sexta-feira, 31 de julho de 2020

GENERAIS CAÍRAM NO CONTO DO CENTRÃO

Helena Chagas, Blog do Noblat – VEJA

Era óbvio que um bando de generais ingênuos e neófitos na articulação parlamentar não ia montar uma base no Congresso para Jair Bolsonaro. Caíram na conversa mole do primeiro esperto que se apresentou, o líder do PP e do ex-blocão, Arthur Lira, e prometeu que, em troca de cargos e verbas, o Planalto levaria o apoio fechado de 220 deputados. A votação do Fundeb, com 492 votos contra o governo, mostrou que o rei estava nu: Bolsonaro não tem, nunca teve e nunca terá tropa de choque desse tamanho, e nem adesão incondicional do Centrão.

Mas a saída do MDB e do DEM do bloco e, logo depois, o anúncio do PTB e do Pros de que também estão em retirada, passam a ideia de que a casa caiu de vez. Não é bem assim. No blocão, no Centrão ou em qualquer outro canto, MDB e DEM continuam os mesmos. Por exemplo, votando, em sua maioria, contra um eventual pedido de impeachment de Bolsonaro nas atuais condições de temperatura e pressão – sem povo nas ruas e desidratação total de sua popularidade. O que não quer dizer que, se essas circunstâncias mudarem, não apoiarão no futuro. O que fariam de qualquer jeito, com ou sem blocão, Centrão ou coisa que o valha.

Da mesma forma que se lixaram para as propostas da equipe econômica sobre o Fundo da Educação, esses partidos vão se posicionar em relação a outras reformas, como a tributária, segundo seus próprios interesses – que, aliás, estão explícitos no projeto do presidente e líder do MDB, Baleia Rossi, que começou a tramitar antes da proposta do governo. Reforma tributária, se houver, não será a de Paulo Guedes, mas sim a de Rodrigo Maia, Baleia, Aguinaldo Ribeiro e outros. Mas, se for obtido um acordo em torno dela - e de outras reformas como a Lei do Gás e a independência do Banco Central - o governo poderá até capitalizar vitórias, como fez na Previdência.

Ou seja, nada está totalmente perdido. Nem ganho. O que ficou claro nos movimentos partidários da semana é que os articuladores do Planalto estavam comprando gato por lebre das mãos de Arthur Lira, que coordenou a distribuição de cargos ao Centrão, prometeu vitórias e não entregou. Foi ele, com a ambição de ser o próximo presidente da Câmara, o principal alvo da operação. Agora, cada um desses partidos vai negociar em separado.

Por trás do reagrupamento de forças há, naturalmente, projetos de poder que vão além de cargos e do comando do Legislativo. A reedição da velha Aliança Democrática de MDB e DEM - hoje minguada com 63 deputados - pode prenunciar uma articulação centrista para 2022, agregando também PSDB e o PSD em torno da candidatura João Dória. Mas esse não foi o objetivo mais imediato, e nem é coisa para já.

A implosão da narrativa do Centrão como alicerce da estabilidade política ao governo era uma pedra cantada para quem acompanha o dia-a-dia do Congresso. Só os incautos generais do Planalto parecem ter acreditado que a profusão de emendas e cargos distribuídos nos últimos meses havia consolidado uma base parlamentar. Não consolidou e nem vai consolidar, nem que Maquiavel seja contratado como articulador político. É missão impossível quando o presidente da República só olha para o próprio umbigo e faz política de forma desagregadora. A confiança, matéria prima básica dos acordos políticos, sumiu das prateleiras.

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DIÁRIO DA CRISE

Do Blog do Gabeira
DIÁRIO DA CRISE CXXXIV
O funeral de John Lewis nos Estados Unidos, de certa forma, mostrou a importância do movimento contra o racismo e por uma sociedade mais fraternal nos EUA.
Três ex-presidentes falaram, dois democratas, Obama,Clinton  e Bush. O discurso de Obama, aplaudido de pé, ressaltou que Lewis era um dos pais de um EUA  justo e fraternal que surgiria nos Estados Unidos, mesmo se esse pais aparecer só daqui a séculos.
O texto de Lewis, publicado no New York Times confirma isso quando diz que a democracia não é algo estático, depende da construção permanente e cada geração tem a sua  própria responsabilidade.
Destaco isso porque acredito ser de um valor universal para todos os países que vivem uma democracia. É uma suposição equivocada achar que  não há nada a fazer, que a democracia se perpetua por si própria.
Os retrocessos estão aí, a começar pelos Estados Unidos, passando por toda uma série de países onde o regime democrático é colocado em questão por governos com inclinações autoritárias.
Com essas ameaças ao youtuber Felipe Neto creio que o tema de fake news e injúrias, que ja me ocupou no artigo escrito ontem, vai me ocupar também na tevê.
Tenho lido sobre o tema. Terminei o livro da Patricia Campos Melo, A Máquina do Ódio, e pretendo terminar O Discurso da Estupidez, do psicanalista Mauro Mendes Dias.
No dia 6, participo de uma live com Afonso Borges e o escritor Giuliano Da Empoli, autor de Arquitetos do Caos.
É um tema difícil esse de redes sociais. O STF quer cassar contas de Bolsonaristas no exterior. O FaceBook e o Twitte resistem.
O Face já derrubou contas inautênticas. Mas quando se trata de uma conta assinada pela pessoa real, ela é responsavel pelo que diz.  Assim como somos responsáveis pelas nossas palavras no diálogo público. E nem por isso, quando dizemos algo gravemente equivocado, a pena é cortar a nossa lingua.
Sexta feira cinzenta e com chuvas por aqui. Comprei até um guarda chuva, utensíllio que estava em falta em nossa casa. Mas a previsão para sábado e quase toda a semana que vem é de sol. O guarda chuva será apenas um objeto no armário, espero.
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CPMF: 'ME CHAME PELO MEU NOME'

Míriam Leitão, O GLOBO
A CPMF tem má fama. Por isso o governo tenta outros nomes. O ministro Paulo Guedes ora fala em “imposto digital” ora diz que será sobre “transações eletrônicas”. Na verdade, o governo está tentando desde o começo trazer de volta o tributo que provocou muitas distorções. Ele incidiria sobre todos os pagamentos da economia, pesaria sobre todas as compras e transações financeiras, e dos dois lados, o que na prática vai duplicar a alíquota. O governo adoça o nome e oferece os prêmios, como a dizer: tudo isso será seu se aceitares o meu novo imposto.
A primeira coisa a fazer é apresentar a proposta e chamar tudo pelo nome certo. A palavra “digital” soa moderna e parece embutir uma porta de saída: se eu for analógico, poderei fugir do imposto? Se fosse isso, seria um incentivo ao retrocesso e uma punição a qualquer transação eletrônica. Ou seja, o governo estaria estimulando a que todos fossem fisicamente aos bancos, mesmo podendo fazer pagamentos online, e se dirigissem pessoalmente às lojas, mesmo preferindo compras online. Não é disso que se trata, mas se fosse já seria absurdo.
O ministro Paulo Guedes sempre quis introduzir na economia a proposta do ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra, desse imposto sobre pagamentos nos moldes da CPMF. Quando Cintra foi claro sobre a natureza do seu projeto tributário, ele foi demitido por decisão do presidente Jair Bolsonaro. Na época, Guedes lamentou: “Morreu em combate nosso valente Marcos Cintra.” Depois, Cintra disse numa entrevista que o governo continuava querendo exatamente aquele imposto. Verdade. A ideia ainda é a primeira.
A má fama da CPMF vem da experiência de quem a pagou por dez anos apesar de o “P” ser de “provisório”. Um imposto que engana. Parece uma pequena alíquota. Alguém pode achar pouco pagar 0,2%. Mas é sobre todas as compras, contratações, serviços prestados, vendas, aplicações, resgates, a infinidade de transações que ocorre dentro da economia. Até chegar na sua mão quantas etapas de pagamentos um produto já cumpriu? O imposto é cumulativo. É regressivo. Rico e pobre pagam o mesmo. Vai no caminho oposto do que se quer modernamente que é saber quanto de tributo há em cada mercadoria ou serviço.
Há outros efeitos colaterais. A CPMF incide sobre impostos já pagos, ou seja, promove bitributação. Também leva à perda de competitividade na economia ao estimular a verticalização. Empresas passam a incorporar todas as etapas do processo produtivo internamente, para fugir do imposto pago pelo serviço de terceiros. A informalidade cresce, e o spread bancário pode ficar maior, provocando aumento das taxas de juros.
A vantagem para o cobrador de impostos é que ela arrecada muito. Fica tentador. Da outra vez, o provisório foi ficando permanentemente na economia até ser derrubado dez anos depois pelo Congresso, em 2007. Se a ideia é repetir a história, que a proposta — como disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia — seja apresentada integralmente. Assim, acabarão as suposições, as meias verdades, os nomes de fantasia, a impressão de que a taxa recairá sobre outro contribuinte. Não, recairá sobre todos.
O governo montou um pacote de bondades e frequentemente saca de lá algum bom bocado para seduzir o contribuinte. Fala em desonerar a folha para estimular o emprego, ou no mínimo a retirada parcial de encargos. Promete elevar a faixa de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física. Fala em fazer um novo Bolsa Família, maior e mais amplo. Acena com um IPI menor. Paulo Guedes chegou a fazer até uma pilha. “Você pode até reduzir cinco, sete, oito ou dez impostos”.
Que as contas sejam mostradas, que os nomes próprios apareçam. Esse jogo de balão de ensaio cansou. Todo governo gosta de CPMF. Em janeiro de 2016, meses antes de deixar o cargo, a então presidente Dilma Rousseff disse que “diante da excepcionalidade do momento” a CPMF era “a melhor opção disponível”. Agora, Guilherme Afif, assessor de Guedes, diz: “A resposta a quem critica é: me dê uma alternativa melhor do que essa. Ainda não vi.” Afif ficou conhecido reclamando dos impostos excessivos e agora manda o contribuinte arranjar uma ideia melhor. Ora, deve dizer claramente qual é a conta que pretende enviar para o pagador de impostos.
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CAVALO DE TRÓIA

