Fábio Tofic Simantob,
PIAUÍ
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal
Federal, virou persona non grata no Palácio do Planalto ao
proibir a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da
Polícia Federal. O ministro argumentou que o ato de nomeação de um amigo da
família presidencial estava contaminado por desvio de finalidade em
“inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade
e do interesse público”. Logo veio a resposta. No dia seguinte, o presidente da
República Jair Bolsonaro disparou uma saraivada de críticas e até ameaças
contra o STF e Moraes.
Adotou a mesma postura com relação a Celso de Mello – depois
que o ministro tornou público o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril e
pediu uma avaliação da Procuradoria-Geral da República sobre a conveniência de
apreender o celular do presidente. Atacou outra vez Moraes, quando este
autorizou um conjunto de mandados de busca e apreensão em endereços de pessoas
próximas ao presidente. Depois que seus apoiadores promoveram uma chuva de
fogos de artifício sobre a sede do STF, Bolsonaro tentou suavizar seus ataques
ao tribunal, enviando até uma comitiva a São Paulo para conversar em privado
com Moraes. Fez isso movido pelo temor de que decisões futuras do tribunal
possam lhe prejudicar, e não porque adquiriu um súbito respeito às funções dos
ministros.
A animosidade do presidente contra o STF, contudo, é
anterior a esses fatos. Todos se lembram da fala do deputado federal Eduardo
Bolsonaro (SP) de que bastavam um cabo e um soldado para fechar o Supremo. O
STF costuma ser o alvo preferencial também de apoiadores do presidente, que
gostam de se juntar na rampa do Planalto para atacar a democracia e a Justiça,
e até se aglomeraram à porta do STF com máscaras e tochas na mão – uma
encenação sinistra inspirada em bandos fascistas do passado. O presidente não censura
esses atos. Pelo contrário, estimula-os.
O presidente tem uma visão distorcida, quando não
infantilizada, a respeito do Supremo e do ofício de julgar. Mas não é apenas a
imaturidade psicológica que o impede de compreender o sentido da Justiça para além
de algo que lhe favoreça no momento oportuno. Muito tempo antes de assumir a
Presidência, Bolsonaro já praticava ataques à democracia e às instituições
democráticas, recorrendo a um discurso que, em outros tempos, costumava
desqualificá-lo de imediato para o debate político. Algo aconteceu no Brasil
nos últimos anos que permitiu que esse discurso deixasse de ser visto como
caricato e ganhasse a atenção de parte dos brasileiros.
A crise das esquerdas e do PT pode ter contribuído para o
fortalecimento da direita, mas isso não seria suficiente para cacifar alguém do
talhe de Jair Bolsonaro, tanto mais que havia várias outras opções eleitorais,
nas diferentes esferas da vida política. O que de fato mudou o cenário foi a
Operação Lava Jato, na qual o discurso do presidente encontrou solo fértil. Não
me refiro aqui a essa ou àquela condenação gestada em Curitiba, mas sim ao
proselitismo antissistema que encontrou eco entre muitos, propagando-se para
fora dos autos – na imprensa, em artigos e entrevistas. Foi uma luta de
guerrilha. Sergio Moro não virou ministro por causa de Jair Bolsonaro. Foi
Bolsonaro quem pegou carona no discurso de Moro.
Em diversos momentos, procuradores da Lava Jato deixaram
seus afazeres em Curitiba para empreender campanhas contra a classe política e
a cúpula do Poder Judiciário. Os direitos e garantias fundamentais foram
demonizados, a Constituição foi transformada em reles escudo para delinquentes.
Esse discurso já se difundira, de certa forma, em parte da opinião pública,
sendo usual ouvi-lo até mesmo da boca de participantes de programas de rádio e
televisão. Foi com Moro e a Lava Jato, entretanto, que encontrou o
“refinamento” social de que precisava para penetrar nos salões de baile da
sociedade brasileira.
