoia as mudanças em benefício próprio para a aprovação do texto, com o compromisso de o presidente Bolsonaro vetar alguns trechos, não o suficiente para retirar do projeto seu caráter deletério ao processo político.
Com a dependência da aprovação do seu filho Eduardo para embaixador em Washington sendo negociada cuidadosamente no Senado, seria perigoso que os vetos do presidente Bolsonaro fossem confundidos com a sabatina.
Foi aí que o bom senso trabalhou a favor da cidadania, e os senadores entenderam que não deveriam se responsabilizar por um projeto que permaneceu na Câmara durante meses, mesmo que na clandestinidade dos acordos entre os iguais, e agora o Senado não teria tempo para analisá-lo minimamente.
Apenas referendaria a iniciativa, alvo de críticas da sociedade civil através de entidades representativas do combate à corrupção. Ficaria a sensação de que nenhum acordo é respeitado pelo Congresso.
A volta da propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão é um exemplo desse descumprimento de acordos. Para a criação do Fundo Eleitoral, foi decidido acabar com essa propaganda, que, embora fosse gratuita para os partidos, era paga pelo governo federal às emissoras de rádio e televisão.
Essa economia seria usada para ajudar a criar o fundo que financiaria as eleições, depois de proibidas as doações privadas. No projeto em discussão, estava lá a volta da propaganda, que se somaria à ideia de mais que dobrar os recursos do Fundo.
O que o Congresso não conseguiu, sempre devido à reação da opinião pública, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez de maneira indireta ao decidir encaminhar para a Justiça Eleitoral, sabidamente menos aparelhada para as investigações, diversos processos contra deputados e senadores.
A anistia ao caixa 2 está sendo tentada há anos no Congresso, para que os parlamentares pudessem escapar da Justiça comum. Muitos deles com a acusação de terem sido meras simulações de doações legais para utilização de dinheiro proveniente da corrupção nas campanhas eleitorais.
Uma legislação que afrouxe as regras de prestação de contas facilitará o uso continuado de dinheiro ilegal.
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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A ESTRIDÊNCIA VENDE

Hélio Schwartsman, Folha de S.Paulo

Texto publicado na Ilustrada mostrou que a polarização tomou conta do mercado editorial brasileiro, que agora se divide num flá-flu ideológico em que autores de direita atacam os de esquerda, que veem manifestações de fascismo por todos os lados. Obras mais ponderadas não alcançam o mesmo sucesso de vendas.

A reportagem se baseia num estudo de Eduardo Heinen, Marcio Ribeiro e Pablo Ortellado que identificou os livros de não ficção mais vendidos na Amazon brasileira nas categorias de ciências sociais e política e analisou os títulos, encontrando o que na prática parecem ser dois mercados distintos, um de esquerda, outro de direita, cujos consumidores não se misturam. Os próprios autores se mostram mais interessados em vituperar uns contra os outros do que em encetar qualquer tipo de diálogo.

Constatar que a estridência vende não chega a ser uma surpresa, mas será que ela também é sinônimo de mais acertos? A questão é difícil até de delimitar, já que as ciências sociais, ao contrário das exatas, não comportam respostas unívocas, estando mais abertas à interpretação.

É o tipo de situação em que devemos procurar socorro em conjuntos mais robustos de dados. Foi o que fez o psicólogo Philip Tetlock. Ao longo de 20 anos, ele coletou 28 mil prognósticos feitos por 284 experts em economia e política e os comparou com os desfechos do mundo real. Na média, os cientistas se saíram um tiquinho melhor do que o acaso.

O ponto de interesse desse estudo publicado em 2005, contudo, é que nem todos os especialistas tiveram o mesmo desempenho. Os mais tonitruantes erraram mais, enquanto os mais comedidos, que em vez de certezas expressavam dúvidas e probabilidades, se saíram melhor.