Merval Pereira, O GLOBO
Os que queriam acabar com a Lava-Jato conseguiram quebrar sua última trincheira, a própria Casa do Ministério Público. O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, está sendo visto internamente como uma espécie de Cavalo de Tróia, colocado pelo presidente Bolsonaro para controlar as investigações.
Com a aproximação do governo com os políticos do Centrão, e a iminente abertura da vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) com a aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello em novembro, a atuação de Aras, candidatíssimo à vaga, tem se intensificado.
Por isso a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), em uma das muitas notas que tem soltado nos últimos dias, afirma que Aras “coloca em indevida suspeição os esforços desenvolvidos por todos os membros que compõem as forças-tarefas, não contribuindo em nada para o aperfeiçoamento do debate travado sobre a evolução do modelo instituído”.
Diversas forças se encontraram nos últimos dias para atacar a Operação Lava-Jato, estimuladas pelas críticas recentes de Augusto Aras ao próprio Ministerio Público que deveria representar. Em uma live para advogados que na maioria defendem condenados ou investigados pela Operação Lava-Jato retransmitida pela TVPT, o Procurador-Geral da República deu um tiro no próprio pé.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi ressuscitada na Câmara para investigar as trocas de mensagens divulgadas pelo site Intercept Brasil entre os procuradores de Curitiba e o ex-juiz Sérgio Moro. Além de não terem provado nenhuma ilegalidade na condução dos trabalhos da força-tarefa de Curitiba, as mensagens não poderiam ser utilizadas como base para uma investigação pois são ilegais, fruto de invasão de hackers em celulares de autoridades públicas.
O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, tem tido papel decisivo nesse trabalho de conter a Lava-Jato, suspendendo investigações e proibindo buscas e apreensões no Congresso, contra decisão do próprio STF que definiu que o foro privilegiado só vale para casos ocorridos no próprio mandato, e por causa dele. Os demais ministros que enfrentaram essa questão basearam-se na decisão do plenário.
O chefe dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol, também voltou a ser alvo de várias ações no Conselho Nacional do Ministério Público com o objetivo de puni-lo por declarações e atitudes no transcurso da Operação. Há uma tentativa de removê-lo “por interesse público”, uma decisão rara e grave, pois supera o direito a inamovibilidade dos procuradores.
As acusações vão desde as palestras pagas que fez, já consideradas legais, até a criação de um fundo bilionário para financiar o combate à corrupção ou a relação com investigadores dos Estados Unidos. Cada acusação destas já foi rebatida com decisões de órgãos competentes que garantiram a legalidade.
Coroando o cerco à Lava-Jato, o presidente do STF Dias Toffoli levantou a ideia de exigir uma quarentena de nada menos que 8 anos para membros do Judiciário que queiram entrar na política. Hoje em dia, a quarentena é de seis meses, o que de fato é muito pouco.
O sujeito oculto dessas manobras é o ex-juiz Sérgio Moro, potencial candidato à presidência da República em 2022. Interessa ao presidente Bolsonaro e a parte da classe política desmoralizar o combate à corrupção, e colocar obstáculos a uma eventual campanha presidencial de Moro.
É verdade que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já disse que a decisão, se for tomada, não pode retroagir. Mas uma eventual candidatura de Moro seria nesse caso certamente judicializada, um debate político-jurídico enorme, interpretações jurídicas diferentes, um juiz vai dar uma liminar, outro a derrubará.
Para Sérgio Moro esse ataque sincronizado pode até ser bom em termos políticos, pois voltou ao centro do debate como um candidato viável e temido pelos seus concorrentes. Mas é um retrocesso para a democracia brasileira.
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DUAS CAIXAS DE SEGREDOS

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
A guerra contra a Lava Jato não é só da Procuradoria Geral da República nem é só contra a força-tarefa de Curitiba. O procurador-geral Augusto Aras é o líder ostensivo e porta-voz, mas o ataque à maior operação de combate à corrupção do mundo vai muito além dele, incluindo Congresso e parte de Supremo, OAB, Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e da própria mídia. É um movimento combinado e visa Curitiba, São Paulo e Rio.
Ninguém questiona a fala de Aras sobre “correção de rumos” e “garantias individuais”, mas é preciso ficar claro se, por trás, não está em curso o desmanche da Lava Jato, punir e demonizar seus expoentes, impactar processos em andamento e até anular condenações já em execução. Ou seja, se a intenção é acabar com “excessos”, “hipertrofia”, investigações indevidas, dribles em leis e regras – que podem efetivamente ter ocorrido –, ou desfazer tudo e demolir, por exemplo, o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol.
Enquanto Aras ataca a Lava Jato por atacado, seus aliados agem no varejo contra Moro e Dallagnol. No Supremo, Dias Toffoli propõe que magistrados só disputem eleições após quarentena de oito anos. Na Câmara, Rodrigo Maia acata a ideia – e já para 2022. É para cortar uma candidatura Moro pela raiz? Do PT ao Centrão, passando por MDB e PSDB, levante o dedo quem apoia Moro e Lava Jato no Congresso!
Simultaneamente, entra em ação o CNMP. O conselheiro Marcelo Weitzel determinou intervenção na distribuição de processos no MP Federal de São Paulo, visando os que têm o carimbo da Lava Jato. Outro, Luiz Fernando Bandeira, pretende retirar Dallagnol da força-tarefa de Curitiba, por ter sugerido um fundo lavajatista com bilhões de reais recuperados do petrolão. Além disso, Dallagnol também foi pivô das mensagens hackeadas entre procuradores e Moro.
Esses movimentos contra a Lava Jato vêm num crescendo. O marco foi a ida da subprocuradora-geral Lindora Araujo a Curitiba para requisitar todo o arquivo e rastrear os equipamentos da força-tarefa. Em seguida, o vice-procurador Humberto Jacques criticou o modelo da operação como “desagregador”, “disruptivo” e “incompatível com o MPF”.
Foi aí que Toffoli autorizou a PGR a centralizar em Brasília todos os arquivos de Curitiba, Rio e São Paulo. Segundo Aras, o MPF inteiro tem 50 terabites de dados e Curitiba, sozinha, 350. É com base nessa documentação fenomenal que ele e sua equipe – que até aqui só jogam no ar suspeitas vagas – pretendem comprovar que o chamado “lavajatismo” grampeava pessoas e investigava alvos com foro privilegiado ilegalmente, usava conduções coercitivas como tortura psicológica, aceitava e compensava excessivamente qualquer delação premiada, dispensando provas daqui e dali.
Ao condenar o suposto “vale tudo” da Lava Jato, porém, a PGR e seus aliados podem estar justamente recorrendo a um “vale tudo” para desmontar as estruturas e demonizar os líderes da Lava Jato, numa repetição do que ocorreu contra a Operação Mãos Limpas, que passou de grande sucesso a triste derrota na Itália. Além disso, há o risco natural da centralização de dados na capital: o uso político. Hoje, o procurador é Aras. E amanhã?
Onde fica o presidente Bolsonaro nisso tudo? Depois de meter a mão no Coaf, mexer os pauzinhos na Receita, romper com Moro e ser investigado por suspeita de intervenção na PF, ele escolheu Aras fora da lista tríplice e reforça a percepção de uma união de Judiciário, Legislativo e Executivo contra a Lava Jato – que, entre erros e acertos, foi importantíssima para o País. E, se a Lava Jato é uma “caixa de segredos”, como diz Aras, a articulação contra ela também é. E seus segredos podem ser bem mais cabeludos.
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DOSSIÊ OBSCURO

Editorial Folha de S.Paulo

Embora o presidente Jair Bolsonaro tenha deixado nas últimas semanas a prática de ataques públicos a instituições e adversários políticos, amplos setores de seu governo prosseguem no fomento da polarização e do conflito ideológico.

Assim o exemplifica a revelação do UOL de que o Ministério da Justiça deflagrou, no mês de junho, ação sigilosa para monitorar um grupo de 579 servidores federais e estaduais da área de segurança identificados como participantes de um “movimento antifascista”.

Além desses funcionários, o dossiê inclui quatro acadêmicos, entre eles o ex-secretário de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso, Paulo Sérgio Pinheiro, desde 2011 presidente da comissão internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) voltada à República Árabe da Síria.

A produção de um dossiê com nomes, endereços em redes sociais e, em alguns casos, fotografias coube à Secretaria de Operações Integradas (Seopi), uma das cinco secretarias subordinadas ao ministro André Mendonça.

O titular da pasta, como se sabe, foi nomeado por Bolsonaro em abril para substituir Sergio Moro, que deixou o cargo ao se declarar coagido a interferir no comando da Polícia Federal —que investiga parentes e aliados do mandatário.

Mendonça, que ao tomar posse no cargo identificou o presidente como um “profeta na luta contra a criminalidade”, não parece ter maiores pruridos quando se trata de agradar ao chefe.

O documento preparado pelo ministério foi encaminhado a diversos organismos da esfera pública, entre os quais a Polícia Federal, o Centro de Inteligência do Exército (CIE), a Polícia Rodoviária Federal, a Casa Civil e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

A reportagem despertou a reação de setores da sociedade, forças políticas e instituições. Já há solicitações para que o ministro deponha no Congresso, procedimentos em curso no Ministério Público Federal e pedido ao Supremo Tribunal Federal para que investigue o caso e mantenha a guarda provisória da documentação.

São respostas justificadas diante de uma iniciativa nebulosa e de aparência persecutória. Cabe ao ministro Mendonça prestar as explicações sobre os motivos que o levaram a investir em tal empreitada.

