sábado, 30 de abril de 2022

BRASIL DEPRIMIDO

Editorial Folha de S.Paulo

Se não chega a surpreender, é de consternar o anúncio de que casos de depressão estão em alta no Brasil. Nada menos que 11,3% dos que aqui vivem, mais de 24 milhões de pessoas, relatam diagnóstico médico desse transtorno mental.

Aferiu-se o dado na versão 2021 da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde, segundo reportou o jornal O Estado de S. Paulo. Antes se conheciam 10% de prevalência, conforme a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019; em 2013, eram 7,6%.

A estatística ultrapassa aquilo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) registra para o Brasil, 5,3%. Supera, também, a proporção de casos nos Estados Unidos, de 8,4% da população acima de 18 anos (critérios díspares, contudo, podem prejudicar a comparação).

De toda maneira, constata-se número elevado e crescente de brasileiros padecendo de uma doença que pode ser incapacitante. De acordo com a OMS, a depressão está entre as principais causas de faltas no trabalho e, ao lado da ansiedade, provoca prejuízo econômico mundial de US$ 1 trilhão anual.

As causas do crescimento aparente, aqui, não são triviais de elucidar. Perdas de pessoas próximas, emprego e renda durante a pandemia de Covid-19 surgem como principais suspeitos.

A Vigitel apontou ainda aumento no abuso de álcool, que atinge 18,3% da população, e restrição da atividade física (48,2% exercitam-se menos do que seria desejável). Ambos os fatores contribuem para depressões e também podem derivar da pandemia.

Por fim, e paradoxalmente, não se exclui que parte da alta resulte de fenômeno sociocultural positivo: redução do preconceito. Hoje soa menos constrangedor admitir-se deprimido e buscar tratamento, levando ao acréscimo de registros.

Tampouco se descarta que haja erros de diagnóstico. Por falta de treinamento ou especialização, alguns médicos podem estar identificando a patologia de modo equivocado, tratando como doenças o que talvez não sejam mais que infelicidades cotidianas e medicando-as de forma precipitada.

Psiquiatria e farmacologia enfrentaram dificuldades para chegar a novas classes de medicamentos. Surge alguma esperança com substâncias psicodélicas, como a psilocibina de cogumelos, mas ainda há longo caminho até que se comprovem seguros e eficazes.

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REDUÇÃO DE DANOS

Editorial Folha de S.Paulo

Uma democracia funcional é um organismo político complexo, em que diversos agentes exercem papéis específicos para que o regime produza seus generosos resultados.

Já o arbítrio é embaralhado. A ditadura brasileira até 1985 mandava no Executivo e também em assuntos do Judiciário e do Legislativo. Interessa apenas aos nostálgicos daqueles tempos, entre eles o presidente Jair Bolsonaro (PL), o retorno a um regime de exceção.

Pela Constituição de 1988, não é preciso improviso nem negociações subterrâneas entre próceres da República para solucionar problemas como o do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ). Basta que cada um atue dentro de sua competência e que se apliquem as leis.

O Supremo Tribunal Federal condenou Silveira a 8 anos e 9 meses de prisão, além de multa, por ameaçar a institucionalidade democrática —uma pena que soa exagerada. Acertou ao determinar a perda do mandato e a inelegibilidade.

Bolsonaro escolheu aviltar o instituto da graça quando indultou o apaniguado como meio de provocar o STF. Carregará a atitude vergonhosa pelo restante de sua vida pública, mas, do ponto de vista das regras do jogo, mobilizou um poder conferido expressamente ao presidente da República pela Carta.

O poder, que fique bem claro, limita-se à suspensão da pena do condenado, mas não se sobrepõe à palavra final do Supremo Tribunal. A graça não anula a condenação de Silveira, que perderá a condição de réu primário.

Caberá à Câmara dos Deputados proceder à correta cassação do mandato, em votação pelo plenário, consequência direta do trânsito em julgado da condenação. Já à Justiça Eleitoral cumpre bloquear, pelos próximos oito anos, quaisquer tentativas de Daniel Silveira de candidatar-se a cargo político, como reza a Lei da Ficha Limpa.

A esta altura, trata-se do melhor desfecho possível para o caso —e o Supremo fará bem em concorrer para tanto. Em suma, o deputado brutamontes não deverá cumprir a pena de prisão, mas estará sujeito a todos os demais efeitos do reconhecimento, pela mais alta corte do país, do crime que cometeu.

O que Jair Bolsonaro quis transformar numa conflagração entre Poderes dispõe na verdade de um encaminhamento relativamente simples pelas instâncias regulares do Estado democrático de Direito.

O presidente busca o conflito e açula seus seguidores porque quer semear uma tempestade nas eleições de outubro. Reagir com firmeza —mas também com frieza— serve para mostrar a Bolsonaro que o seu poder tem limites.

Conduzir as eleições, por exemplo, não é assunto do presidente da República, mas única e exclusivamente do Poder Judiciário.

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LIVRO FAZ RETRATO HUMANO DE MONSTRO NAZISTA

Hélio Schwartsman, Folha de S.Paulo

Duas semanas atrás falei aqui do livro "East-West Street", de Philippe Sands. Poucas horas após a publicação da coluna, três amigos cuja opinião respeito muito me escreviam para recomendar uma segunda obra de Sands, "The Ratline" (o caminho dos ratos), que devorei.

"The Ratline" conta a história de Otto Wächter, que governou territórios da Polônia e da Ucrânia na ocupação nazista. Wächter foi acusado de crimes contra a humanidade, mas conseguiu fugir. Passou três anos perambulando pelos alpes austríacos e depois desceu para Roma onde, com o apoio de hierarcas do Vaticano e beneplácito dos EUA, se preparava para fugir para a Argentina. Em julho de 1949, morreu na capital italiana sob circunstâncias suspeitas.