Hoje, Tetlock se dedica a esmiuçar o que as pessoas que mais acertam têm em comum, não só nos métodos mas também nos hábitos e até nos traços de personalidade. A virulência nunca aparece.
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A PALAVRA DE ORDEM DO GURU

Do Blog do Noblat,  VEJA

Esqueçam tudo mais

Guru da família Bolsonaro, inimigo dos militares que a cercam, o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho postou um novo vídeo nas redes sociais onde instrui os devotos do capitão, parte deles atônita com o que anda acontecendo.

Esqueçam tudo mais – agenda de costumes, ideologia, combate à corrupção, armas para todos. O que importa, o que só importa neste momento, é apoiar o presidente Jair Bolsonaro. A política, segundo Olavo, não é uma briga de ideias, mas de pessoas, de grupos.

Logo, a hora é de cerrar fileiras. Nada de discussões sobre isso ou aquilo. Deixam as dúvidas para lá. A esquerda continua forte. Ela domina a imprensa, a principal inimiga de Bolsonaro que deve ser enfrentada. Disciplina! Firmeza!. Coesão! Avante!

(Faltou “Anauê“.)

A nova encrenca do capitão

Viajar ou não? Sentado ou deitado?
Se dependesse dos médicos que cuidam dele, o presidente Jair Bolsonaro cancelaria sua viagem a Nova Iorque na próxima sexta-feira para discursar na abertura de mais uma Assembleia Geral da ONU. Bolsonaro teima em viajar assim mesmo.

Mas a ter que ir, os médicos querem que ele viaje deitado na cama que o Boeing presidencial oferece ao seu ocupante mais ilustre. É aí que o bicho pega. Bolsonaro quer viajar sentado como geralmente faz, com direito de convocar quem quiser para uma conversa.

Como se trata de uma longa e cansativa viagem, e como Bolsonaro ainda não se recuperou por completo, os médicos são contra seu desejo. Ou viaja deitado ou eles não se responsabilizam pelo que possa acontecer. É a mais nova encrenca do capitão.

Assessores e familiares de Bolsonaro estão divididos quanto à viagem. Uma parte desaconselha, e não só por causa da saúde, mas porque ele será alvo de protestos dado ao fogo que queima a Amazônia. A parte favorável acha que ele não pode se acovardar.

Golpista acidental

A dupla face de Michel Temer
Um ato falho repetido muitas vezes em curto período de tempo não é um ato falho, mas proposital. Em entrevista na última segunda-feira no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, o ex-presidente Michel Temer chamou de golpe quatro vezes o movimento que depôs a ex-presidente Dilma Rousseff, e somente uma vez de impeachment.

Da vez que chamou de impeachment foi para explicar que a Constituição não prevê golpe. E que, portanto, ao assumir a presidência na condição de vice-presidente eleito, ele o fez depois de um processo de impeachment que seu deu nos termos previstos na Constituição e sob o controle da Justiça.

Então por que quatro vezes falou em golpe? Porque em Temer convivem o jurista que ele é, autor de livros sobre o Direito Constitucional, e o político que sempre foi e que continuará a ser. Sem que ninguém lhe perguntasse, o político contou uma história a título de curiosidade, mas que nada tinha de curiosa.

Contou que um dia procurou Dilma no Palácio do Planalto e lhe disse que Eduardo Cunha (PMDB-RJ), então presidente da Câmara dos Deputados, recebera seis pedidos de impeachment contra ela, sendo que dois eram bastante complicados. Mas que ouvira dele que rejeitaria os seis. Dilma comemorou a informação.

O que Temer, o político, quis dizer com isso? De passagem, como se tratasse de uma mera recordação inocente, quis dizer que Cunha também o enganara. A culpa do impeachment – ou do golpe – deve ser debitada na conta de Cunha, não na dele. Temer sequer “conspirou um pouquinho” para derrubar Dilma, como garantiu…

Jair Bolsonaro é um presidente acidental. Foi eleito por uma conjuntura que jamais se repetirá. Michel Temer foi um golpista acidental. Nada teve a ver com o golpe ou o impeachment, como preferirem. Estava ali como vice-presidente observando tudo à distância quando foi chamado a suceder Dilma. Fazer o quê?
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FRESTA ESTREITA PARA EPIFANIA

Rosângela Bittar, Valor Econômico

Finalmente, neste ano, uma semana leve, agradável e refrescante em Brasília, sob um sol de 35 graus (aqui é ardente) e umidade relativa do ar de 10%. Mas deu para curtir. As pessoas com arma na cintura saíram da cena política para aterrorizar, mais além, quem por desventura tivesse parentes indefesos internados em um hospital paulistano. Ainda bem que não houve imprevisto capaz de levar um filho a sacar para defender? exigir? intimidar? os circunstantes do leito de seu amado pai. Dramático, mesmo.

