O linchamento virtual praticado nos últimos dias pelos
militantes bolsonaristas contra a estrela da internet Felipe Neto – segundo
maior ‘youtuber’ do Brasil, com 39 milhões de seguidores, quase a população da
Argentina – mostra que a roda da guerra digital não parou de girar. Não está
sendo detida pela pressão da classe política, que providenciou um pacote com
projeto de lei sobre “fake news”, CPI sobre o tema e inquérito no Supremo
Tribunal Federal, nem pela própria autorregulação das empresas.
Um fenômeno nas redes com suas frivolidades para
adolescentes, Felipe Neto aventurou-se há algum tempo no ativismo político,
contra o conservadorismo de modo geral. Um ponto culminante deu-se ontem, com o
debate promovido pelo site “Jota” entre a celebridade e o presidente do
Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso. A ofensiva de Neto começou
em meados do mês, ao gravar, em inglês, um vídeo para o “The New York Times” em
que diz que Bolsonaro não só é pior do que Trump como está abaixo de todos os
outros governantes da terra.
O troco, como costuma acontecer, veio com uso desproporcional
da força. Apenas na manhã do dia 27, segundo o comunicador, 416 vídeos foram
subidos no Facebook e Instagram associando-o à pedofilia. Houve quem fosse mais
sofisticado e postasse um tutorial sobre como desmonetizar os vídeos do
youtuber. Houve quem fosse mais tosco e ensinasse rituais de magia negra para
prejudicá-lo.
O fato é que a polêmica sobre Felipe Neto parece apenas um
sinal na superfície com raízes muito mais profundas. “A atenção está voltada
para redes mais fáceis de monitorar, como YouTube e Twitter, mas de longe o
problema maior que existe no Brasil é o WhatsApp”, comentou Pablo Ortellado,
professor de gestão pública na USP, campus da Zona Leste. “As ações tomadas até
o momento não têm força para barrar esta máquina”.
O WhatsApp, segundo pesquisa encomendada pelo Senado em
novembro de 2019, citada no livro “A máquina do ódio”, da jornalista Patrícia
Campos Mello, é a fonte de informação mais importante para 79% dos pesquisados.
De acordo com outro levantamento do ano passado também mencionado na obra,
feito pela Idea Big Data em maio, 52% das pessoas confiam em mensagens
noticiosas enviadas por familiares. Ortellado lembra que o aplicativo está
baixado em 98% dos celulares no país.
Se no YouTube o problema é o incentivo à polarização que a
monetização representa, já que o formato da rede favorece a opinião e o número
de visualizações dispara com mensagens radicais, no WhatsApp a chaga é o sigilo
criptografado de mensagens enviadas em massa.
“O problema para se conseguir uma ação efetiva no Brasil que
limite guerras digitais não é apenas tecnológico, é político. A sociedade está
polarizada e dividida sobre o tema”, comenta Ortellado. O professor da USP
refere-se ao projeto de lei em tramitação na Câmara que permite o armazenamento
de metadados de redes, o que viabiliza a rastreabilidade e a punição de
criminosos digitais no WhatsApp. A proposta tende a travar na Câmara, e se
passar, seu veto pelo presidente Jair Bolsonaro é quase certo.
O demônio é um ser de muitas faces nessa discussão, não só
no Brasil, como no mundo. Na Turquia, Recep Erdogan articula a aprovação de uma
lei que permite a remoção de conteúdo ofensivo nas redes. É algo potencialmente
lesivo para a liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, Trump pressiona
empresas a diminuírem sua autorregulação. Abre caminho para um provável abuso
da liberdade de expressão.
A luta pelo poder reciclou o jargão do general prussiano
Clausewitz, aquele que vaticinou ser a guerra a continuação da política por
outros meios. Dependendo da forma como as redes forem disciplinadas, os planos
de continuidade de um grupo à frente de um Estado podem ficar irremediavelmente
comprometidos.
Essa característica dificulta que princípios prevaleçam
entre os tomadores de decisão sobre o tema. Há um retrocesso claro na
democracia quando as regras do jogo para a competição política deixam de ser
consensuais, o que é o caso brasileiro.
Em meio ao gelo sendo enxugado, o avanço mais notável para
se colocar um mínimo de civilidade nas redes sociais partiu das próprias
empresas. Ao limitar no começo do ano passado o reenvio de mensagens e
monitorar as linhas de transmissão, o WhatsApp tornou um pouco mais complexo e
caro seu uso como ferramenta política. “Antes você fazia um grande disparo com
um só chip. Para atingir 300 mil pessoas era uma questão de horas. Agora são
necessários dias. A democracia precisava disso”, comentou o marqueteiro
eleitoral André Torreta.
O aperto do torniquete do WhatsApp gerou dois fenômenos. Um
é a comunicação dentro das próprias bolhas, o chamado viés de confirmação. As
listas de transmissão vão virando um instrumento para confirmar pontos de
vistas já existentes. O outro é a migração para novas plataformas.
“Existe uma tendência crescente de uso do Instagram e do Tik
Tok, para fins políticos, dentro e fora do Brasil. A produção de ‘fake news’
aumentou e se sofisticou, com o uso de ‘deep fakes’ (imagens e áudios
manipulados)”, observa Mauricio Moura, diretor do Idea Big Data.
Para Moura, para combater “fake news” a estratégia do mundo
política em vigiar e punir os comandantes dos exércitos digitais não é
suficiente. “Infelizmente não é possível agir apenas sobre a oferta. É
necessário agir sobre a demanda, o receptor. Convencê-lo a se informar com
outras fontes. É uma questão da educação”, comenta, como quem menciona um
problema impossível de se resolver.
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