O bastão moral que Bolsonaro empunhou para vencer as
eleições foi o da cruzada antissistema ou da luta contra tudo que está aí,
principalmente contra os direitos e liberdades. Suas manifestações contra o
STF, portanto, vão muito além de uma discordância de momento. Visam atacar a
própria observância e o respeito às liberdades garantidas na Constituição.
Bolsonaro disse uma vez, num arroubo absolutista nos
moldes atribuídos a Luís XIV, que “eu sou, realmente, a Constituição”. É
natural, e até legítimo, que ele tenha um senso de justiça próprio. Cada um tem
o seu. O ser humano não nasce com capacidade inerente para descrever os
fenômenos físicos da natureza, mas bastam alguns anos de vida para já se achar
apto a dizer o que é justo e o que não é. Durante muito tempo, vive num mundo
binário, maniqueísta, onde justo é tudo o que lhe agrada, e injusto, tudo o que
lhe prejudica. Mesmo quando chegam à vida adulta, quase todas as pessoas
pressupõem que ser justo é tomar partido. Isso fica evidente quando há um
conflito entre nações: a questão não é qual país é o mais justo, mas, sim, de
que lado estamos.
Esse sentimento comum a todo ser humano é tão poderoso que
as próprias instituições jurídicas o solicitam em determinadas situações.
Algumas sociedades democráticas até hoje confiam a jurados, homens e mulheres
escolhidos aleatoriamente entre pessoas comuns, a tarefa de julgar um réu, a
partir da avaliação de determinados fatos e provas. No Brasil, são pessoas
comuns que julgam casos de homicídio e outros crimes dolosos contra a vida.
O filósofo suíço Henri-Frédéric Amiel (1821-81) disse que um
físico, um químico, um matemático e um jurista são capazes de dar respostas tão
justas aos problemas da alma humana como as que daria um barbeiro. Mas, se
todos estão habilitados a emitir juízo sobre o justo e se há tantos juízos
justos diferentes e até antagônicos, de onde vem a legitimidade de uma Suprema
Corte numa sociedade democrática? Por que confiar a onze ministros, ou, em
maior escala, a milhares de juízes de direito, o poder de dizer o que é justo
para toda uma nação?
Ocorre que julgar o próprio direito é tarefa de
especialistas. Não é a mesma coisa que fazem os jurados ao examinar os
conflitos da alma humana ou afirmar a ocorrência de fatos criminais. A
aplicação do direito exige aprendizado teórico e técnico, e não deve por isso
ficar sujeita à noção de justiça que emana do senso comum.
Essa forma de enxergar o julgamento técnico é antiga.
Aristóteles, no prólogo de Ética a Nicômaco, alertou que, em
questões gerais da vida, o bom juiz é o que dispõe de cultura geral, mas, no
que diz respeito a um domínio determinado, o julgamento deve ser feito por
especialistas. O juiz de direito não recebe o cargo para julgar de acordo com
sua cultura geral, suas convicções íntimas ou sua forma especial de ver o
mundo, como às vezes se acredita. A aprovação em concurso público lhe confere
salvo-conduto para aplicar o direito de acordo apenas com o conhecimento
técnico-jurídico que aprendeu na universidade. Para ingresso na magistratura, a
prova é de direito, e não de cultura geral ou de senso de justiça. Até para ser
nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal o requisito fundamental é ter
notório saber jurídico, e não um senso de justiça aguçado. O juiz é um
especialista, como é o advogado, o dentista ou o veterinário.
Investido, como juiz, do poder de aplicar a lei e nada mais
do que isso, Moro tornou-se a figura do juiz rebelde, do juiz símbolo da
subversão da letra fria da lei, do herói combatente das injustiças que, no seu
entender, cismam em permanecer incrustadas como parasitas nos textos legais. As
regras que estabelecem onde um caso deve ser julgado – se em Curitiba ou em
Brasília, por exemplo – foram jogadas para debaixo do tapete. A capital do
Paraná se tornou o lugar do juízo universal do combate à corrupção, com prisões
sendo decretadas aos borbotões como antecipação de pena, com o objetivo de
forçar delações premiadas. Em um dos primeiros habeas corpus que
chegaram ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre,
questionando a legalidade de dez prisões decretadas por Moro, um procurador da
República, Manoel Pastana, deixou escapar que a prisão estava sendo usada para
extrair confissões.