Fora da cena, também, perdeu-se acolá a insatisfação de preposto da República com a lentidão da democracia para resolver radicalmente os problemas, dele certamente. Convite ao golpe? O pai chora a incompreensão com o extremado filho. Dramático, mesmo.

Gigantes do início do governo, que andavam meio adormecidos, foram despertados para, com sua manifestação de ódio, tentar retomar o lugar deixado vago e panfletar o planeta. Dramático, mesmo.

Brasília, então, abriu a guarda e viveu dez dias relaxantes, nos quais não se ouviram provocações de ministros performáticos que dão asas a bobagens para agradar a plateia interna; nem puderam ser percebidos os efeitos das humilhações impostas a superministros que engoliram sapos lançados em rota interestadual. Todo o governo foi discreto.

Houve a distensão possível estando longe Jair Bolsonaro, seus cabos e sua tonitroante campanha eleitoral permanente e ininterrupta.

Mas diante da realidade, na qual somos todos obrigados a cair, que voltou ontem ao seu lugar, no centro da cena, viu-se que a fresta aberta pela ausência do protagonista não foi usada por ninguém. Os opositores de Bolsonaro se esconderam. Por leniência ou estratégia.

Nem o PT que, segundo a mais recente pesquisa eleitoral do Datafolha, venceria Bolsonaro se 2018 fosse hoje, tendo à frente o mesmo Fernando Haddad. Um equívoco de raiz que anula o valor da enquete para fins de prospecção do quadro eleitoral de 2022.

O adversário de Bolsonaro não é necessariamente Fernando Haddad, mas todos os demais que estiveram na última disputa e mais alguém que se habilite até lá. Sequer está escrito que o PT seguirá com Haddad: atenção a Rui Costa, o único a dar o ar da graça no cenário político aproveitando o silêncio momentâneo da campanha de reeleição.

A razão de Haddad ter sido tão lembrado na pesquisa pode ter sido o que os experts chamam de efeito questionário. As perguntas foram elaboradas em torno de uma reiteração do voto de 2018 e logo depois de uma série de lembranças sobre declarações e comportamentos estapafúrdios de Jair Bolsonaro.

As respostas podem ter sido afetadas por isso e deram maioria a Haddad. O pouco valor do resultado encontrado se evidencia também por outras respostas que até mostram um Bolsonaro um pouco mais forte do que estava em 2018, e não um pouco mais fraco, como parece.

Como esta, por exemplo: ao pedido de avaliação do Bolsonaro até o momento, depois de oito meses de governo, 29% dos entrevistados lhe deram ótimo e bom; a seguir vem outra pergunta, como o eleitor acha que vai ser o Bolsonaro daqui para a frente, e 45% acharam que será ótimo e bom. São 45% otimistas com relação ao governo Bolsonaro.

Portanto, é preciso ponderar, medir e pesar os dados sobre a suposta vitória de Fernando Haddad sobre Bolsonaro se a eleição de 2018 se repetisse agora. E talvez isso explique a discrição com que o PT está conduzindo a construção da sua campanha. Sem se precipitar para aproveitar esse tipo de brecha deixada por Bolsonaro.

Não sendo a disputa Bolsonaro contra PT, e está claro que não será, onde andam as outras forças políticas que certamente estarão em cena e porque também não aproveitaram o vazio do palco para brilhar?

Na interpretação do cientista político e sociólogo Antonio Lavareda, uma das mais fortes razões seria por estratégia mesmo. Ninguém pode com o candidato que tem o poder, a caneta e a visibilidade, Lavareda cita uma outra pesquisa recente, a da FSB para a “Veja”, única que mediu a disputa em primeiro turno de 2022 e nominou os candidatos.