Sands transforma o que poderia ser uma árida investigação sobre a fuga de um nazista num daqueles livros que você não consegue largar, com pitadas de romance, mistério e espionagem. Impressionou-me a sensibilidade de Sands. O autor, que é judeu, tinha razões para odiar Wächter. Ainda assim, ele consegue traçar um retrato muito humano do nazista, notadamente sua história de amor com a mulher, Charlotte, que o ajudou na fuga.

Igualmente tocante é a relação que Sands desenvolveu com Horst Wächter, o filho de Otto, que lhe franqueou grande parte do material de pesquisa. Horst certamente condena o nazismo, mas, numa espécie de defesa psicológica, está convencido de que o pai não é um monstro e que tentou, à medida de suas forças, diminuir o sofrimento de civis. Ele martela essa tese apesar das muitas evidências em contrário, o que em vários momentos se torna frustrante para Sands. Ainda assim, eles desenvolvem um relacionamento que, se não é de amizade, é de grande respeito mútuo.

É legal ver esse tipo de tolerância em tempos em que basta um clique para rotular pessoas como nazistas, fascistas, comunistas nas redes sociais.

PS – Dou três semanas de folga ao leitor.

Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman deste domingo (1º de maio) na Folha - Annette Schwartsman

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RAÍZES DA INTOLERÂNCIA

Muniz Sodré, Folha de S.Paulo

Dados oficiais do Instituto de Segurança Pública mostram que o Rio de Janeiro tem registrado aumento nos casos gerais de intolerância religiosa, em que se incluem episódios de "injúria por preconceito" e "preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional". Traduzindo: discriminam-se cada vez mais negros, nordestinos e praticantes de cultos afro-brasileiros.

Não é surpresa a inclusão de nordestinos nesse espectro. Na história do processo de seleção para a carreira diplomática, é possível deparar com episódios reveladores de uma oblíqua tradição "estética", que não visava negativamente apenas os afro-brasileiros. Num desses, o Barão do Rio Branco (1845-1910), rejeitou a candidatura do poeta simbolista Antonio Francisco da Costa e Silva (1885-1950) por suposta inadequação estética: "nordestino e estrábico".

Esse critério seletivo se alterou oficialmente, mas suas raízes sociais continuam à mostra em setores populares. Faz pouco tempo, o sotaque de uma jovem paraibana num reality show provocou ataques cruéis da audiência.

Sempre houve esse tipo de discriminação no Sul, porém de modo mais atenuado em cidades tradicionalmente acolhedoras, como o Rio de Janeiro, cuja institucionalidade popular foi tecida pelos migrantes nordestinos nos morros e subúrbios. O carioca era uma mistura branda, em que a dicotomia entre "nós" e "eles" não traduzia conflitos nem ressentimentos. Pelo contrário, graças aos cultos afros e ao samba, resultava numa originalidade civilizatória que até hoje garante à cidade um lugar de visibilidade na cena internacional.

Mas é evidente que a sublimação carnavalesca da cidade jamais conseguiu esconder o persistente racismo neocolonial. Sob a superfície da hipocrisia social, estão latentes velhos esquemas discriminatórios, que agora se exasperam na onda de um retrocesso mental frente à exposição pública de diferenças temidas pela consciência enferrujada de frações de classe "média". Essas mesmas de olhos fechados às pequenas e grandes violências que desfiguraram o urbano remanescente na paisagem do Rio.

Assim, a intolerância detectada pelo instituto pode ser uma formulação ainda estreita para algo maior do que o neoterrorismo dos ataques pontuais a peles, sotaques e crenças. É que no passo de uma insólita "coligação do mal", operante nos aparelhos de Estado e na propaganda da fé extremista, cresce um enorme déficit coletivo de empatia. E isso está mais relacionado à rejeição ao incremento da diversidade cultural do que com crença religiosa em sentido estrito, embora os cultos afros sejam pretextos óbvios. Trata-se, na verdade, de pura intolerância a gente, ao outro de si mesmo, à condição humana propriamente dita.

FOTO - O ator Demerson D'alvaro, que interpretou o orixá Exu num carro alegórico da escola de samba Grande Rio - Mauro Pimentel/France Presse

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SÉRIO MESMO, ELON ?

Antonio Prata, Folha de S.Paulo

Elon Musk comprou o Twitter, diz ele, por temer o cerceamento à liberdade de expressão. O Twitter, meus amigos? Aquela rinha da trollagem em que vale dedo no olho, chute no saco e dentada na orelha? A ferramenta através da qual a família Bolsonaro corrói diariamente a democracia, ri da tortura, propaga mentiras sobre a pandemia, ameaça jornalistas, ativistas, cientistas, artistas e minorias em geral? Quem sabe o próximo passo do bilionário sul-africano seja comprar o Saara para proteger a areia?

Poucas discussões estão mais mal colocadas, hoje, do que esta sobre a liberdade de expressão. Quando temos bilhões de dólares e a ciência mais avançada (da matemática à psicologia) criando algoritmos que privilegiam, incentivam e propagam em escala global as opiniões mais extravagantes, chocantes e violentas; quando o resultado deste comércio desregulado de ideias é o esgarçamento do tecido social, o afunilamento do espaço público, a polarização política, as guerras culturais, o crescimento vertiginoso da depressão, ansiedade e suicídio entre jovens; quando esse sambalelê civilizacional põe a democracia em risco e se fala em Guerra Civil, nos EUA, e golpe militar, no Brasil, simplesmente defender a liberdade de expressão como um princípio absoluto e pronto, acabou-se, é meter a cabeça num buraco para não ver o que se passa.