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ENXUGANDO GELO

César Felício, Valor Econômico
O linchamento virtual praticado nos últimos dias pelos militantes bolsonaristas contra a estrela da internet Felipe Neto – segundo maior ‘youtuber’ do Brasil, com 39 milhões de seguidores, quase a população da Argentina – mostra que a roda da guerra digital não parou de girar. Não está sendo detida pela pressão da classe política, que providenciou um pacote com projeto de lei sobre “fake news”, CPI sobre o tema e inquérito no Supremo Tribunal Federal, nem pela própria autorregulação das empresas.
Um fenômeno nas redes com suas frivolidades para adolescentes, Felipe Neto aventurou-se há algum tempo no ativismo político, contra o conservadorismo de modo geral. Um ponto culminante deu-se ontem, com o debate promovido pelo site “Jota” entre a celebridade e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso. A ofensiva de Neto começou em meados do mês, ao gravar, em inglês, um vídeo para o “The New York Times” em que diz que Bolsonaro não só é pior do que Trump como está abaixo de todos os outros governantes da terra.
O troco, como costuma acontecer, veio com uso desproporcional da força. Apenas na manhã do dia 27, segundo o comunicador, 416 vídeos foram subidos no Facebook e Instagram associando-o à pedofilia. Houve quem fosse mais sofisticado e postasse um tutorial sobre como desmonetizar os vídeos do youtuber. Houve quem fosse mais tosco e ensinasse rituais de magia negra para prejudicá-lo.
O fato é que a polêmica sobre Felipe Neto parece apenas um sinal na superfície com raízes muito mais profundas. “A atenção está voltada para redes mais fáceis de monitorar, como YouTube e Twitter, mas de longe o problema maior que existe no Brasil é o WhatsApp”, comentou Pablo Ortellado, professor de gestão pública na USP, campus da Zona Leste. “As ações tomadas até o momento não têm força para barrar esta máquina”.
O WhatsApp, segundo pesquisa encomendada pelo Senado em novembro de 2019, citada no livro “A máquina do ódio”, da jornalista Patrícia Campos Mello, é a fonte de informação mais importante para 79% dos pesquisados. De acordo com outro levantamento do ano passado também mencionado na obra, feito pela Idea Big Data em maio, 52% das pessoas confiam em mensagens noticiosas enviadas por familiares. Ortellado lembra que o aplicativo está baixado em 98% dos celulares no país.
Se no YouTube o problema é o incentivo à polarização que a monetização representa, já que o formato da rede favorece a opinião e o número de visualizações dispara com mensagens radicais, no WhatsApp a chaga é o sigilo criptografado de mensagens enviadas em massa.
“O problema para se conseguir uma ação efetiva no Brasil que limite guerras digitais não é apenas tecnológico, é político. A sociedade está polarizada e dividida sobre o tema”, comenta Ortellado. O professor da USP refere-se ao projeto de lei em tramitação na Câmara que permite o armazenamento de metadados de redes, o que viabiliza a rastreabilidade e a punição de criminosos digitais no WhatsApp. A proposta tende a travar na Câmara, e se passar, seu veto pelo presidente Jair Bolsonaro é quase certo.
O demônio é um ser de muitas faces nessa discussão, não só no Brasil, como no mundo. Na Turquia, Recep Erdogan articula a aprovação de uma lei que permite a remoção de conteúdo ofensivo nas redes. É algo potencialmente lesivo para a liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, Trump pressiona empresas a diminuírem sua autorregulação. Abre caminho para um provável abuso da liberdade de expressão.
A luta pelo poder reciclou o jargão do general prussiano Clausewitz, aquele que vaticinou ser a guerra a continuação da política por outros meios. Dependendo da forma como as redes forem disciplinadas, os planos de continuidade de um grupo à frente de um Estado podem ficar irremediavelmente comprometidos.
Essa característica dificulta que princípios prevaleçam entre os tomadores de decisão sobre o tema. Há um retrocesso claro na democracia quando as regras do jogo para a competição política deixam de ser consensuais, o que é o caso brasileiro.
Em meio ao gelo sendo enxugado, o avanço mais notável para se colocar um mínimo de civilidade nas redes sociais partiu das próprias empresas. Ao limitar no começo do ano passado o reenvio de mensagens e monitorar as linhas de transmissão, o WhatsApp tornou um pouco mais complexo e caro seu uso como ferramenta política. “Antes você fazia um grande disparo com um só chip. Para atingir 300 mil pessoas era uma questão de horas. Agora são necessários dias. A democracia precisava disso”, comentou o marqueteiro eleitoral André Torreta.
O aperto do torniquete do WhatsApp gerou dois fenômenos. Um é a comunicação dentro das próprias bolhas, o chamado viés de confirmação. As listas de transmissão vão virando um instrumento para confirmar pontos de vistas já existentes. O outro é a migração para novas plataformas.
“Existe uma tendência crescente de uso do Instagram e do Tik Tok, para fins políticos, dentro e fora do Brasil. A produção de ‘fake news’ aumentou e se sofisticou, com o uso de ‘deep fakes’ (imagens e áudios manipulados)”, observa Mauricio Moura, diretor do Idea Big Data.
Para Moura, para combater “fake news” a estratégia do mundo política em vigiar e punir os comandantes dos exércitos digitais não é suficiente. “Infelizmente não é possível agir apenas sobre a oferta. É necessário agir sobre a demanda, o receptor. Convencê-lo a se informar com outras fontes. É uma questão da educação”, comenta, como quem menciona um problema impossível de se resolver.
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O OVO DA SERPENTE

Fábio Tofic Simantob, PIAUÍ

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, virou persona non grata no Palácio do Planalto ao proibir a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. O ministro argumentou que o ato de nomeação de um amigo da família presidencial estava contaminado por desvio de finalidade em “inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”. Logo veio a resposta. No dia seguinte, o presidente da República Jair Bolsonaro disparou uma saraivada de críticas e até ameaças contra o STF e Moraes.

Adotou a mesma postura com relação a Celso de Mello – depois que o ministro tornou público o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril e pediu uma avaliação da Procuradoria-Geral da República sobre a conveniência de apreender o celular do presidente. Atacou outra vez Moraes, quando este autorizou um conjunto de mandados de busca e apreensão em endereços de pessoas próximas ao presidente. Depois que seus apoiadores promoveram uma chuva de fogos de artifício sobre a sede do STF, Bolsonaro tentou suavizar seus ataques ao tribunal, enviando até uma comitiva a São Paulo para conversar em privado com Moraes. Fez isso movido pelo temor de que decisões futuras do tribunal possam lhe prejudicar, e não porque adquiriu um súbito respeito às funções dos ministros.

A animosidade do presidente contra o STF, contudo, é anterior a esses fatos. Todos se lembram da fala do deputado federal Eduardo Bolsonaro (SP) de que bastavam um cabo e um soldado para fechar o Supremo. O STF costuma ser o alvo preferencial também de apoiadores do presidente, que gostam de se juntar na rampa do Planalto para atacar a democracia e a Justiça, e até se aglomeraram à porta do STF com máscaras e tochas na mão – uma encenação sinistra inspirada em bandos fascistas do passado. O presidente não censura esses atos. Pelo contrário, estimula-os.

O presidente tem uma visão distorcida, quando não infantilizada, a respeito do Supremo e do ofício de julgar. Mas não é apenas a imaturidade psicológica que o impede de compreender o sentido da Justiça para além de algo que lhe favoreça no momento oportuno. Muito tempo antes de assumir a Presidência, Bolsonaro já praticava ataques à democracia e às instituições democráticas, recorrendo a um discurso que, em outros tempos, costumava desqualificá-lo de imediato para o debate político. Algo aconteceu no Brasil nos últimos anos que permitiu que esse discurso deixasse de ser visto como caricato e ganhasse a atenção de parte dos brasileiros.

A crise das esquerdas e do PT pode ter contribuído para o fortalecimento da direita, mas isso não seria suficiente para cacifar alguém do talhe de Jair Bolsonaro, tanto mais que havia várias outras opções eleitorais, nas diferentes esferas da vida política. O que de fato mudou o cenário foi a Operação Lava Jato, na qual o discurso do presidente encontrou solo fértil. Não me refiro aqui a essa ou àquela condenação gestada em Curitiba, mas sim ao proselitismo antissistema que encontrou eco entre muitos, propagando-se para fora dos autos – na imprensa, em artigos e entrevistas. Foi uma luta de guerrilha. Sergio Moro não virou ministro por causa de Jair Bolsonaro. Foi Bolsonaro quem pegou carona no discurso de Moro.

Em diversos momentos, procuradores da Lava Jato deixaram seus afazeres em Curitiba para empreender campanhas contra a classe política e a cúpula do Poder Judiciário. Os direitos e garantias fundamentais foram demonizados, a Constituição foi transformada em reles escudo para delinquentes. Esse discurso já se difundira, de certa forma, em parte da opinião pública, sendo usual ouvi-lo até mesmo da boca de participantes de programas de rádio e televisão. Foi com Moro e a Lava Jato, entretanto, que encontrou o “refinamento” social de que precisava para penetrar nos salões de baile da sociedade brasileira.

O bastão moral que Bolsonaro empunhou para vencer as eleições foi o da cruzada antissistema ou da luta contra tudo que está aí, principalmente contra os direitos e liberdades. Suas manifestações contra o STF, portanto, vão muito além de uma discordância de momento. Visam atacar a própria observância e o respeito às liberdades garantidas na Constituição. 

Bolsonaro disse uma vez, num arroubo absolutista nos moldes atribuídos a Luís XIV, que “eu sou, realmente, a Constituição”. É natural, e até legítimo, que ele tenha um senso de justiça próprio. Cada um tem o seu. O ser humano não nasce com capacidade inerente para descrever os fenômenos físicos da natureza, mas bastam alguns anos de vida para já se achar apto a dizer o que é justo e o que não é. Durante muito tempo, vive num mundo binário, maniqueísta, onde justo é tudo o que lhe agrada, e injusto, tudo o que lhe prejudica. Mesmo quando chegam à vida adulta, quase todas as pessoas pressupõem que ser justo é tomar partido. Isso fica evidente quando há um conflito entre nações: a questão não é qual país é o mais justo, mas, sim, de que lado estamos.

Esse sentimento comum a todo ser humano é tão poderoso que as próprias instituições jurídicas o solicitam em determinadas situações. Algumas sociedades democráticas até hoje confiam a jurados, homens e mulheres escolhidos aleatoriamente entre pessoas comuns, a tarefa de julgar um réu, a partir da avaliação de determinados fatos e provas. No Brasil, são pessoas comuns que julgam casos de homicídio e outros crimes dolosos contra a vida.

O filósofo suíço Henri-Frédéric Amiel (1821-81) disse que um físico, um químico, um matemático e um jurista são capazes de dar respostas tão justas aos problemas da alma humana como as que daria um barbeiro. Mas, se todos estão habilitados a emitir juízo sobre o justo e se há tantos juízos justos diferentes e até antagônicos, de onde vem a legitimidade de uma Suprema Corte numa sociedade democrática? Por que confiar a onze ministros, ou, em maior escala, a milhares de juízes de direito, o poder de dizer o que é justo para toda uma nação?