Bolsonaro aparece com 35% (teve 34% no primeiro turno de 2018), portanto, estaria com seu eleitorado intacto. Haddad conseguiu 17%, menos do que os 21% que teve em 2018. Em seguida estão Ciro Gomes e Luciano Huck, com 11% cada um, João Amoêdo com 5% e João Doria com 3%.

Tirando Bolsonaro e Haddad, pode-se ver o potencial de um grande centro esquerda de 30%. Uma massa de eleitores que, eventualmente, faria uma dessas opções ou outra que vier a ganhar impulso. Talvez, e os exercícios provam isso, o PT fique fora do segundo turno de 2022, diferentemente do que ocorreu em 2018. Por isso a dificuldade em compreender, neste momento, a hipótese de vitória do seu candidato sobre o candidato à reeleição.

Mais uma razão para os candidatos aproveitarem o vácuo e começar a aparecer de uma forma mais efetiva e, no entanto, se esconderam. “Provavelmente esses atores levam em conta o seguinte: o bolsonarismo tem todas as principais armas para assumir a liderança do ponto de vista da visibilidade pública. O presidente tem o controle da agenda do país”, diz Lavareda. Ou seja, seria uma luta desgastante e inglória, por enquanto.

Uma frase do presidente, um Twitter do filho, são manchetes obrigatórias na mídia, e eles abusam da sua condição privilegiada nessa fase atual da campanha da reeleição. É quase impossível disputar com isso. Na desigualdade, só se complicarão, e a hipótese é começarem uma campanha, no ano da eleição, com sentimento de derrota.

A campanha presidencial agora só favorece quem tem visibilidade máxima. As forças políticas adversárias, unidas, devem encontrar momento mais propício para iniciar a corrida a 2022. Que tradicionalmente é o dia seguinte à abertura das urnas de 2020, a eleição para escolha de prefeitos e vereadores.

Só então poderão assumir feições mais nítidas, chamar a atenção para seus projetos de centro-esquerda, lançar os nomes à avaliação preliminar do eleitorado. Por enquanto, e mais uma vez, a realidade se impõe.
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A VERSÃO DE TEMER

Bernardo Mello Franco, O GLOBO

Michel Temer é um político cuidadoso com as palavras. Mesmo assim, comete alguns deslizes. Na segunda-feira, ele incorreu num típico ato falho. Em entrevista ao “Roda Viva”, usou o termo “golpe” ao comentar o processo que o alçou à Presidência.

“Eu jamais apoiei ou fiz empenho pelo golpe”, disse. “Eu não era adepto do golpe”, insistiu. “Eu não poderia ser o articulador de um golpe”, acrescentou.

Em outro momento, Temer esclareceu que não considerava o impeachment um golpe. Nas redes sociais, o estrago já estava feito. Ao usar a palavra que tanto combateu, o ex-presidente fez a festa dos adversários. Para quem já o chamava de golpista, a entrevista soou como uma confissão.

Três anos depois, a derrubada de Dilma Rousseff ainda motiva discussões acaloradas. No sentido clássico, não houve golpe. O impeachment está previsto na Constituição, e o processo seguiu o rito determinado pelo Supremo. Ao contrário do que ocorreu em 1964, os tanques permaneceram nos quartéis.

No sentido popular, a coisa é mais complicada. Há quatro dias, a doutora Janaína Paschoal admitiu que a ex-presidente não foi derrubada por um “problema contábil”. O Congresso usou as chamadas pedaladas fiscais como um pretexto formal para removê-la. Nesta linha, é possível falar num golpe parlamentar.

Na versão de Temer ao “Roda Viva”, o poder caiu em seu colo sem que ele precisasse sujar as mãos. “O senhor nunca conspirou nem um pouquinho contra a Dilma?”, provocou o jornalista Ricardo Noblat. “Não. Eu não conspirei”, respondeu o emedebista, sem corar.

Para quem acompanhou a crise de 2016, é difícil engolir esta conversa. Temer agiu à luz do dia para tomar a cadeira da ex-aliada. Prometeu “reunificar o país”, lançou um programa para o mercado e acenou com proteção a políticos investigados.