É preciso que os autoproclamados liberais mundo afora olhem pela janela (ou mesmo pro celular) e constatem que levantar a bandeira da Primeira Emenda à Constituição Americana, dos enciclopedistas, dos contratualistas, de Bentham, Stuart Mill e outros que pensaram sobre uma arena pública radicalmente diferente da nossa não dá conta do que está acontecendo. É como tentar tirar um parafuso Philips com uma faca de cozinha: você espana o parafuso (confunde os contornos da questão), não o remove (o problema segue inabalado) e ainda destrói a faca (corrompe os autores).

Qual a solução? Mudar os algoritmos? As plataformas melhorarem seus filtros e regras de conduta? Criar-se uma espécie de constituição global para as redes sociais? Não tenho ideia, mas talvez o primeiro passo seja tirar os antolhos da "liberdade de expressão über alles!" e encarar o problema. O mundo está doente. Uma das causas da doença é a transformação da opinião em commodity e a aplicação da lei da oferta e da procura ao campo das ideias, o que faz com que quebrar a placa com o nome da vereadora assassinada eleja um deputado, mas propostas sólidas sobre educação e saúde pública, não.

A distopia das redes sociais nos trouxe para um "freak-show" do século 19, um circo de horrores. Estamos promovendo à fama e levando ao poder a Mulher Barbada, o Homem Elefante, a cabra de duas cabeças, a multidão goza vendo urso "dançar" sobre uma chapa incandescente. O que há de mais próximo deste antigoverno que brotou das redes e joga para elas não é o liberalismo, o conservadorismo nem sequer o fascismo, é a Farra do Boi.

Não é a liberdade de expressão, hoje, quem está correndo o maior risco, como acreditam Elon Musk e tantos outros, mas a democracia, o estado de direito, a declaração universal dos direitos humanos —conceitos que, convenhamos, jamais estiveram, nem de longe, assegurados a todos.

Daniel Silveira, livre pelo indulto presidencial para incitar a multidão contra um ministro do STF e tombar, mais um pouquinho, as nossas cambaleantes instituições, ri da nossa cara posando para uma foto com a placa quebrada da Marielle, emoldurada pelo cúmplice Rodrigo Amorim —um souvenir macabro do lamaçal de onde surgiram.

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NO LIMITE DA RUPTURA INSTITUCIONAL

Marcos Strecker e Marcio Allemand, ISTOÉ

Bolsonaro aproveitou o último feriado prolongado para avançar em sua investida contra a ordem constitucional e melar as eleições de outubro. Orquestrou com sucesso duas ações para encurralar o Judiciário. A primeira movimentação visou liberar suas milícias digitais. Elas atuam desde o início da gestão, quando o gabinete do ódio montado pelo Executivo passou a atacar sistematicamente os outros Poderes. Foram turbinadas pelo próprio mandatário, que organizou atos, incluindo motociatas, para ameaçar a Constituição (segui-la “embrulha o estômago”, afirmou) e atacar decisões judiciais. Numa iniciativa corajosa e efetiva, o STF não se deixou intimidar e abriu investigações que expuseram os atores dessa escalada autoritária. Esses processos conseguiram na prática frear as investidas e levaram à condenação no dia 20 de abril do deputado Daniel Silveira a 8 anos e 9 meses de prisão, além da perda de mandato e de seus direitos políticos.

Um dia depois, ao invés de acatar a decisão judicial, como manda a Constituição, o presidente encontrou uma maneira para subvertê-la. Ele usou sua prerrogativa de conceder indulto em casos excepcionais (que deveriam ser coletivos e apenas após sentenças transitadas em julgado) para anistiar o aliado. Não se tratou de utilizar o instituto da graça, que é constitucional. Foi uma brecha encontrada para tornar letra morta a decisão da maior Corte do País, abrindo uma avenida para que todo o grupo investigado e punido por tentar acabar com a democracia se beneficie no futuro – a fila é grande. Para aumentar o deboche, Silveira, um ex-policial que já foi processado, preso e enfrentou 60 sanções disciplinares na PM fluminense, revelou que já tinha descartado a tornozeleira eletrônica no dia 17 (medida cautelar que cumpria). Na última quarta-feira, 27, ainda foi brindado com a vice-presidência da Comissão de Segurança Pública e passou a ser titular de mais quatro comissões da Câmara, inclusive a mais importante, a de Constituição e Justiça. Para completar o escárnio, no mesmo dia Bolsonaro patrocinou no Palácio do Planalto um ato para festejar o privilégio concedido ao parlamentar-bufão.

Além de dar essa rasteira no STF, Bolsonaro agiu três dias depois para acuar a Corte também em relação às próximas eleições. Aproveitando uma fala do ministro Luís Roberto Barroso a estudantes de uma universidade alemã, um evento limitado e sem relevância, pinçou uma frase do magistrado e escalou seu ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, para atacá-lo. Barroso havia alertado sobre o perigo de politização do Exército e mencionou que as Forças Armadas “teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia”. Em uma reação desproporcional, o ministro da Defesa divulgou que se tratava de uma afirmação “irresponsável” e “ofensa grave”. Em seguida, os generais palacianos Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos emitiram comunicados também para acuar Barroso.