Ocorre que julgar o próprio direito é tarefa de especialistas. Não é a mesma coisa que fazem os jurados ao examinar os conflitos da alma humana ou afirmar a ocorrência de fatos criminais. A aplicação do direito exige aprendizado teórico e técnico, e não deve por isso ficar sujeita à noção de justiça que emana do senso comum.

Essa forma de enxergar o julgamento técnico é antiga. Aristóteles, no prólogo de Ética a Nicômaco, alertou que, em questões gerais da vida, o bom juiz é o que dispõe de cultura geral, mas, no que diz respeito a um domínio determinado, o julgamento deve ser feito por especialistas. O juiz de direito não recebe o cargo para julgar de acordo com sua cultura geral, suas convicções íntimas ou sua forma especial de ver o mundo, como às vezes se acredita. A aprovação em concurso público lhe confere salvo-conduto para aplicar o direito de acordo apenas com o conhecimento técnico-jurídico que aprendeu na universidade. Para ingresso na magistratura, a prova é de direito, e não de cultura geral ou de senso de justiça. Até para ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal o requisito fundamental é ter notório saber jurídico, e não um senso de justiça aguçado. O juiz é um especialista, como é o advogado, o dentista ou o veterinário.

Investido, como juiz, do poder de aplicar a lei e nada mais do que isso, Moro tornou-se a figura do juiz rebelde, do juiz símbolo da subversão da letra fria da lei, do herói combatente das injustiças que, no seu entender, cismam em permanecer incrustadas como parasitas nos textos legais. As regras que estabelecem onde um caso deve ser julgado – se em Curitiba ou em Brasília, por exemplo – foram jogadas para debaixo do tapete. A capital do Paraná se tornou o lugar do juízo universal do combate à corrupção, com prisões sendo decretadas aos borbotões como antecipação de pena, com o objetivo de forçar delações premiadas. Em um dos primeiros habeas corpus que chegaram ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, questionando a legalidade de dez prisões decretadas por Moro, um procurador da República, Manoel Pastana, deixou escapar que a prisão estava sendo usada para extrair confissões.

O próprio Moro, em artigo publicado em 2004 no qual faz uma análise da Operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália, antecipava alguns métodos que seriam empregados dez anos mais tarde pela Lava Jato. Ele diz, por exemplo, que o combate à corrupção passava necessariamente por um exercício de deslegitimação do sistema vigente – o que se traduziu na deslegitimação de todos aqueles que não aceitassem se dobrar aos métodos da sua futura investigação. Aludia ainda aos “juízes de ataque” – pretori d’assalto, como se diz na Itália –, prontos a usar a caneta para espalhar seu senso de justiça à população. Era como Trussótzki, o bufão do romance O Eterno Marido, de Dostoiévski, que creditava as grandes ideias da humanidade a sentimentos profundos, e não ao conhecimento adquirido ao longo de séculos.

Moro era a própria encarnação do juiz de ataque. E ai do desembargador ou do ministro que ousasse questionar esses métodos. Eram logo apontados como defensores da corrupção, amantes da impunidade, arautos dos poderosos. Teriam que enfrentar a fúria da opinião pública, mobilizada rapidamente feito tanques Panzer, pilotados por integrantes da força-tarefa da Lava Jato. O direito virou refém do arbítrio dos justos.

A estratégia de deslegitimar o direito e os sistemas jurídico e político tornou-se, a certa altura, tão militante, que alguns procuradores passaram a atacar ministros do STF mesmo em casos em que não atuavam. Em 3 de julho de 2016, Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos, dois dos principais integrantes da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, assinaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo atacando o Supremo por causa de um habeas corpus concedido a um réu que respondia a processo em São Paulo.

O artigo comparava a decisão ao salto duplo twist carpado da ginasta brasileira Daiane dos Santos e, de maneira velada, levantava uma série de suspeitas sobre os motivos que teriam levado o STF a conceder o habeas corpus. Aproveitando-se da raiva da opinião pública e da incompreensão que esta tinha da matéria jurídica, os procuradores buscaram deslegitimar o papel do STF como garantidor de liberdades individuais, criando uma espécie de ruptura entre a sociedade e a Corte. O direito passou a ser visto como a trava que impedia o país de prosperar, o obstáculo para alçá-lo a outro nível de civilização. Como se, para progredir, o Brasil precisasse ultrapassar o direito, deixar que os justos reescrevessem as leis e a Constituição.

Bolsonaro é o subproduto político dessa visão de mundo. 

Não deixa de ser curiosa a indignação de Jair Bolsonaro com a decisão de Alexandre de Moraes. Ele acusa o ministro de usar sua caneta de juiz para corrigir injustiças de outro poder da República, o Executivo, exatamente o tipo de decisão que, como deputado e depois como candidato, aplaudia com fervor. Agora, exige que o Judiciário adote postura inversa àquela que o ajudou a chegar ao Palácio do Planalto. Guia-se pela famosa frase atribuída a Getúlio Vargas, que poderia ser assim atualizada: “Aos meus inimigos, os mais profundos sentimentos de justiça do juiz Moro; a mim, a lei.”

Cabe ao STF julgar a validade do ato administrativo de nomeação feita pelo presidente da República, caso haja indícios de desvio de finalidade. O chefe do Executivo não poderia, por exemplo, nomear um filho para cargo público. Se o fizesse, ninguém censuraria a decisão do STF de anular a nomeação. Portanto, é cabível discutir se o ministro Alexandre de Mores acertou ou errou ao barrar a nomeação de Ramagem, mas é um casuísmo classificar sua decisão como “ativismo do STF”. Nem toda decisão errada é ativismo.

Em novembro de 2018, quando a ministra Cármen Lúcia deferiu liminar em ação proposta pela Procuradoria-Geral da República, suspendendo o decreto de indulto editado por Michel Temer, o presidente eleito Jair Bolsonaro não teceu uma única crítica ao STF, nem disse que o Supremo estaria invadindo a esfera do Executivo. O silêncio tinha razões óbvias. Bolsonaro é contra o indulto, salvo se estiver afinado com sua ideologia – como o que concedeu a policiais em 2019. Situação parecida ocorreu quando o ministro Luiz Fux suspendeu a parte do pacote anticrime que institui o juiz de garantias. Apesar de ter sancionado o artigo que previa esse tipo de juiz, Bolsonaro não tinha nenhuma simpatia pela proposta, que separa o juiz da investigação do juiz do julgamento – a antítese do que Moro sempre representou. De novo, Bolsonaro não deu um pio contra a decisão do STF.

Também não fez nenhum reparo ao Supremo quando Dias Toffoli, presidente da Corte Suprema, deferiu liminar suspendendo todas as investigações de lavagem de dinheiro no país baseadas em relatórios de informação financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Nem poderia criticar, pois a medida atendeu a um pedido formulado por seu filho e senador, Flavio Bolsonaro, investigado no Rio de Janeiro por suposto crime de “rachadinha”, o confisco ilegal de parte dos salários dos funcionários de seu gabinete parlamentar. Tampouco o inquérito das fake news recebeu qualquer espécie de crítica do presidente – até o momento em que se voltou contra seus correligionários.

Extremistas de direita e de esquerda podem espernear, mas, no final das contas, todos querem se agarrar à Constituição para proteger seus direitos. E isso ocorre porque uma Constituição não existe apesar dos conflitos sociais, mas por causa deles. Mau sinal é quando juízes caem na tentação de atender a certas expectativas sociais do momento em detrimento das liberdades. 

Para o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, não há justiça na história. O que não quer dizer que estão todos desculpados. O juiz rebelde dos séculos XVIII ou XIX – que se opunha às injustiças de um ordenamento jurídico opressor, construído sem a participação política da maioria da população – nada tem a ver com o juiz de assalto que Moro cita no artigo de 2004, um magistrado que se arroga o poder de cassar direitos e liberdades inscritos na Carta da República. Já não vivemos no século XVIII. O regime escravocrata dava espaço de participação política para apenas uma minoria, que governava o restante da população com mão de ferro, fazendo da lei um instrumento de opressão. Descumpri-la, portanto, era a única forma de enfrentar a tirania.

Hoje não. Nossa época é a “era dos direitos”, na definição do filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004). O Estado moderno não é somente democrático, mas também de direito. O Parlamento é a mais sofisticada forma de representação democrática que o ser humano foi capaz de criar, apesar de suas limitações. A principal delas é que não consegue resolver problemas individuais, pois as leis são feitas com vistas ao interesse coletivo, de toda a sociedade ou da maior parte dela, sem se ater ao que diz respeito a um único indivíduo, especificamente. A segunda limitação do Parlamento é que essa instituição, por mais democrática que seja, nem sempre representa os interesses da sociedade inteira, mas apenas da maioria.

A Corte Constitucional moderna – no Brasil, o Supremo Tribunal Federal – serve principalmente para garantir que um indivíduo, mesmo que ele não disponha de representação no Parlamento, possa ter seus direitos garantidos. Por isso vemos, em boa parte do mundo, as supremas cortes descriminalizando o uso de certas drogas e legalizando o aborto. Estão fazendo o que o processo político muitas vezes não consegue: ampliar e garantir liberdades individuais.

Imagine um país onde uma das cláusulas pétreas – aquelas que, em nenhuma hipótese, podem ser alteradas – é o direito de os homens usarem roupas de todas as cores. A certa altura, porém, resolve-se fazer um plebiscito para proibir o uso de roupas cor-de-rosa por homens, e toda a população, exceto um cidadão, vota a favor da nova lei. O STF existe para garantir que aquele único cidadão possa continuar usando trajes cor-de-rosa sem ser preso, mesmo que isso contrarie a vontade da maioria. A Corte pode autorizar o uso depois de julgar seja uma ação direta de inconstitucionalidade da nova lei (ação que só algumas autoridades, organizações ou entidades estão autorizadas a propor, como o presidente da República, partidos políticos e a Ordem dos Advogados do Brasil), seja um pleito individual movido pelo cidadão proibido de usar cor-de-rosa. A decisão favorável a ele repercutirá em todo o sistema de justiça penal, permitindo que outros homens usem a mesma cor, caso queiram.