A blindagem não funcionou por muito tempo, mas ele conseguiu concluir o mandato. Desde que passou a faixa, o ex-presidente já foi preso duas vezes. Agora ele quer reescrever a História, mas deveria estar mais preocupado com o julgamento dos tribunais.
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'SNOWFLAKES' DE DIREITA

João Pereira Coutinho, Folha de S.Paulo
Antigamente, o sonho de um filho era se emancipar da figura paterna. Não falo de Freud e dos desejos de “matar” o pai. Falo de algo mais simples como sair de casa, construir uma vida pelas próprias mãos, sair da sombra do progenitor.
Isso não significa “matá-lo”. Pelo contrário —só por meio dessa emancipação é possível amá-lo realmente, nas suas forças e fraquezas.
Eu tentei. Acho que consegui. Meu pai era advogado. No início, cursei direito, por breves meses. Imagino que, para o meu pai, ter um filho a quem pudesse legar o escritório era uma perspectiva agradável.
Não era para mim. Detestei o curso. Mas detestava ainda mais o futuro previsível, em vários sentidos da palavra “previsível”.
Desisti de direito, mudei de curso, mudei de vida. E até de cidade. O amor pelo meu pai, que aliás me apoiou nessa mudança, aumentou à medida que me tornei adulto. Longe dele e sem precisar de seu nome.
Hoje, a geração “snowflake” (floco de neve) parece deficitária nesse quesito. Sim, todos conhecemos os estudantes que, em contexto universitário ou até laboral, procuram recriar o ambiente seguro da casa paterna.
Mas há várias formas de ser “snowflake”. Um exemplo: que dizer dos filhos do presidente Trump, que parecem incapazes de ter vida própria longe do pai? E que dizer, já agora, dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, que padecem da mesma moléstia?
Pensei nisso quando lia, divertido, o tuíte analfabeto de Carlos Bolsonaro. O Brasil só terá mudanças rápidas por vias não democráticas?
Ah, pobrezinho. Se ele soubesse alguma coisa de alguma coisa, saberia que foi em democracia que os países ocidentais tiveram os progressos mais notáveis de suas histórias. Os regimes autoritários, com poucas exceções, levaram os respectivos países para o buraco.
Mas divago. Porque o ponto é outro —à primeira vista, nada mais longe de um “snowflake” do que o clã Bolsonaro. Eles usam pistola e falam grosso!
E, no entanto, há a mesma incapacidade de serem adultos por seus próprios meios, sem usarem e abusarem do oxigênio do pai.
Mas existem outras semelhanças entre a nova direita e os “snowflakes” que ela tanto critica. Em matéria de liberdade de expressão, por exemplo.
Sim, também todos conhecemos o desejo histérico dos “snowflakes” de esquerda de censurar as vozes conservadoras incômodas. Mas será que a nova direita é assim tão diferente com as vozes progressistas incômodas?
O Brasil é novamente um caso de estudo com a tentativa do prefeito do Rio em banir uma HQ com um beijo gay. O problema do gesto não está apenas na incompreensão básica de uma sociedade livre e pluralista. Isso é óbvio.
Menos óbvio é que, do ponto de vista estratégico, as tentativas de censura normalmente rebentam na cara de quem as comete. Posso contar uma história a respeito?
Em 1992, em Portugal, um membro do governo de direita vetou o romance “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, para o Prêmio Literário Europeu. Nas palavras do iluminado governante, o livro de Saramago atacava o patrimônio religioso dos portugueses e não podia ser representante da literatura lusa. Sabe o que aconteceu a seguir?
O caso foi noticiado nos jornais. Espalhou-se pelo mundo inteiro. O romance virou best-seller nacional e internacional. E Saramago emergiu como um escritor “perseguido” na sua própria terra.
Por coincidência ou não, decidiu deixar Portugal e viver na ilha espanhola de Lanzarote. Exato, como um “exilado”. Seis anos depois, o prêmio Nobel de Literatura chegava.
Simplifico? Claro que simplifico: a censura a Saramago não retira o mérito literário da obra, sobretudo
em grandes romances como “Memorial do Convento” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (o meu preferido).
Mas não é absurdo conjecturar que a censura oficial deu uma preciosa ajuda na consagração de Saramago.
Se a nova direita brasileira persistir na censura e na sabotagem de autores de esquerda, isso pode ser uma derrota para a liberdade de expressão.
Mas, quem sabe, talvez assim o Brasil tenha finalmente o prêmio Nobel com que sonha há vários anos.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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TRUMP APERTA O BOTÃO DO PÂNICO