Foi uma armadilha preparada pelo próprio presidente. Ele conseguiu inflamar e enredar o Exército no embate político-partidário, exatamente aquilo que Barroso criticava. Sem citar o chefe do Executivo, o magistrado apenas verbalizou aquilo que o País acompanha desde o início da gestão: a tentativa do presidente de capturar os militares para seu projeto de poder. Os exemplos são inúmeros. Para lembrar apenas alguns: em um comício na frente do QG do Exército em Brasília, Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso e do STF. No último 7 de Setembro, disse que não obedeceria mais o STF. Seu ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, infringiu o regimento militar ao participar de um comício político e não foi punido pela corporação.

É bom lembrar que o próprio presidente demitiu a cúpula das Forças Armadas em março do ano passado para exigir alinhamento a ele, na maior crise militar desde 1977. Na ocasião, o general Braga Netto foi alçado ao Ministério da Defesa. Poucos meses depois, o militar, provável vice de Bolsonaro na chapa reeleitoral, condicionou a realização de eleições à aprovação do voto impresso. Para intimidar o Congresso por essa mudança, o mandatário organizou um desfile de blindados na Praça dos Três Poderes. Depois, organizou uma live bombástica para desacreditar as urnas eletrônicas, anunciando denúncias de fraude que se mostraram apenas embustes. Nesse evento, afirmou que o Exército identificou “dezenas de vulnerabilidades” nas urnas. Na comemoração do Dia do Exército, dia 19, voltou a colocar em dúvida a lisura do sistema eleitoral, sem apresentar evidências. Portanto, há excesso de provas sobre a interferência para cooptar os militares e questionar o processo eleitoral. Como disse Barroso aos estudantes, existe uma tentativa de levar as Forças Armadas ao “varejo da política”. É exatamente isso o que Bolsonaro faz. A bufonaria é uma prática antiga e calculada dele.

Nunca houve fraudes com as urnas eletrônicas, como Barroso lembrou mais uma vez. A ironia é que o magistrado elogiou os militares em sua fala e disse que eles têm sabido se preservar. Mas essa ação institucional e quase evangelizadora dos valores democráticos do ministro virou, ao contrário, uma oportunidade para atacar o Judiciário. Isso mostra o dilema sobre as ações da Corte. Visando a garantir a lisura das eleições, o magistrado e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) têm sido impelidos a uma verdadeira campanha contra a desinformação. Com o objetivo de assegurar a transparência e evitar questionamentos sobre o voto eletrônico, o TSE criou um comitê que ouviu 44 sugestões para seu aperfeiçoamento de universidades, organizações públicas e da OAB. As Forças Armadas foram convidadas e contribuíram com seis sugestões, sendo uma delas acolhida. A própria iniciativa de chamar os militares a participar do debate, com o objetivo de garantir o seu apoio ao processo, virou uma armadilha. Quando eles aceitaram, passaram a ser atores das decisões referentes às eleições, como deseja Bolsonaro.

“Preocupa vermos as Forças Armadas participando ativamente do processo político e eleitoral, num claro e perigoso desvio de finalidade”, alertou Roberto Freire, presidente do Cidadania. Parece óbvio, mas é preciso reafirmar que não cabe a Exército, Marinha e Aeronáutica fiscalizar, muito menos vigiar, o processo eleitoral. Para comprovar essa arapuca, o próprio presidente disse em seu evento-provocação contra o STF: “Eles convidaram as Forças Armadas a participar do processo eleitoral. Será que esqueceram que o chefe supremo das Forças Armadas se chama Bolsonaro?” Ele aproveitou a ocasião para lançar novas suspeitas sobre as urnas e dizer que as próprias eleições podem ser suspensas “se tiver algo anormal”. Defendeu ainda que o Exército faça uma apuração paralela dos votos. É preciso desenhar as intenções do presidente para o pleito de outubro?

O general Santos Cruz minimiza o risco constitucional. “As Forças Armadas não podem ser utilizadas como instrumento de pressão política. É claro que existe por parte de alguns um comportamento que procura confundir as Forças Armadas com o governo, mas eu confio plenamente na postura institucional dos militares.” Para Eloísa Machado, professora de direito constitucional da FGV Direito-SP, a anistia concedida pelo presidente a Daniel Silveira é inconstitucional. Ela diz que o presidente tem prerrogativa para conceder a graça, mas não com o intuito de se favorecer, beneficiar aliados ou desgastar o tribunal. “Isso representa abuso de poder e violação da impessoalidade que deve reger todos os atos do presidente. Impessoalidade significa não instrumentalizar a administração pública a partir de interesses pessoais. Não bastasse, a graça foi concedida a uma pessoa que ainda não foi condenada juridicamente. Um erro crasso.”

Essas prerrogativas presidenciais já foram usadas abusivamente antes. O ex-presidente Lula, por exemplo, negou em 2010 a extradição de Cesare Battisti, que pertenceu a um grupo terrorista de esquerda e vivia um doce exílio no Brasil. Atacava a Justiça italiana por tê-lo condenado por assassinatos cometidos nos anos 70. Quando finalmente foi extraditado, após ser capturado fora do Brasil, reconheceu que havia cometido os crimes, mostrando que os petistas haviam sido ingênuos – ou enganados. Em 2018, Fernando Haddad declarou que pretendia anistiar Lula das penas na Lava Jato se fosse eleito, o que seria igualmente uma afronta ao STF.

Enquanto a Justiça dialoga com a sociedade, Bolsonaro insiste em disseminar desinformação e dúvidas, pois teme perder as eleições em outubro. Bolsonaristas viram no episódio Silveira uma reafirmação do poder do presidente, capaz de se sobrepor às decisões do Judiciário. A deputada bolsonarista Carla Zambelli logo apresentou um projeto de lei para ampliar a anistia a todos que tiverem praticado desde janeiro de 2019 “atos que sejam investigados ou processados sob a forma de crimes de natureza política”. Esse salvo-conduto para crimes contra a ordem democrática não deve prosperar no Congresso, mas também aí o presidente conseguiu avançar em sua estratégia.