A união homoafetiva, reconhecida pelo STF há alguns anos, pode agredir a moral de determinada comunidade, mas ninguém em sã consciência cogita entrar com ação pedindo a anulação do casamento de dois homens, porque não existe um direito individual à não união de duas outras pessoas, mas no máximo uma expectativa social de que essa forma de enlace amoroso não seja tolerada.

O mesmo se pode dizer a respeito do uso de células-tronco para pesquisas, do aborto de anencéfalos, da prisão só após o trânsito em julgado ou o do sacrifício de animais em cultos religiosos, questões que também foram levadas ao STF nos últimos anos. Proibi-los seria negar direitos individuais à intimidade, dignidade da pessoa humana, liberdade de culto, presunção de inocência. Ao permiti-los, o STF não violou o direito de ninguém. No máximo, frustrou expectativas sociais da população, talvez até da maioria.

O papel do STF é garantir direitos e não corresponder às expectativas sociais de quem quer que seja. Um sinal de que uma Suprema Corte não vai bem é quando ela resolve inverter o seu papel. A pretexto de atender a vontade de suposta maioria, o Supremo resolve suprimir um direito individual qualquer – como o de homens usarem cor-de-rosa – sob alegação de que, embora esse direito conste da Carta da República, a maioria da população já não o tolera mais. Agir assim é como abrir a caixa de Pandora e se degenerar.

Como se vê, é papel difícil o de uma Corte Constitucional. Quando agrada apenas a um indivíduo ou a uma minoria, e desagrada a todo o resto, pode gerar indignação, mas não está senão fazendo valer direitos inscritos na Constituição. Está apenas desempenhando fielmente o papel que se espera dessa Corte em um Estado que não é só democrático, mas também de direito. Quando quer agradar a todos em detrimento do direito de um único indivíduo, desvirtua-se e enfraquece, passando a ser mero coadjuvante do processo de deterioração da vida democrática. Daí a se tornar presa fácil do discurso populista de um presidente da República é só um passo. É preciso distinguir, portanto, na atividade de uma Suprema Corte, entre a atitude de reafirmação de direitos e liberdades – que permite conquistas que o processo político jamais consagraria – daquilo que é ativismo puro e simples, com a indevida intromissão política.

O que Jair Bolsonaro chama de “ativismo” é, na verdade, fruto de sua imaginação binária. Ativismo para ele é tudo o que o STF decide contra suas expectativas pessoais. O que o presidente critica nas decisões do STF é a própria substância da Corte, ou seja, a reafirmação de direitos individuais inscritos na Constituição Federal – os mesmos que Bolsonaro despreza, como os dos índios, das mulheres, dos negros, dos homoafetivos e dos acusados no processo penal (a menos que sejam seus amigos ou familiares, claro). 

Arevolta do presidente com os inquéritos a respeito da difusão de fake news é fruto do seu garantismo de ocasião. Quando Moro se impunha em audiências da Lava Jato, encarnando a figura do juiz acusador, com protagonismo maior que o dos próprios acusadores, Jair Bolsonaro e seus asseclas ficavam em êxtase. De repente, passaram a cobrar o respeito ao sistema acusatório, sistema judicial em que o juiz não toma iniciativa e é um mero espectador do embate travado entre as partes – a antítese do que Moro e a Lava Jato representaram. Quando Moro mandava prender ou fazer conduções coercitivas contra a previsão expressa da lei, prejulgando a causa antes mesmo de haver uma acusação formal, Bolsonaro e seus seguidores sequer cogitavam contestar o magistrado. Da noite para o dia, entretanto, o presidente passou a criticar que o mesmo juiz do inquérito possa vir a ser também o juiz do julgamento final, no caso do inquérito do STF.

O próprio Moro vem exercendo sua defesa com uma amplitude que jamais garantiu aos réus que respondiam processo na sua vara. As investigações em Curitiba corriam em sigilo absoluto, com vazamentos seletivos, sem a possibilidade de qualquer intervenção da defesa dos investigados nos atos, menos ainda nos depoimentos de testemunhas ou colaboradores. O acesso à prova só era permitido depois que a Polícia Federal já havia devassado as residências, cumprido mandados de prisão e exposto o preso algemado em rede nacional de tevê, para deleite do clamor público.

Uma reportagem da Folha de S.Paulo, publicada no dia 8 de junho, revelou que, ao contrário da praxe judiciária brasileira, o inquérito que investiga se o presidente Bolsonaro interveio na Polícia Federal vem garantindo aos advogados dos investigados não apenas a sua presença nos depoimentos como também a possibilidade de fazerem perguntas às testemunhas, algo que só se costuma permitir na fase judicial. O modelo é digno de aplauso, pois consagra a ampla defesa e o contraditório, mas desde que se aplique a todos, e não apenas a “cidadãos especiais”.

O inquérito sobre a difusão de fake news provocou polêmica porque não é usual o STF fazer investigações, tanto mais quando a própria Corte é vítima. Mas a investigação está prevista num artigo do Regimento Interno do STF, que permite a esse poder instaurar inquérito para apurar fatos ocorridos em suas dependências. O Código Penal brasileiro considera consumados os crimes de ameaça no momento que as vítimas tomam conhecimento deles. Sendo assim, os ataques aos ministros, embora virtuais, teriam se consumado nas dependências do Supremo. Por outro lado, se o STF não puder julgar casos em que é vítima, quem então julgaria o presidente por crime contra a honra dos onze ministros? Ninguém? O presidente não responderia pelo crime? É o STF que, em última instância, interpreta as suas normas e o seu regimento. A Corte pode errar. E erra. E está sujeita a críticas. Mas não se pode dizer que está invadindo a competência de outro poder ou violando a harmonia entre os três poderes.

Continua muito atual o discurso proferido por Rui Barbosa no Senado em 29 de dezembro de 1914: “Em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar […]. O Supremo Tribunal Federal, senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade.”

Esse privilégio de errar por último não implica desequilíbrio de forças com relação aos poderes Executivo e Legislativo, se lembrarmos que o STF é o único dentre eles cuja cúpula (seus onze ministros) é escolhida pelos outros dois poderes (o presidente nomeia, e o Senado aprova ou não). Ainda hoje, é mais prudente dar ao Supremo Tribunal Federal o privilégio de ser o último a errar – e não ao ocupante de ocasião do Palácio do Planalto.

*

Nota: Fábio Tofic Simantob é advogado de diversos réus na Operação Lava Jato.

FÁBIO TOFIC SIMANTOB

É advogado, mestre em direito penal pela USP, ex-presidente e atual conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

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EM CAMPANHA NO SERTÃO

Bernardo Mello Franco, O GLOBO
Jair Bolsonaro vestiu chapéu de vaqueiro, subiu no lombo de uma égua e acenou em festa para a multidão. A mais de dois anos das eleições de 2022, o presidente produziu ontem uma típica cena de campanha. Só a máscara no queixo lembrava a pandemia em curso.
Com mais de 90 mil brasileiros mortos pela Covid, o capitão desembarcou no sertão para cumprir agenda de candidato. Ele voltou a ignorar as recomendações sanitárias: provocou aglomeração e pegou nas mãos de eleitores. No mesmo dia, o Planalto informou que a primeira-dama está infectada pelo coronavírus.
Montado na máquina federal, Bolsonaro tenta avançar sobre a última cidadela do lulismo. O Nordeste foi a única região em que ele teve menos votos do que Fernando Haddad em 2018. Agora recebe um de cada três reais do auxílio emergencial.
O programa já produziu dividendos eleitorais. O presidente ganhou popularidade entre os mais pobres, que passaram a representar 52% de seus apoiadores. Isso compensou sua queda entre os ricos, desiludidos com o abandono do discurso anticorrupção.
Ontem o capitão foi recebido com um coro inusitado contra a Lava-Jato, que ajudou a elegê-lo. Ele desfilou ao lado do senador Ciro Nogueira, o poderoso chefão do PP. Ex-lulista, o parlamentar é réu no Supremo por organização criminosa. Há cinco meses, voltou a ser denunciado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
O presidente visitou dois estados governados pelo PT: Piauí e Bahia. Ele inaugurou uma adutora em Campo Alegre de Lourdes (BA), onde perdeu para Haddad por 89% a 11%. Em cinco minutos no palanque, citou Deus sete vezes e repetiu seu slogan eleitoral outras três.
“Quando nós vemos e sentimos a felicidade de um povo quando chega a água, isso amolece nossos corações”, discursou. A obra já estava quase pronta quando ele tomou posse, mas isso não foi lembrado na cerimônia.
Bolsonaro esnobou os nordestinos no início do governo. Agora aposta neles para pavimentar o caminho da reeleição. Não será uma tarefa fácil. Em junho, o Datafolha mostrou que ele registra 52% de ruim e péssimo na região. Ainda é seu pior desempenho no país.
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O PEIXE E O AQUÁRIO

Mentor Neto, ISTOÉ

Jair é um fenômeno, não?

Porque é surpreendente como alguém com sua obra, sua história política tenha chegado ao poder e, mesmo depois de seus inúmeros e tresloucados atos nesse um ano e meio de governo, ainda possua apoio de uma significativa parcela da população.

Um político que nunca escreveu um livro, nunca teve um projeto relevante aprovado, nunca uniu multidões, tenha sido catapultado ao cargo mais alto da Nação e ali se mantenha firme e forte.

O despreparo assumido do presidente é assunto de constantes reportagens, artigos, vídeos, vlogs, posts e twits.
Por exemplo, em seu canal no YouTube, meu vizinho de ISTOÉ, o professor Marco Antonio Villa, com mais de 600 mil assinantes, faz um trabalho incansável, diário, de lembrar os absurdos do governo e de nosso líder maior.
Mas nada faz o ponteiro do bom senso nas pesquisas se mover dos 30% de apoio que o mandatário recebe.
Seus apoiadores são impermeáveis a qualquer argumento.

Talvez num breve apanhado de seu currículo possamos encontrar a origem de tão inequívoco apoio.
Quem sabe a carreira militar do terceiro presidente das Forças Armadas eleito por voto popular o aproxime dos outros dois, Hermes da Fonseca e Dutra, respeitados na caserna.

Não é o caso.