Paul Krugman, Folha de S.Paulo
Donald Trump marcou o aniversário do 11 de Setembro repetindo várias mentiras sobre suas próprias ações naquele dia. Mas essa não era sua única preocupação. Ele também passou parte do dia escrevendo uma série de tuítes criticando os funcionários do Federal Reserve como "cabeças duras" e exigindo que eles implementem de imediato medidas de emergência para estimular a economia —medidas que normalmente são implementadas apenas diante de uma crise grave.
A diatribe de Trump foi reveladora de duas maneiras. Primeiro, agora está claro que ele está em pânico total pelo fracasso de suas políticas econômicas em produzir os resultados prometidos. Segundo, ele não tem a menor pista de por que suas políticas não estão funcionando ou de qualquer outra coisa que envolva política econômica.
Antes de chegar à economia, vamos falar sobre um indicador da falta de noção de Trump: suas observações sobre a dívida federal.
Além de pedir que o Fed (Banco Central) reduza as taxas de juros abaixo de zero, Trump declarou que "deveríamos começar a refinanciar nossa dívida", porque "os EUA sempre deveriam pagar a menor taxa".
Os observadores ficaram coçando a cabeça, perguntando-se sobre o que ele estaria falando.
Na verdade, porém, é bastante óbvio. Trump acha que a dívida federal é como um empréstimo comercial, que você pode pagar mais cedo para aproveitar taxas de juros menores.
Ele claramente não sabe que a dívida federal na verdade consiste em títulos, que não podem ser pagos antecipadamente (que é uma das razões pelas quais as taxas de juros da dívida federal são sempre mais baixas que, por exemplo, as taxas de hipotecas residenciais).
Ou seja, ele imagina que as finanças do governo podem ser gerenciadas como se os EUA fossem um cassino ou um campo de golfe, e nunca lhe ocorreu perguntar a alguém do Tesouro se é assim que funciona.
Mas voltemos à economia. Por que Trump está em pânico?
Afinal, enquanto a economia está desacelerando, não estamos em recessão, e não está claro que haja uma recessão no horizonte. Não há nada nos dados que justifique um estímulo monetário radical —estímulo, a propósito, que republicanos, incluindo Trump, denunciaram na época de Obama, quando a economia realmente precisava dele.
Além disso, apesar das alegações de Trump de que o Fed de certa forma fez alguma loucura, a política monetária foi realmente mais flexível do que a própria equipe econômica de Trump esperava ao fazer suas previsões otimistas.
No verão de 2018, as projeções econômicas da Casa Branca previam que neste ano as taxas de juros para três meses seriam em média de 2,7%, enquanto as taxas para dez anos seriam de 3,2%. As taxas reais enquanto escrevo são de 1,9% e 1,7%, respectivamente.
Embora não haja uma emergência econômica, porém, Trump parece sentir que está enfrentando uma emergência política. Ele esperava que uma economia em expansão fosse seu grande tema vencedor no próximo ano. Se, como agora parece provável, o desempenho econômico for medíocre, na melhor das hipóteses, ele está em sérios apuros.
Lembre-se de que as duas principais políticas econômicas de Trump foram seu corte de impostos em 2017 e sua guerra comercial com a China, em rápida escalada. O primeiro deveria levar a uma década ou mais de rápido crescimento econômico, enquanto a segunda deveria reviver o setor fabril nos EUA.
Na realidade, porém, o corte de impostos proporcionou no máximo alguns trimestres de maior crescimento. Mais especificamente, os enormes incentivos fiscais para as empresas não geraram o aumento prometido nos salários e no investimento nos negócios; em vez disso, as empresas usaram o dinheiro para recomprar ações e pagar dividendos maiores. 
Ao mesmo tempo, a guerra comercial acabou sendo um grande estorvo para a economia —maior do que muitas pessoas, inclusive eu, esperavam. Até o outono passado, a expectativa geral era de que Trump lidaria com a China da maneira como lidou com o México: fazer algumas mudanças, principalmente cosméticas, nos acordos existentes, cantar vitória e seguir em frente.
Quando ficou claro que ele realmente falava sério sobre o confronto, no entanto, a confiança das empresas começou a cair, arrastando o investimento para baixo.
E os eleitores notaram: o índice de aprovação de Trump na economia, embora ainda ligeiramente superior à sua aprovação geral, começou a declinar. Portanto, o pânico exige que o Fed remova todos os obstáculos.
Mas embora Trump perceba que está com problemas, não há indicação de que ele entenda o porquê. Ele não é o tipo de pessoa que admita, mesmo para si próprio, que cometeu erros; seu instinto é sempre culpar alguém enquanto aposta o dobro em suas políticas fracassadas.
Mesmo os atos que parecem um ligeiro abrandamento das políticas, como o anúncio de um prazo de duas semanas para a implementação de algumas tarifas à China, revelam uma profunda incompreensão do problema —o que tem tanto a ver com seus caprichos quanto com as tarifas em si.
Os ziguezagues das políticas, mesmo que envolvam adiar as tarifas, apenas aumentam a incerteza sobre o que ele vai ou não fazer, o que leva as empresas a suspender os investimentos.
Então o que acontecerá agora? Trump poderia reverter o curso e fazer o que a maioria das pessoas esperava um ano atrás: fechar um acordo com a China que restaure mais ou menos a situação anterior.
Mas isso seria de fato uma admissão de derrota —e neste momento não está claro por que os chineses confiariam que ele honraria um acordo desse tipo após a eleição. O fato é que, no que se refere à política econômica, Trump está num lugar ruim, preso na própria armadilha.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Paul Krugman
Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.
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COM NOTICIAR BESTEIRAS ?