O próprio Moro, em artigo publicado em 2004 no qual faz uma
análise da Operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália, antecipava alguns métodos
que seriam empregados dez anos mais tarde pela Lava Jato. Ele diz, por exemplo,
que o combate à corrupção passava necessariamente por um exercício de
deslegitimação do sistema vigente – o que se traduziu na deslegitimação de
todos aqueles que não aceitassem se dobrar aos métodos da sua futura
investigação. Aludia ainda aos “juízes de ataque” – pretori
d’assalto, como se diz na Itália –, prontos a usar a caneta para
espalhar seu senso de justiça à população. Era como Trussótzki, o bufão do
romance O Eterno Marido, de Dostoiévski, que creditava as grandes
ideias da humanidade a sentimentos profundos, e não ao conhecimento adquirido
ao longo de séculos.
Moro era a própria encarnação do juiz de ataque. E ai do
desembargador ou do ministro que ousasse questionar esses métodos. Eram logo
apontados como defensores da corrupção, amantes da impunidade, arautos dos
poderosos. Teriam que enfrentar a fúria da opinião pública, mobilizada
rapidamente feito tanques Panzer, pilotados por integrantes da força-tarefa da
Lava Jato. O direito virou refém do arbítrio dos justos.
A estratégia de deslegitimar o direito e os sistemas
jurídico e político tornou-se, a certa altura, tão militante, que alguns
procuradores passaram a atacar ministros do STF mesmo em casos em que não
atuavam. Em 3 de julho de 2016, Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor
de Mattos, dois dos principais integrantes da força-tarefa da Lava Jato em
Curitiba, assinaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo atacando
o Supremo por causa de um habeas corpus concedido a um réu que
respondia a processo em São Paulo.
O artigo comparava a decisão ao salto duplo twist carpado da
ginasta brasileira Daiane dos Santos e, de maneira velada, levantava uma série
de suspeitas sobre os motivos que teriam levado o STF a conceder o habeas
corpus. Aproveitando-se da raiva da opinião pública e da incompreensão que
esta tinha da matéria jurídica, os procuradores buscaram deslegitimar o papel
do STF como garantidor de liberdades individuais, criando uma espécie de
ruptura entre a sociedade e a Corte. O direito passou a ser visto como a trava
que impedia o país de prosperar, o obstáculo para alçá-lo a outro nível de
civilização. Como se, para progredir, o Brasil precisasse ultrapassar o direito,
deixar que os justos reescrevessem as leis e a Constituição.
Bolsonaro é o subproduto político dessa visão de mundo.
Não deixa de ser curiosa a indignação de Jair
Bolsonaro com a decisão de Alexandre de Moraes. Ele acusa o ministro de usar
sua caneta de juiz para corrigir injustiças de outro poder da República, o
Executivo, exatamente o tipo de decisão que, como deputado e depois como
candidato, aplaudia com fervor. Agora, exige que o Judiciário adote postura
inversa àquela que o ajudou a chegar ao Palácio do Planalto. Guia-se pela
famosa frase atribuída a Getúlio Vargas, que poderia ser assim atualizada: “Aos
meus inimigos, os mais profundos sentimentos de justiça do juiz Moro; a mim, a
lei.”
Cabe ao STF julgar a validade do ato administrativo de
nomeação feita pelo presidente da República, caso haja indícios de desvio de
finalidade. O chefe do Executivo não poderia, por exemplo, nomear um filho para
cargo público. Se o fizesse, ninguém censuraria a decisão do STF de anular a
nomeação. Portanto, é cabível discutir se o ministro Alexandre de Mores acertou
ou errou ao barrar a nomeação de Ramagem, mas é um casuísmo classificar sua
decisão como “ativismo do STF”. Nem toda decisão errada é ativismo.