Aos 33 anos nosso Messias foi aposentado, em sua breve carreira no Exército, por ter elaborado um plano para explodir bombas-relógios em quartéis, lutando por melhores salários.

Atitude que o nivela à mesma postura anticonstitucional que costuma acusar seus inimigos políticos da esquerda.
Quem sabe tenha tido uma vida política de conquistas, tal qual um Tancredo Neves, ou um Ulisses Guimarães.
Não é o caso.

Ao longo de seus 26 anos de carreira política, o então vereador, depois deputado, apresentou 172 projetos.
Um deles propunha que Enéas Carneiro fosse incluído na relação de Heróis da Pátria, para se ter ideia do nível de irrelevância.

Dos projetos votados, apenas dois foram aprovados, o que comprova que nunca se destacou pela defesa dos interesses da população.

Quem sabe sua popularidade se deva ao apoio incondicional de um partido político ou agremiação, como foi o caso de Lula e o PT.

Não é o caso.

Mesmo aposentado, Bolsonaro apresentou 53 projetos defendendo interesses dos militares. Nenhum foi aprovado.
No baixo clero, onde sempre transitou, Bolsonaro passou pelo PPB, PDC, PPR, PFL, PTB, PP, PSC e PSL, até sua condição atual de sem partido.

Quem sabe talvez tenha sido sua retórica, ou talento de orador, como um Brizola, por exemplo.

Não é o caso.

Bolsonaro, antes da eleição, era quase uma anedota de mau gosto, ao apoiar os mais controversos temas, como a homofobia (“…prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí.” — 2011); atacar colegas do Congresso como Maria do Rosário; apoiar torturadores como Brilhante Ustra e por aí vai.
Quem sabe seja sua intelectualidade. Uma espécie de FHC. Talvez Bolsonaro seja um sociólogo amador, um psicólogo autodidata, um economista diletantista.

Não é o caso

Durante a campanha deixou claro inúmeras vezes que não entende de nenhum assunto e que confiaria nos ministros especialistas.

“Minha especialidade é matar — (2017)”, foi à única indicação de que domina alguma área do conhecimento humano.

Apesar disso, demitiu diversos ministros especialistas que discordavam de sua própria ignorância.

Quem sabe seja o caso de admitirmos a mais terrível das opções.

A de que somos um povo tacanho, ignorante, preconceituoso e incapaz sequer de reconhecer o despreparo de quem nos lidera.

O peixe, afinal, é o último a reconhecer o aquário.

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BOLSONARO, O COMUNISTA

Vinicius Torres Freire, Folha de S.Paulo
Jair Bolsonaro fez caravana pelo Nordeste. Fez um minicomício em São Raimundo Nonato, sul do Piauí, cidade que está no quinto daquelas de menor desenvolvimento humano do país, segundo o ranking da Firjan, mas que muito progrediu nos anos lulistas. Inaugurou uma obra de abastecimento de água em Campo Alegre de Lourdes, na Bahia, ainda mais pobrinha que sua vizinha piauiense.
De dezembro de 2019 a junho de 2020, o Nordeste foi a única região em que Bolsonaro ganhou algum prestígio, segundo o Datafolha. Quando se trata de renda, apenas entre as famílias que ganham menos de dois salários mínimos o presidente ganhou pontos.
Os economistas de Bolsonaro querem tributar o 1% mais rico do país, embora também desejem uma CPMF, que não pega só a elite, pega 1%, pega geral, imposto especialmente detestado por banqueiros.
Paulo Guedes propôs um tributo que deve aumentar o custo de serviços consumidos pelos mais ricos (escola e saúde privadas, advogados etc.), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços. Seus economistas dizem pelos jornais que querem diminuir as deduções de saúde e educação no Imposto de Renda (em geral, coisa de ricos).
Querem tributar lucros e dividendos, o que vai mexer com profissionais que são empresas de si mesmo no Simples, entre outros, além de pegar parte do dinheiro que rendem aquelas ações da Bolsa. Querem uma alíquota de IR maior do que 27,5% para “pegar” quem ganha mais de R$ 36 mil (que está no 1%), como disse a esta Folha Guilherme Afif Domingos, assessor de Guedes, como se fora um líder do Occupy Faria Lima.
Guedes quer criar um Bolsa Família ampliado. É verdade que o dinheiro extra do seu Renda Brasil é por ora apenas um catadão de recursos de outros programas sociais. Mas já poderia discutir o assunto com sociólogos de esquerda.
Como todos os governos da esquerda que domina o Brasil faz 30 anos (de acordo com Guedes), Bolsonaro se alia ao PP e suas variantes de ontem, hoje e sempre. Pelo menos desde abril, corre o boato de que alguns de seus generais querem mais obras públicas, intervenção do Estado. O presidente aceitou a contragosto a reforma da Previdência, coitado.
O presidente agora ataca não apenas Sergio Moro, ex-cruzado e trânsfuga do bolsonarismo, mas também a Lava Jato e o lava-jatismo, tal como petistas. Por isso ganhou um “Fora, Bolsonaro” do Vem pra Rua, parte marchadeira da frente que depôs Dilma Rousseff.
Com essa ficha, um Jair qualquer passaria por “comunista” ou “esquerda lixo” nas redes insociáveis da extrema direita. Não é bem o caso, né, mas os planos de gastos e impostos do governo têm interesse político.
A CPMF não vai passar, repete Rodrigo Maia, mas Bolsonaro (e o próprio Maia) vão levar adiante a tributação dos mais ricos? A fim de abrir espaço para um programa de renda básica mais gordo e não mexer no teto, vão confiscar parte dos salários dos servidores federais (além de juízes e procuradores. Militares inclusive?)?
O protesto do 1% (ou dos 10%) vai derrubar parte relevante da reforma tributária? Ou vai ter “reforma na marra” e o Congresso vai pagar o preço de aumentar os impostos da “classe média” (como quase todos os ricos se chamam)?
Como não se trata de um governo normal ou racional, é difícil discutir direito tais assuntos. Mas as realidades da penúria e da sobrevivência político-eleitoral vão fazer Bolsonaro trombar com essas questões. Como dizia a propaganda do Exército, chega um momento em que o jovem tem de escolher a sua carreira.
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BOLSONARO TEM CHANCE DE SE REELEGER ?

Hélio Schwartsman, Folha de S.Paulo
Um dos problemas com a democracia é que ela favorece demais candidatos que já ocupam o cargo. A taxa de reeleição numa base de quase 3.000 pleitos realizados em diversas partes do mundo ao longo dos últimos dois séculos e meio é da ordem de 80%. Isso significa que nunca se deve desprezar um postulante à reeleição, por mais fraco que ele possa parecer.
Pesquisa recente do Instituto Paraná, que coloca o presidente como favorito à sua própria sucessão, animou as hostes bolsonaristas. Não tenho nenhuma razão para contestar os números do levantamento. Acredito mesmo que, se a eleição fosse hoje, Bolsonaro concorreria com grandes chances. Mas a eleição não é hoje. Será em 2022.
Dois anos em tempos de pandemia são uma eternidade. Nos cinco meses em que o Sars-CoV-2 circula entre nós, já vimos Bolsonaro renegar a bandeira anticorrupção e aliar-se ao centrão. Se há, porém, um fator razoavelmente consistente no que diz respeito a efeitos eleitorais, é a economia, que não vai ajudar o presidente.
Ninguém ainda sabe qual o tamanho do desastre que a pandemia vai provocar, mas é certo que estará entre os piores da história —e não será passageiro. Só por milagre assistiremos a uma recuperação tão intensa que possa servir de cabo eleitoral para o presidente em 2022.
De olho nas urnas, Bolsonaro dá sinais de que vai criar a sua versão do Bolsa Família, que ele tão duramente criticava quando o beneficiário eleitoral do programa era o PT. Em condições normais, poderia funcionar. Mas o Brasil tem hoje pouco espaço nas contas públicas. Se o presidente fizer alguma loucura, a inflação, que é eleitoralmente corrosiva, reaparece.
Alguém já afirmou que mesmo de catástrofes podem emergir coisas boas. Se a pandemia, ao escancarar as debilidades de governantes, servir para que o mundo se livre de líderes como Trump e Bolsonaro, terá produzido ao menos um efeito positivo.
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BOLSONARO PODE ESTAR CERTO

Ruy Castro, Folha de S.Paulo
Jair Bolsonaro disse que o brasileiro se joga no esgoto e não acontece nada. Bolsonaro deve saber —porque, no caso dele, é verdade. Basta ver seus amigos: políticos rastaqueras, policiais desonestos, milicianos condenados, assessores corruptos e industriais da violência. Até seus ex-vizinhos na Barra têm contas com a lei. Um presidente da República com acusados de assassínio na casa ao lado? Para Bolsonaro, é normal. Imagino seus churrascos com eles no condomínio, discutindo duplas sertanejas, o último programa do Ratinho ou um novo modelo de fuzil.
Daí não surpreende que seu governo inclua as piores pessoas do país. Ele não conhece outras. Dizia-se que dois ou três de seus ministros eram pessoas bem intencionadas. Mas pessoas bem intencionadas não se sentam a uma mesa com Ricardo Salles, Damares Alves, Ernesto Araújo, André Mendonça e Marcelo Álvaro Antônio —como a reunião ministerial de 22 de abril, ainda abrilhantada por Abraham Weintraub, tão bem demonstrou.
Quando Bolsonaro tentou obrigar seu então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, a t omar medidas que contrariavam o juramento médico, falou-se que, se se submetesse, Mandetta estaria rasgando seu diploma. Não se submeteu, foi despedido e saiu com o diploma intacto. Seu sucessor, Nelson Teich, também médico e submetido à mesma indignidade, saiu antes de manchar o diploma. O general Eduardo Pazuello, que o substituiu, não tem diploma médico para proteger. Apenas uma farda, que mandará para a lavanderia.
A intimidade com Bolsonaro não compromete só diplomas e fardas. Torna as togas também sujeitas a respingos. Não que alguns de seus ocupantes, como o procurador-geral Augusto Aras, e o presidente do STJ, João Otavio de Noronha, estejam preocupados. A vaga no STF lhes exigirá, de qualquer maneira, uma toga nova.
Pensando bem, todo dia se confirma a frase de Bolsonaro.
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NO GOVERNO BOLSONARO, SERVIDOR PÚBLICO ANTIFASCISTA INSPIRA CUIDADOS