Hélio Schwartsman, Folha de S.Paulo
Como tratar as declarações escatológicas do presidente Jair Bolsonaro, que falam mais sobre sua psique do que sobre o estado do mundo? O que fazer quando o segundo filho insinua que a democracia não nos serve? E quando o terceiro desfila ostensivamente com uma arma na cintura? Tais imagens devem ser publicadas?
As asneiras ditas e encenadas quase diariamente por Bolsonaro e seu entorno colocam a imprensa numa sinuca de bico. A missão do que os britânicos chamam de "quality press" é dupla. Devemos, por um lado, destacar aquilo que tem interesse público, sem nos perder nas irrelevâncias típicas do reino da fofoca e menos ainda em psicoses privadas. Por outro, temos a obrigação de registrar os principais acontecimentos do dia, em especial os fatos que dizem respeito à política.
Nem sempre esses objetivos são compatíveis. Se os jornais estampam em suas primeiras páginas as opiniões pouco coerentes que um membro da família presidencial tem sobre a democracia, fracassam na primeira meta; se deixam de fazê-lo, malogram na segunda. É a definição clássica de dilema, em que qualquer solução adotada se mostra contraditória e insatisfatória.
O problema não é novo. O que mudou é que, por força do segundo objetivo, ficou muito mais difícil dar às bobagens a dimensão que elas mereceriam pela régua do primeiro. Enquanto Bolsonaro era apenas um deputado do baixo clero, as estultices que ele nunca deixou de proferir só ganhavam menção na imprensa quando batiam algum recorde. Agora que ele é o presidente e noticia-se até a evolução de seu trânsito intestinal, seria complicado aplicar filtros estéticos, políticos ou até civilizacionais a suas declarações.
Não importa o que a mídia decida fazer, estará traindo algum aspecto de sua missão. Erra-se um pouco menos, creio, mostrando o circo de horrores como ele é e deixando que cada leitor tire suas próprias conclusões. 
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
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