Ao proteger um deputado, Bolsonaro contou com o corporativismo no Legislativo. O presidente da Câmara, Arthur Lira, tenta evitar a cassação automática de Silveira, garantindo essa prerrogativa para o Legislativo (a questão deverá ser dirimida pelo próprio STF). Apesar de reprovado pela maioria dos colegas, o ex-PM pode ser beneficiado no Plenário pelo espírito de corpo dos colegas. Mesmo assim, deputados já ensaiavam nos bastidores um recuo, dizendo que Silveira poderia ser retirado da Comissão de Constituição e Justiça da Casa. Na mesma direção, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tentou guardar distância de Bolsonaro. Disse que as crises frequentes entre os Poderes são como “cortina de fumaça para os verdadeiros problemas do Brasil”. Aí está um dos cernes para as motivações do presidente. Ao fabricar instabilidades em série, ele desvia o olhar para o caos da sua administração, inclusive afastando investidores e provocando novas disparadas do dólar. A população sente na pele os efeitos da crise econômica, com uma inflação que já superou os 12%. A moeda americana voltou a superar a barreira dos R$ 5. O preço do gás de cozinha é o maior do século, comprometendo quase 10% do salário mínimo.

E esse esgarçamento institucional só vai crescer à medida que as eleições se aproximam. O presidente voltou a ameaçar descumprir decisão do STF sobre a demarcação de terras indígenas. A consequência dessa barafunda jurisdicional são instituições debilitadas e mais polarização, exatamente o que Bolsonaro deseja. Esses últimos acontecimentos são ilustrativos da sua estratégia para tensionar a relação com os Poderes, um jogo de morde-e-assopra para avançar cada vez mais em suas pretensões autoritárias.

Bolsonaro segue o manual dos autocratas, usando as próprias instituições para esmagar o sistema de freios e contrapesos democráticos, como ensinaram Hugo Chávez (Venezuela), Viktor Orbán (Hungria) e Donald Trump. Faz parte desse guia o “jogo duro constitucional” (“Constitutional Hardball”), estratégia cada vez mais frequente descrita pelo jurista Mark Tushnet em 2004, quando políticos forçam a mudança dos entendimentos constitucionais por meio de confrontos no Executivo e do Legislativo. Ao aceitar o jogo duro para evitar uma ruptura, as instituições acabam naturalizando as investidas antidemocráticas. Foi o que ocorreu neste cerco ao STF.

É assim que as democracias morrem. É esse o alerta que Barroso fazia a estudantes num ambiente acadêmico. Usando sua própria expressão, é preciso evitar a todo custo o “retrocesso cucaracha”. “Se um presidente abusa de seus poderes e comete reiterados crimes de responsabilidade sem ser contido pelo Congresso, afirmando que não cumprirá decisões judiciais do STF, se as Forças Armadas participam ativamente do governo e se colocam no papel de fiadoras do processo eleitoral em que esse mesmo mandatário pretende a reeleição, me parece que a ruptura constitucional e institucional já aconteceu”, resume Eloísa Machado, da FGV. O golpe já está normalizado.

Em busca da graça

Políticos que desafiaram o STF sonham em se beneficiar do mesmo indulto recebido por Daniel Silveira

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O EXÉRCITO NÃO PODE VIRAR MAIS UM DOS JOGUETES ELEITORAIS DE BOLSONARO

Andrei Meireles, OS DIVERGENTES

O general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, atual ministro da Defesa, subiu nas tamancas quando o ministro do STF Luís Roberto Barroso disse que as Forças Armadas estavam sendo usadas por Jair Bolsonaro para “atacar” o processo eleitoral brasileiro. Falou grosso, disse que o ministro Barroso, por “ilação ou insinuação” foi irresponsável por não apresentar provas de que isso está ocorrendo.

O próprio Bolsonaro desmentiu o general Paulo Sérgio ao dizer, na farra palaciana de desagravo ao condenado pelo STF Daniel Silveira, que as eleições só serão confiáveis se a apuração for submetida antes ao crivo das Forças Armadas. Nem na ditadura militar houve regras semelhantes.

O Tribunal Superior Eleitoral, que constitucionalmente arbitra o jogo, abriu o VAR das urnas eletrônicas para entidades da sociedade civil, inclusive as corporações de quem interage com computação, variados órgãos públicos, o Congresso Nacional, o Tribunal de Contas da União e as Forças Armadas. Querer pinçar nesse emaranhado um árbitro específico, escolhido por um dos times, é tentativa de fraude, de melar o jogo.

Mas Bolsonaro não jogou isso no ar com a expectativa de dar certo. Quis apenas alimentar seus seguidores nas redes sociais sedentos de teorias conspiratórias. Faz isso o tempo todo nas mais variadas frentes. Seu método é fingir que chuta o pau da barraca, agrada seus devotos, se não colar, escala parceiros para reduzir os estragos.

O mesmo script foi reproduzido nos últimos dias. Em um embalo em que se achou vitorioso nos últimos embates com o STF, esticou a corda e defendeu tornar as tais Forças Armadas em última instância da Justiça eleitoral, um absurdo com prazo de validade.

Nessa quinta-feira (28), o presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco, foi o primeiro a reagir. “As instituições e a sociedade podem ter convicção da normalidade do processo eleitoral. A Justiça Eleitoral é eficiente e as urnas eletrônicas confiáveis. Ainda assim, o TSE está empenhado em dar toda transparência ao processo desde agora, inclusive com a participação do Senado”, escreveu Pacheco, em sua conta  no Twitter.