Do Blog do Noblat, VEJA
A Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça admitiu que monitora 579 funcionários públicos federais que se declararam antifascistas nas redes sociais. A intenção da medida, segundo a Secretaria, é “prevenir práticas ilegais” e garantir a segurança. Não especificou que “práticas ilegais” os antifascistas costumam cometer. E por que elas ameaçam a segurança.
Por sinal, segurança de quem? Das autoridades constituídas em geral? Do presidente da República em particular? Do Estado como um todo? Quem sabe do planeta, uma vez que as redes sociais aproximam as pessoas e é possível que existam antifascistas em toda parte? Por que ser antifascista é algo perigoso? Aos olhos de quem? Está escrito em que lei, norma ou portaria?
Providência similar não foi tomada pela mesma Secretaria contra funcionários públicos que se declararam fascistas nas redes sociais. É de supor-se, portanto, que esses não representam uma ameaça, quando nada ao governo do presidente Jair Bolsonaro. Ou vai ver que o serviço público está livre de fascistas. Ou que fascistas sejam mais prudentes e prefiram não se assumir como tal.
Resta outra hipótese: por razões ainda não suficientemente estudadas, os fascistas do serviço público e o governo Bolsonaro descobriram surpresos que compartilham os mesmos propósitos. Assim não haveria por que o Ministério da Justiça despender tempo e dinheiro vigiando-os. Para quê? Falam a mesma língua. Entendem-se bem. Os antifascistas é que devem se cuidar.
Nada de usarem as redes sociais para dizerem que são contra o fascismo, uma “ideologia política ultranacionalista e autoritária caracterizada por poder ditatorial, repressão da oposição por via da força e forte arregimentação da sociedade e da economia”. Nada de assinarem manifestos condenando outras ideologias que guardem alguma semelhança com o fascismo.
Os celulares já não inspiram confiança e a escuta se faz, hoje, a longas distâncias. Seu melhor amigo pode delatá-lo amanhã. Evitem estranhos. Evitem jogar conversa fora. Conversas cifradas podem facilmente ser decifradas. Vejam se não estão sendo seguidos. Aproveitem esses tempos de pandemia e usem máscara até que tudo isso passe. Com fé em Deus e no voto, vai passar.
Vozes
Pandemia em discussão
  • “Há consenso entre os especialistas de que poderíamos ter tido outro manejo da crise, de que pudéssemos ter reduzido significativamente os danos causados pela pandemia”. (Gilmar Mendes, ministro do STF, sobre a proximidade da marca dos 100 mil mortos pelo Covid-19 no Brasil)
  • “O Sistema Único de Saúde, SUS, foi silenciado com uma ocupação militar [no ministério]. Deixamos de ter uma gestão em saúde para ter uma ocupação por quem quer promoção na carreira militar”. (Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde)
  • “Se fala muito sobre a vacina da covid-19. Entramos no consórcio de Oxford, e tudo indica que ela vai dar certo e 100 milhões de unidades chegarão para nós. Não é daquele outro país, não. Tá ok, pessoal?” (Jair Bolsonaro, em critica indireta à vacina chinesa contra o vírus)
  • “A discussão não é se é CPMF ou micro-imposto digital. Daqui a pouco vão inventar um nome em inglês para ficar mais bonito, para que a sociedade aceite mais impostos”. (Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados)
  • “É incompreensível discutir essas coisas quando temnos próxima uma crise apocalíptica, envolvendo emprego, problemas fiscais, quebradeira de empresas. O mundo está lidando com o assunto e, nós, nos divertindo com projetos de reforma tributária”. (Everaldo Maciel, ex-Secretário da Receita Federal)
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EFEITO LAVA-JATO

Do Blog do Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense
Armou-se em Brasília um cerco à Operação Lava-Jato, cujas forças-tarefas de Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília estão com os dias contados. As polêmicas declarações do procurador-geral da República, Augusto Aras, contra a atuação de seus integrantes foram tão categóricas que não lhe permitem um recuo sem que se transforme numa espécie de rainha da Inglaterra no Ministério Público Federal (MPF). Além disso, foram coadjuvadas pela proposta apresentada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, de quarentena de oito anos para magistrados e procuradores ingressarem na política, tema que prontamente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se dispôs a pôr em pauta no Parlamento.
À margem da discussão sobre os fundamentos jurídicos e a legitimidade das ações mais polêmicas da Lava-Jato, é óbvio que o plano de fundo de toda essa discussão são a liderança e a influência do ex-ministro da Justiça Sergio Moro junto às forças-tarefas. O ex-juiz de Curitiba se mantém como potencial candidato a presidente da República, mesmo fora do governo Bolsonaro. Sua passagem pelo Ministério da Justiça pode ter sido um grande erro do ponto de vista de sua trajetória como magistrado, se ambicionava uma vaga no Supremo, mas funcionou como a porta de sua entrada na política, provavelmente sem volta. A própria crise que o levou a desembarcar do governo Bolsonaro faz parte do roteiro de quem transita para o mundo da política como ela é. Moro é candidatíssimo, e a narrativa da Lava-Jato é o leito natural do rio caudaloso que pode levá-lo à Presidência.
Nesse aspecto, a proposta do ministro Toffoli, que parece estapafúrdia e foi desdenhada pelo vice-presidente Hamilton Mourão, mira a candidatura de Moro, sem dúvida. Não no sentido de tornar inelegível o ex-titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex de Guarujá: qualquer nova lei sobre inelegibilidade para magistrados e procuradores não pode ter efeito retroativo. Mas existe, sim, um clima no Congresso para aprovação de uma lei que tire das eleições de 2022 magistrados e procuradores da Lava-Jato que vierem a deixar a carreira para mergulhar de cabeça na luta política eleitoral.
Assim como o “partido fardado” que emergiu das eleições de 2018 na garupa do presidente Jair Bolsonaro, até agora, nada impede que surja um partido togado, “lavajatista”, na expressão de Augusto Aras, para disputar as eleições de 2022. Seria o caminho natural a tomar por parte dos procuradores da Lava-Jato, se forem desmobilizados e marginalizados pelo procurador-geral da República. A Lava-Jato, mesmo que venha a ser desmantelada pela Procuradoria-Geral e o Supremo, continuará sendo um divisor de águas na política brasileira, pelo menos para as atuais gerações. É muito difícil tomar a bandeira da ética das mãos de seus protagonistas, procuradores e juízes que promoveram o maior expurgo de políticos enrolados em escândalos de corrupção da vida nacional da nossa história.
Colaterais
O presidente Jair Bolsonaro foi eleito num tsunami eleitoral, na qual a Lava-Jato foi o fator decisivo. Entretanto, o presidente da República tomou outro rumo na condução de seu governo, desde o rompimento com Moro. Embora não se tenha registro de nenhum grande escândalo de corrupção na administração federal, a bandeira da ética se perdeu com o rompimento com Moro e, sobretudo, por causa do caso Fabrício Queiroz, amigo do presidente da República e ex-assessor do seu filho mais velho, senador Flávio Bolsonaro (Progressistas-RJ), investigado no escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa fluminense. Consciente da situação, Bolsonaro já opera uma mudança de eixo eleitoral, agora estribado na força do poder central e nas políticas de transferência de renda, como ficou evidente, ontem, na viagem ao Piauí, na companhia do senador Ciro Nogueira (PI), presidente do Progressistas e um dos caciques do Centrão. Por sinal, um político denunciado pela Lava-Jato.
Um bom termômetro da força de inércia da questão ética na campanha eleitoral teremos nas eleições de São Paulo, sobretudo na disputa pela prefeitura da capital. Embora não esteja envolvido em nenhum escândalo, o prefeito Bruno Covas, que vem liderando as pesquisas, começa a ter que pôr no seu planejamento para gestão de crises os efeitos da Lava-Jato na disputa da Prefeitura de São Paulo, em razão das denúncias contra o senador José Serra (PSDB-SP) e o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), fundadores e principais líderes da legenda no estado. Alvo de operações recentes, os dois estão sendo investigados por lavagem de dinheiro e uso de caixa dois eleitoral, o que tem um efeito deletério para a candidatura à reeleição do prefeito paulistano.
Extrapolando as eleições municipais — o que as urnas podem confirmar ou não —, é muito provável que o desgaste sofrido pelo PSDB, por causa desses escândalos, venha a criar dificuldades para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), viabilizar sua candidatura a presidente da República. Conspiram contra esse projeto a recuperação de imagem do presidente Bolsonaro e a resiliência eleitoral do PT, o que pode levar Doria à opção pela reeleição, ou seja, é melhor um Palácio dos Bandeirantes nas mãos do que os do Planalto e da Alvorada nos sonhos.
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ATIVISMO TRANSFORMADOR

Vicente Vilardaga, ISTOÉ

A esperança emana dos jovens. Num mundo tumultuado pela pandemia, pelo desrespeito às minorias e pelo avanço da extrema-direita, são eles que podem nos salvar do abismo. Caberá a uma nova geração de líderes que agora ganha apoio institucional e musculatura política pelas redes sociais, enfrentar a escalada conservadora que se desenvolve no planeta e organizar uma nova sociedade menos desigual e mais justa. Rebeldes e sensatos, esses líderes nascentes pensam e agem globalmente, embora não percam de vista as questões locais e nacionais, e substituíram a impulsividade e o sectarismo que caracterizavam muitos jovens políticos do passado, por uma visão estratégica, pluralista e humanista. Há perspectivas se abrindo no meio da escuridão e gente que usava fraldas ou brincava de pega pega na virada do século, está, hoje, na vanguarda da transformação, combatendo ideologias obscurantistas e influenciando, pela internet, milhões de pessoas com ideias progressistas.