Em novembro de 2018, quando a ministra Cármen Lúcia deferiu liminar
em ação proposta pela Procuradoria-Geral da República, suspendendo o decreto de
indulto editado por Michel Temer, o presidente eleito Jair Bolsonaro não teceu
uma única crítica ao STF, nem disse que o Supremo estaria invadindo a esfera do
Executivo. O silêncio tinha razões óbvias. Bolsonaro é contra o indulto, salvo
se estiver afinado com sua ideologia – como o que concedeu a policiais em 2019.
Situação parecida ocorreu quando o ministro Luiz Fux suspendeu a parte do
pacote anticrime que institui o juiz de garantias. Apesar de ter sancionado o
artigo que previa esse tipo de juiz, Bolsonaro não tinha nenhuma simpatia pela
proposta, que separa o juiz da investigação do juiz do julgamento – a antítese
do que Moro sempre representou. De novo, Bolsonaro não deu um pio contra a
decisão do STF.
Também não fez nenhum reparo ao Supremo quando Dias Toffoli,
presidente da Corte Suprema, deferiu liminar suspendendo todas as investigações
de lavagem de dinheiro no país baseadas em relatórios de informação financeira
do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Nem poderia criticar,
pois a medida atendeu a um pedido formulado por seu filho e senador, Flavio
Bolsonaro, investigado no Rio de Janeiro por suposto crime de “rachadinha”, o
confisco ilegal de parte dos salários dos funcionários de seu gabinete
parlamentar. Tampouco o inquérito das fake news recebeu
qualquer espécie de crítica do presidente – até o momento em que se voltou
contra seus correligionários.
Extremistas de direita e de esquerda podem espernear, mas,
no final das contas, todos querem se agarrar à Constituição para proteger seus
direitos. E isso ocorre porque uma Constituição não existe apesar dos
conflitos sociais, mas por causa deles. Mau sinal é quando
juízes caem na tentação de atender a certas expectativas sociais do momento em
detrimento das liberdades.
Para o historiador israelense Yuval Noah Harari,
autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, não há justiça
na história. O que não quer dizer que estão todos desculpados. O juiz rebelde
dos séculos XVIII ou XIX – que se opunha às injustiças de um ordenamento
jurídico opressor, construído sem a participação política da maioria da
população – nada tem a ver com o juiz de assalto que Moro cita no artigo de
2004, um magistrado que se arroga o poder de cassar direitos e liberdades
inscritos na Carta da República. Já não vivemos no século XVIII. O regime
escravocrata dava espaço de participação política para apenas uma minoria, que
governava o restante da população com mão de ferro, fazendo da lei um
instrumento de opressão. Descumpri-la, portanto, era a única forma de enfrentar
a tirania.
Hoje não. Nossa época é a “era dos direitos”, na definição
do filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004). O Estado moderno não é
somente democrático, mas também de direito. O Parlamento é a mais sofisticada
forma de representação democrática que o ser humano foi capaz de criar, apesar
de suas limitações. A principal delas é que não consegue resolver problemas
individuais, pois as leis são feitas com vistas ao interesse coletivo, de toda
a sociedade ou da maior parte dela, sem se ater ao que diz respeito a um único
indivíduo, especificamente. A segunda limitação do Parlamento é que essa
instituição, por mais democrática que seja, nem sempre representa os interesses
da sociedade inteira, mas apenas da maioria.
A Corte Constitucional moderna – no Brasil, o Supremo
Tribunal Federal – serve principalmente para garantir que um indivíduo, mesmo
que ele não disponha de representação no Parlamento, possa ter seus direitos
garantidos. Por isso vemos, em boa parte do mundo, as supremas cortes
descriminalizando o uso de certas drogas e legalizando o aborto. Estão fazendo
o que o processo político muitas vezes não consegue: ampliar e garantir
liberdades individuais.