Na sequência, o presidente da Câmara, Arthur Lira, parceiro de carteirinha de Bolsonaro, também fez questão de desembarcar da maluquice presidencial. “O processo eleitoral brasileiro é uma referência. Pensar diferente é colocar em dúvida a legitimidade de todos nós, eleitos, em todas as esferas. Vamos seguir –  sem tensionamentos – para as eleições livres e transparentes”. Um cascudo que soa como combinado.

E é esse o problema. Nesse bate, rebate, tudo parece como ação entre amigos. Inclusive as manifestações militares. O general Paulo Sérgio falou grosso contra as declarações do ministro Luís Barroso e não deu sequer um pio quando foi escalado por Bolsonaro como eventual tutor das eleições brasileiras. Puro delírio.

A conferir.

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GOLPISMO É ARMA ELEITORAL DE BOLSONARO

Editorial O Estado de S.Paulo

Jair Bolsonaro avança, com desenvoltura crescente, na sua escalada contra as instituições. Não se vislumbra quais seriam os limites de sua irresponsabilidade. Num só dia, como fez na quarta-feira passada, é capaz de atacar o processo eleitoral, envolver as Forças Armadas em seus devaneios conspiratórios, zombar do Judiciário e profanar a liberdade de expressão. É uma sucessão de barbaridades que, a rigor, não têm nenhuma relevância para o País. Enquanto Jair Bolsonaro entretém seu eleitorado com afrontas golpistas, a população tem de enfrentar a inflação, o desemprego, a fome e a falta de perspectiva quanto ao futuro.

O quadro é grave e requer realismo. A situação do Brasil em 2022 não guarda nenhuma semelhança com o que se viu em 2017 e 2018. No governo de Michel Temer, havia a crise social e econômica gestada nas administrações petistas, mas tinha um Executivo federal disposto a trabalhar e a enfrentar os problemas nacionais. Esse esforço gerou resultados visíveis: redução da inflação, condições sustentáveis para a diminuição dos juros e a retomada do crescimento.

O cenário hoje é inteiramente diferente. Não são apenas os indicadores econômicos ruins; por exemplo, a inflação volta a apresentar índices não vistos desde os anos 90 do século passado. O mais grave é que, mesmo com essa situação, o presidente da República entende que o seu papel é afrontar o Supremo, promover a desconfiança contra o sistema eleitoral e ainda envolver o bom nome das Forças Armadas em questões políticas.

Não bastasse ter declarado a inocência de um condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – o presidente da República pode conceder perdão, mas não reescrever uma sentença judicial –, Jair Bolsonaro promoveu no Palácio do Planalto um ato que, sob pretexto de defender a liberdade de expressão, homenageou o deputado que não respeita as leis e as instituições do País. O bolsonarismo expõe, assim, sua verdadeira identidade. Não é liberalismo, não é eficiência na gestão pública, não é abertura comercial, não é zelo pelo ambiente de negócios, não é estímulo à produtividade, não é melhoria da educação. Seu símbolo perfeito é Daniel Silveira, aquele que vem exercendo na atual legislatura o papel desempenhado por Jair Bolsonaro na Câmara durante seus vários mandatos. O padrão é rigorosamente o mesmo: quebra de decoro e violência contra as instituições democráticas como tática para ganhar visibilidade, na tentativa de acobertar a irrelevância política.

E é o que continua fazendo Jair Bolsonaro na Presidência da República. Sem disposição e competência para enfrentar os problemas nacionais, Bolsonaro percorre o caminho da ameaça e do enfraquecimento das instituições. No ato de quarta-feira no Palácio do Planalto, Bolsonaro defendeu a contagem paralela de votos pelas Forças Armadas. Por todos os ângulos que se veja, a proposta é inconstitucional. A definição do processo eleitoral não é uma disposição do chefe do Executivo federal, mas competência do Congresso Nacional. Não cabe às Forças Armadas a função de revisor do sistema eleitoral.

Jair Bolsonaro mostra-se alheio à Constituição e, também, à lei. São crimes de responsabilidade, segundo a Lei 1.079/50, “utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral” e “incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina” (art. 7.º, 4 e 7). Bolsonaro pode não gostar, mas tem o dever de respeitar a legislação eleitoral aprovada pelo Congresso. A Presidência da República não é órgão legislador.

Sem cumprir o que lhe cabe, que é governar o País, Jair Bolsonaro cria novas frentes de atrito e confusão. Revisa sentença judicial, desdenha da legislação aprovada pelo Congresso sobre processo eleitoral, instiga os militares a desempenharem funções além dos limites constitucionais. Nada disso é casual. É o bolsonarismo em ação, que ataca não apenas o STF, mas o papel e as competências constitucionais de todas as instituições, também do Congresso e das Forças Armadas. Não é política, é golpe.

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OS CRIMES, AINDA SEM CASTIGO

Weiller Diniz, OS DIVERGENTES

A operação Lava Jato é uma longa série com todos os arquétipos dos filmes policiais e que, no desfecho, exibiu uma inversão dos papéis. Antagonizaram-se mocinhos e bandidos, entrelaçados por tramas criminosas, delações fabricadas, ilusionismos investigatórios, pistas mentirosas, ilegalidades pirotécnicas, segredos delinquentes, reviravoltas surpreendentes e a inclusão de personagens mais modernos no roteiro, os hackers, que revelaram as verdadeiras faces dos criminosos. Os falsos heróis da primeira fase (7 anos em cartaz), justiceiros lesa-pátria camuflados nas togas do Judiciário e do Ministério Público, foram eviscerados.