Os exemplos começam no Brasil, com nomes como o do youtuber Felipe Neto, 32 anos, que tem promovido um debate avançado e ações sociais criativas e transgressoras, ou da deputada Tabata Amaral, 26, que optou por uma carreira política convencional, mas é uma promessa consistente, e se multiplicam pelos quatro cantos do mundo. A paquistanesa Malala Yousafzai, 23, vítima de um atentado terrorista praticado pelo grupo Talibã é uma dessas personagens decisivas nos tempos atuais. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 2014, por sua luta pelo direito das mulheres à educação. A ambientalista sueca Greta Thunberg, 17, que fará uma doação de R$ 600 mil para a proteção da Amazônia, é outra. Há também a americana de origem cubana Emma Gonzáles, 21, expoente do movimento antiarmamentista nos Estados Unidos, e a britânica Amika George, 21, ativista pela distribuição gratuita de absorventes íntimos. Outro nome é o da ugandense Vanessa Nakate, 23, militante pela ação climática na África.

Para o professor de ciência política do Insper Leandro Consentino, esses novos líderes demonstram entender a política com duas chaves. A primeira é a rede social, o meio interativo, que envolve uma permanente prontidão para o debate, e a disposição de aceitar as diferenças. A segunda é a mensagem: eles têm causas fortes e a capacidade de expô-las, de maneira combativa e sem divisionismo. “Esses jovens estão conseguindo trabalhar bem tanto o meio como a mensagem”, diz Consentino. “Há um componente ideológico nas causas que defendem, mas eles também são pragmáticos para fortalecer suas marcas perante a juventude”. De um modo geral, esses líderes atuam fora de ambientes políticos institucionais e conseguem dar voz a grupos que estavam marginalizados e silenciados. Outras características são a coerência em termos de valores e a capacidade de transmitir uma verdade por trás do discurso, defendendo causas em que realmente acreditam. Apesar de coerentes, os jovens ativistas não tem compromisso com o erro e mudam de ideia quando os fatos apontam para uma nova direção.

Meio e mensagem

Felipe Neto domina o meio e a mensagem perfeitamente e o mesmo que se pode se dizer de Malala, Greta ou de Amika. Um dos maiores youtubers do mundo, com quase 40 milhões de seguidores, Neto vem fazendo um trabalho persistente de promoção da diversidade e de enfrentamento a grupos conservadores de direita e às fake news que inundam a rede. Seu salto de prestígio aconteceu em julho do ano passado, quando decidiu distribuir 14 mil livros na Bienal do Rio de Janeiro depois que o prefeito Marcelo Crivella censurou um gibi da Marvel com dois garotos se beijando. “Justiça, inclusão, menos desigualdade e preocupação com o planeta. Acredito que essas sejam as bandeiras que eu mais defenda hoje”, disse Neto à IstoÉ.

“É preciso dar mais alcance à voz daqueles que sempre foram silenciados, principalmente se você estiver numa posição de privilégio, como é o meu caso”. Neto, que tem enfrentado uma campanha difamatória em que grupos propagadores de ódio o associam à pedofilia, diz que “luta por um país mais justo, menos desigual e com mais inclusão”. “Não tenho intenção de fazer isso através de um cargo político eletivo, mas sei que tenho muito a contribuir como um ‘outsider’”, completou.

No final de julho, o site do jornal americano The New York Times publicou um vídeo em sua sessão de opinião em que o youtuber dizia que Jair Bolsonaro “é o pior político do mundo na gestão da crise causada pela pandemia”. Ele pediu também aos americanos que não reelejam Donald Trump. A fala em inglês repercutiu globalmente e mostrou que o alcance político de Neto vai muito além do Brasil. Para o diretor do The New York Times, Adam Ellick, que promoveu o vídeo, Neto é um ativista que “fala às novas gerações”. Ellick, por sinal, dirigiu o filme Malala’s Story e foi o responsável pela revelação da fabulosa história da garota paquistanesa, a quem conheceu em 2009, quando ela tinha 11 anos e mantinha um diário anônimo em língua urdu na rádio BBC. No diário, ela relatava o medo que sentia em estudar em meio ao domínio Talibã e reivindicava que as meninas do país tivessem mais acesso à educação.

Malala, que acaba de obter seu diploma de filosofia, política e economia na Universidade de Oxford, tem a legitimidade daqueles que viveram o sofrimento na pele. Três anos depois da veiculação de seu diário, ela levou um tiro na cabeça quando saia da escola. Conseguiu sobreviver sem seqüelas e, em 2014, já refugiada na Inglaterra, seu rosto foi para a capa da revista Time e ela tornou-se a pessoa mais jovem a ganhar um Prêmio Nobel. “Esse prêmio não é somente para mim. É para as crianças esquecidas que querem educação. É para a crianças assustadas que querem paz. É para aquelas crianças que não têm voz”, afirmou. Desde então, ela comanda a Fundação Malala, que apóia projetos de inclusão educacional em países em desenvolvimento.

Greta Thunberg é outro furacão juvenil. Em 2018, com apenas quinze anos, ela começou a faltar na escola para fazer protestos diários contra o aquecimento global e as mudanças climáticas em frente ao parlamento sueco, e não demorou muito tempo para que ganhasse espaço em encontros globais sobre o meio ambiente. Seu discurso direto e incisivo conquistou mentes e corações. “Nossa casa está em chamas. Estou aqui para dizer a vocês que nosso planeta está em chamas”, declarou para líderes mundiais, no ano passado, no Fórum de Davos, na Suíça. Greta acaba de ganhar o Prêmio Gulbenkian para a Humanidade, destinado para projetos inovadores contra a mudança climática, que lhe rendeu 1 milhão de euros (R$ 6,11 milhões), dos quais 10% bancarão iniciativas na Amazônia. Em entrevista à BBC News, na semana passada, ela afirmou, referindo-se aos protestos após a morte por asfixia de George Floyd, nos Estados Unidos, que “o mundo superou um ponto de inflexão social” no movimento contra o racismo. “Não podemos continuar varrendo injustiças para debaixo do tapete”, disse.

Furacão juvenil

As redes sociais são um meio de comunicação fundamental para esses novos líderes. Todos contam com milhões de seguidores atentos aos debates que eles propõem. Se Felipe Neto é recordista de audiência no YouTube e tem 12,1 milhão de seguidores do Twitter, Malala fala para uma rede de 1,7 milhão de pessoas e Greta Thunberg, para 4,1 milhões. A ativista antiarmamentista e membro da comunidade LGBT, Emma González, por sua vez, tem 1,5 milhão, que ouvem sua voz contra os neonazistas e os supremacistas brancos. Emma ganhou destaque depois que a escola onde estudava, a Marjory Stoneman Douglas High School, na Flórida, foi palco de uma chacina. Um ex-aluno entrou numa sala de aula armado e matou 17 adolescentes. Alguns dias depois, ela fez um discurso contra as armas, que se tornou viral. “Ele não teria machucado tantos alunos se estivesse com uma faca”, disse ela, que lidera o movimento #NeverAgain. “Se você não fizer nada para evitar que isso continue a acontecer, o número de vítimas baleadas vai aumentar e o valor delas, diminuir. E seremos todos sem valor para você”, concluiu, dirigindo-se ao presidente Donald Trump.

Enquanto Emma luta contra as armas, a britânica Amika George é uma ativista no combate contra a chamada “pobreza menstrual”. Há três anos, Amika percebeu que muitas garotas na Inglaterra não tinham condições de pagar por produtos menstruais e organizou um protesto em frente à residência da então primeira-ministra britânica, Theresa May, para reivindicar a distribuição gratuita de absorventes. A manifestação reuniu 2 mil pessoas, todas vestidas de vermelho, e levou à criação da organização #FreePeriods (menstruação grátis). Diante da pressão, o governo anunciou, em 2019, o financiamento de produtos de higiene íntima para todas as escolas e faculdades do país. “Para mim, #FreePeriods mostrou que um único adolescente irritado pode ter um impacto político real por meio do ativismo”, disse.

Já a ativista ambientalista Vanessa Nakate, que atua em Kampala, capital de Uganda, chamou atenção quando teve sua imagem sumariamente cortada em uma fotografia de jovens que protestavam contra a crise do clima publicada pela agencia de noticias americana Associated Press (AP). A fotografia, que incluía Greta, mostrava cinco ativistas que pediam ação contra o aquecimento global durante o último Fórum de Davos. “É a primeira vez na minha vida que entendo a definição da palavra racismo”, disse Vanessa, que faz protestos por ação climática em Uganda desde 2019 e foi a primeira jovem a organizar as chamadas greves pelo clima no país. “Você (AP) não apagou apenas uma foto. Apagou um continente”, declarou. Como Greta, ela protestou várias vezes sozinha em frente ao Parlamento de Uganda.

Reação raivosa

Alguns desses novos ativistas conquistam legitimidade a partir de uma experiência traumática, como são os casos de Malala e de Emma. Outros chegam lá pela tomada de consciência sobre os problemas sociais e pelo compromisso com a verdade. Nenhum deles é unanimidade em seus países e todos sofrem ataques raivosos de opositores. Malala ainda é alvo de discursos de ódio, principalmente por parte de grupos religiosos islâmicos, por causa de seu esforço pela emancipação das mulheres. Greta é frequentemente menosprezada por causa de sua idade. O presidente Jair Bolsonaro chegou a chamá-la de “pirralha” por causa de suas críticas à destruição da Amazônia. Enfrentar a oposição e suportar ataques injustificados é o desafio desses jovens que tocam em problemas sociais profundos. O próprio Felipe Neto enfrenta um momento turbulento em que militantes bolsonaristas tentam associá-lo com a pedofilia. Neto abriu pelo menos seis processos contra seus detratores. Além disso, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras 36 entidades assinaram um manifesto em defesa do youtuber.

Mesmo sob ataque, as jovens lideranças seguem em frente para tentar fazer valer suas causas, que apontam para um mundo melhor. Procuram também influenciar as pessoas com uma linguagem acessível e com informações bem embasadas. “O jovem de hoje se preocupa com o amanhã, tem maiores preocupações com o planeta, com a inclusão das minorias e com o futuro. Acima de tudo, ele quer enxergar a verdade, representatividade, e, principalmente, quer que alguém se preocupe em explicar como as coisas são e como funcionam”, diz Neto. “Não só o jovem, mas acredito que o povo, de maneira geral, cansou dos discursos políticos enfadonhos e repetitivos”. Há uma nova geração se apresentando para o debate para combater a injustiça social e a desigualdade. Apesar do avanço conservador de direita, é bom saber que uma resistência firme e progressista se impões. E o que se espera é que esses jovens vençam as suas batalhas.

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