Imagine um país onde uma das cláusulas pétreas – aquelas
que, em nenhuma hipótese, podem ser alteradas – é o direito de os homens usarem
roupas de todas as cores. A certa altura, porém, resolve-se fazer um plebiscito
para proibir o uso de roupas cor-de-rosa por homens, e toda a população, exceto
um cidadão, vota a favor da nova lei. O STF existe para garantir que aquele
único cidadão possa continuar usando trajes cor-de-rosa sem ser preso, mesmo
que isso contrarie a vontade da maioria. A Corte pode autorizar o uso depois de
julgar seja uma ação direta de inconstitucionalidade da nova lei (ação que só
algumas autoridades, organizações ou entidades estão autorizadas a propor, como
o presidente da República, partidos políticos e a Ordem dos Advogados do
Brasil), seja um pleito individual movido pelo cidadão proibido de usar
cor-de-rosa. A decisão favorável a ele repercutirá em todo o sistema de justiça
penal, permitindo que outros homens usem a mesma cor, caso queiram.
A união homoafetiva, reconhecida pelo STF há alguns anos,
pode agredir a moral de determinada comunidade, mas ninguém em sã consciência
cogita entrar com ação pedindo a anulação do casamento de dois homens, porque
não existe um direito individual à não união de duas outras pessoas, mas no
máximo uma expectativa social de que essa forma de enlace amoroso não seja
tolerada.
O mesmo se pode dizer a respeito do uso de células-tronco
para pesquisas, do aborto de anencéfalos, da prisão só após o trânsito em
julgado ou o do sacrifício de animais em cultos religiosos, questões que também
foram levadas ao STF nos últimos anos. Proibi-los seria negar direitos
individuais à intimidade, dignidade da pessoa humana, liberdade de culto,
presunção de inocência. Ao permiti-los, o STF não violou o direito de ninguém.
No máximo, frustrou expectativas sociais da população, talvez até da maioria.
O papel do STF é garantir direitos e não corresponder às
expectativas sociais de quem quer que seja. Um sinal de que uma Suprema Corte
não vai bem é quando ela resolve inverter o seu papel. A pretexto de atender a
vontade de suposta maioria, o Supremo resolve suprimir um direito individual
qualquer – como o de homens usarem cor-de-rosa – sob alegação de que, embora
esse direito conste da Carta da República, a maioria da população já não o
tolera mais. Agir assim é como abrir a caixa de Pandora e se degenerar.
Como se vê, é papel difícil o de uma Corte Constitucional.
Quando agrada apenas a um indivíduo ou a uma minoria, e desagrada a todo o
resto, pode gerar indignação, mas não está senão fazendo valer direitos
inscritos na Constituição. Está apenas desempenhando fielmente o papel que se
espera dessa Corte em um Estado que não é só democrático, mas também de
direito. Quando quer agradar a todos em detrimento do direito de um único
indivíduo, desvirtua-se e enfraquece, passando a ser mero coadjuvante do
processo de deterioração da vida democrática. Daí a se tornar presa fácil do
discurso populista de um presidente da República é só um passo. É preciso
distinguir, portanto, na atividade de uma Suprema Corte, entre a atitude de
reafirmação de direitos e liberdades – que permite conquistas que o processo
político jamais consagraria – daquilo que é ativismo puro e simples, com a
indevida intromissão política.
O que Jair Bolsonaro chama de “ativismo” é, na verdade,
fruto de sua imaginação binária. Ativismo para ele é tudo o que o STF decide
contra suas expectativas pessoais. O que o presidente critica nas decisões do
STF é a própria substância da Corte, ou seja, a reafirmação de direitos
individuais inscritos na Constituição Federal – os mesmos que Bolsonaro
despreza, como os dos índios, das mulheres, dos negros, dos homoafetivos e dos
acusados no processo penal (a menos que sejam seus amigos ou familiares,
claro).
Arevolta do presidente com os inquéritos a respeito
da difusão de fake news é fruto do seu garantismo de ocasião.