Na segunda e mais curta temporada (3 anos) engrossaram o elenco dos malfeitores mais desprezados das telas nacionais e mundiais, condenados à vergonha e a desonra. A primeira punição – do eleitor – está desenhada. Falta ainda a Justiça, já que a maior transgressão do bando foi o assalto ao Estado Democrático de Direito. Processos não faltam enquanto eles insistem em acenar como astros da honestidade. Se ficarem impunes, o crime compensará.

Nos palcos internacionais Moro acaba de ser condenado como um fora da lei. Sofreu sua mais contundente vaia global. O Comitê de Direitos Humanos da ONU chegou à mesma conclusão do STF em março de 2021: o ex-juiz Sérgio Moro foi parcial em seu julgamento dos processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos bastidores da Operação Lava Jato. O veredito internacional, de que Lula foi um preso político por 580 dias, é o primeiro contra o falso paladino da Justiça nomeado ministro pelo capitão. O órgão concluiu que os direitos políticos de Lula foram violados após seis anos de análise do processo em Genebra.

A ONU não tem como impor que o Brasil aplique as medidas e penas aos facínoras. O respeito que o chefe da caterva – Bolsonaro – demonstra aos organismos internacionais pode ser verificado na enxurrada de mentiras proferidas na abertura da 76 Assembleia Geral da ONU em setembro de 2021. O indulto a Daniel Silveira mostra que ele tem seus bandidos de estimação, seus intocáveis, aqueles que sabem demais.

O Elliot Ness de fancaria, o intocável Sérgio Moro, passou por uma desconstrução mundial depois de emporcalhar o Judiciário e manipular os fiscais da lei para projetos políticos de ambos e, mais grave, entronizar no poder os mais cruéis pistoleiros do fascismo. Rejeitado pela audiência eleitoral, o ex-juiz foi excluído da matinê presidencial e, agora, anuncia que pode não disputar papel político algum diante dos insucessos sequenciais de bilheteria. O script fascista escrito por ele na Lava Jato não deixará saudades entre os democratas e legalistas. O enredo policial urdido por ele evoluiu para a gênero da tragédia, descambou para o terror e culminou com um genocídio com legendas autoritárias. Uma turnê do pânico, recheada de golpismo, obscurantismo, corrupção, fracassos, fome e desemprego regido por um serial killer na cadeira de diretor geral da Nação.

Moro em um improviso insincero – marca dos atores medíocres – disse que não vive da política. Pura representação. Há anos vive dela e para ela. É o que mostra a filmografia nebulosa e desfocada. Como o empoeirado juiz do velho estilo western, baleou o favorito da eleição presidencial em 2018 e, sem prova alguma, o condenou. Fez justiça com as próprias mãos, mas o tiro saiu pela culatra. Várias de suas sentenças foram reformadas na montagem final conduzida pelo STF, declarando Moro parcial e incompetente. Em troca do disparo fatal em Lula foi premiado com a estatueta da Justiça no salão vermelho sanguinolento do triller macabro de Bolsonaro. Ficou uma curta temporada em exibição na esplanada, fazendo vistas grossas para as delinquências de vários integrantes do elenco Bolsonarista (Onyx Lorenzoni, Flavio e Jair Bolsonaro, entre outros), até ser tirado de cartaz pelos mesmos pervertidos que ajudou a eleger com a toga conspurcada.

Moro sempre ambicionou o estrelato dos protagonistas, mas nunca passou de um figurante desprezível. A pequenez foi revelada nos testes públicos onde ficou evidente a falta de talento, a pouca inteligência e redação indigente. A lenda das telas televisivas, maquiada por figurinistas ocultos, derreteu diante de uma plateia eternamente manipulada por produtores mal-intencionados. O que Moro tramou nos bastidores, quando magistrado, supondo estar inalcançável pelas parabólicas digitais dos hackers, é uma verdadeira película de terror. Fraudes, conluios, tocaias e mentiras. O ex-juiz aparece sugerindo inversão de fases da operação, escalando procuradores para inquirições, ditando notas ao MP para desacreditar a defesa dos réus que julgava, blindando taticamente políticos de sua preferência e indicando fontes para encorpar a acusação contra o ex-presidente Lula, o troféu cobiçado. Al Capone do Judiciário que, como o gangster de Chicago, ainda não foi responsabilizado pelos crimes mais graves, apenas por sonegação.

Em episódios recentes, orientado por algum roteirista suicida, Sérgio Moro deu um tiro no pé ao reconhecer que embolsou um cachê espúrio de US$ 45 mil por mês da consultoria americana Alvarez & Marsal. Renda de R$ 10 mil/dia ou R$ 3,7 milhões em 10 meses. O patrocínio milionário foi anunciado para uma nação de famintos e vítimas da fraude jurídica que ele dirigiu para quebrar empresas, paralisar milhares de obras, desempregar em massa o elenco de trabalhadores e escalar Bolsonaro para a direção golpista do Planalto. A companhia internacional Alvarez & Marsal obteve 78% da sua bilheteria (R$ 65 milhões) a partir de empresas investigadas pela Lava Jato, cujo roteirista faccioso foi Sérgio Moro. A candidatura presidencial, que sempre foi uma ficção, migrou para o gênero do terror e, agora, estrelou nas telas do surrealismo.