Quando Moro se impunha em audiências da Lava Jato, encarnando a figura do juiz
acusador, com protagonismo maior que o dos próprios acusadores, Jair Bolsonaro
e seus asseclas ficavam em êxtase. De repente, passaram a cobrar o respeito ao
sistema acusatório, sistema judicial em que o juiz não toma iniciativa e é um
mero espectador do embate travado entre as partes – a antítese do que Moro e a
Lava Jato representaram. Quando Moro mandava prender ou fazer conduções
coercitivas contra a previsão expressa da lei, prejulgando a causa antes mesmo
de haver uma acusação formal, Bolsonaro e seus seguidores sequer cogitavam
contestar o magistrado. Da noite para o dia, entretanto, o presidente passou a
criticar que o mesmo juiz do inquérito possa vir a ser também o juiz do
julgamento final, no caso do inquérito do STF.
O próprio Moro vem exercendo sua defesa com uma amplitude
que jamais garantiu aos réus que respondiam processo na sua vara. As
investigações em Curitiba corriam em sigilo absoluto, com vazamentos seletivos,
sem a possibilidade de qualquer intervenção da defesa dos investigados nos atos,
menos ainda nos depoimentos de testemunhas ou colaboradores. O acesso à prova
só era permitido depois que a Polícia Federal já havia devassado as
residências, cumprido mandados de prisão e exposto o preso algemado em rede
nacional de tevê, para deleite do clamor público.
Uma reportagem da Folha de S.Paulo, publicada no
dia 8 de junho, revelou que, ao contrário da praxe judiciária brasileira, o
inquérito que investiga se o presidente Bolsonaro interveio na Polícia Federal
vem garantindo aos advogados dos investigados não apenas a sua presença nos
depoimentos como também a possibilidade de fazerem perguntas às testemunhas,
algo que só se costuma permitir na fase judicial. O modelo é digno de aplauso,
pois consagra a ampla defesa e o contraditório, mas desde que se aplique a
todos, e não apenas a “cidadãos especiais”.
O inquérito sobre a difusão de fake news provocou
polêmica porque não é usual o STF fazer investigações, tanto mais quando a
própria Corte é vítima. Mas a investigação está prevista num artigo do
Regimento Interno do STF, que permite a esse poder instaurar inquérito para
apurar fatos ocorridos em suas dependências. O Código Penal brasileiro
considera consumados os crimes de ameaça no momento que as vítimas tomam
conhecimento deles. Sendo assim, os ataques aos ministros, embora virtuais,
teriam se consumado nas dependências do Supremo. Por outro lado, se o STF não
puder julgar casos em que é vítima, quem então julgaria o presidente por crime
contra a honra dos onze ministros? Ninguém? O presidente não responderia pelo
crime? É o STF que, em última instância, interpreta as suas normas e o seu
regimento. A Corte pode errar. E erra. E está sujeita a críticas. Mas não se
pode dizer que está invadindo a competência de outro poder ou violando a
harmonia entre os três poderes.
Continua muito atual o discurso proferido por Rui Barbosa no
Senado em 29 de dezembro de 1914: “Em todas as organizações, políticas ou
judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar […]. O
Supremo Tribunal Federal, senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a
alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de
dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade.”
Esse privilégio de errar por último não implica desequilíbrio
de forças com relação aos poderes Executivo e Legislativo, se lembrarmos que o
STF é o único dentre eles cuja cúpula (seus onze ministros) é escolhida pelos
outros dois poderes (o presidente nomeia, e o Senado aprova ou não). Ainda
hoje, é mais prudente dar ao Supremo Tribunal Federal o privilégio de ser o
último a errar – e não ao ocupante de ocasião do Palácio do Planalto.
*
Nota: Fábio Tofic Simantob é advogado de diversos réus na
Operação Lava Jato.
FÁBIO
TOFIC SIMANTOB
É advogado, mestre em direito penal pela USP, ex-presidente
e atual conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)