O corte mais aterrorizante da meliância jurídica roteirizada por Sérgio Moro e seus assistentes do MP é o esfarelamento generalizado do Brasil: político, institucional, econômico e social. Desde maio de 2020 o distinto público é obrigado a maratonar as bravatas de quarteladas, com envolvimento reprisado das estrelas das Forças Armadas, outra instituição pisoteada publicamente pelo capitão. Além das sucessivas denúncias de corrupção (vacinas, viagra, próteses, picanha, salmão, chicletes etc), nepotismo, privilégios, impunidade e desvios, os comandantes das Forças Armadas costumam reagir com agressividade quando são criticadas pela coadjuvação autoritária ao lado de Bolsonaro. Já expediram várias notas golpistas. Desde a possibilidade de apreensão do celular de uso da presidência em 2020 até as constatações do ministro Luís Roberto Barroso sobre o processo eleitoral, passando por murros em mesa, intimidações a CPI do Senado entre outras. São os valentões fardados poupados na reforma da Previdência, que ganham além do teto salarial, empregam parentes, vacinam-se escondidos e exalam corrupção. As estrelas militares alçadas ao poder têm um brilho esmaecido e envergonham as fardas que vestem. Agora decidiram figurar como atores do processo político-eleitoral. Um papelão.

Outros coadjuvantes, creditados como a “equipe” de Moro no MP, também vão amargando fracassos nas turnês jurídica e política. Deltan Dallagnol foi um fiel escudeiro de capa e espada do lavajatismo morista. Já sofreu condenações pelos abusos de suas funções no MP. Duas no Conselho Nacional do Ministério Público, uma indenização na Justiça comum contra uma de suas vítimas e acabou de ser sentenciado pela unanimidade dos jurados do TCU a pagar, junto com outro canastrão, Rodrigo Janot, a farra das diárias durante a Lava Jato. Depois de desligados do elenco farsesco que tinha uma multidão de fãs, Dallagnol e Janot também buscam papéis políticos e o cenário protetor da imunidade parlamentar. Deltan pode ser cortado na versão final por inelegibilidade. Ambos se apegam ao roteiro de combate a corrupção, mas não têm um bom desempenho encarnando os mocinhos. A partir da metade de 2019, com as exibições da avant-première dos diálogos da Vaza Jato, passaram a ser vistos pela plateia como bandoleiros em busca de palcos do poder.

Alguns atores do elenco de apoio da Lava Jato receberam diárias e passagens para atuar em Curitiba, mas já eram sediados em tablados do MP de outros estados. O “script” financeiro menciona R$ 2,6 milhões em diárias e passagens pagas entre 2014 e 2021, com direito a casa, comida e roupa lavada nos palcos outrora reluzentes de Curitiba. Economicidade e impessoalidade não faziam parte do enredo dessa trupe, que fingia representar a moralidade. Ao contrário, montou-se um programa ‘vip’ de milhagens com dinheiro público. Entraram nas lentes investigativas do TCU os procuradores Antônio Carlos Welter (R$ 506 mil em diárias e R$ 186 mil em passagens), Carlos Fernando dos Santos Lima (R$ 361 mil em diárias e R$ 88 mil em passagens), Diogo Castor de Mattos (R$ 387 mil em diárias), Januário Paludo (R$ 391 mil em diárias e R$ 87 mil em passagens), Orlando Martello Junior (R$ 461 mil em diárias e R$ 90 mil em passagens), Jerusa Viecili (R$ 196 mil em diárias e 64 mil em passagens).

No auge da popularidade da Lava Jato, em 2018, o pistoleiro Billy the Kid curitibano, Deltan Dallagnol, comprou um apartamento de luxo na capital paranaense por R$ 1,8 milhão. Vendeu por R$ 2,7 milhões. No dia 12 de julho de 2021, Fernanda Mourão Dallagnol, esposa do procurador/ator, arrematou uma segunda unidade no mesmo prédio. Pagou R$ 2,2 milhões em um leilão judicial. Dallagnol sustentou que comprou o segundo imóvel com a venda do primeiro. Por muito menos, a Lava Jato mandou inocentes ver o sol nascer quadrado. Mensagens captadas pelo zoom mortal do hacker Walter Delgatti mostraram que Dallagnol tinha a cabeça nas estrelas. Por estar na crista da onda, brilhando no noticiário, queria faturar alto. Em um chat criado em 2018, Deltan e um colega discutiram a constituição de uma empresa laranja na qual eles não figurariam como sócios, mas as mulheres, dele e de Roberson Pozzobon: “Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários”, fabulou o falso moralista Deltan no grupo.

O doleiro Dario Messer assegurou em mensagens trocadas com sua namorada, Myra Athayde, que pagou propinas mensais a um procurador da Lava Jato. Os diálogos de Messer sobre a propina a Januário Paludo ocorreram em agosto de 2018 e foram capturados pela PF. Nas conversas, Messer fala sobre os processos que respondia. Ele diz que uma das testemunhas de acusação contra ele teria uma reunião com Januário Paludo. Depois, afirma à namorada que o procurador faz um papel de agente duplo na série policial: “Sendo que esse Paludo é destinatário de pelo menos parte da propina paga pelos meninos todo mês”. A quantia seria de R$ 50 mil/mês entre 2005 e 2013, por suposta proteção. Suspeito de ter recebido propina do próprio Messer, Paludo foi chamado a prestar depoimento por um advogado do doleiro. Aceitou e o inocentou em juízo.

A investigação contra o dublê de procurador foi arquivada pela PGR apesar das evidências. Se não fosse um membro do MPF teria ido para o escurinho do calabouço.

O primeiro falso mocinho demitido pelo CNMP foi o procurador Diogo Castor. Ele pagou outdoors cinematográficos para promover os “intocáveis” de Curitiba, que abusaram das tramas ilícitas para acusar arbitrariamente os alvos previamente selecionados. Outros 11 procuradores do elenco da Lava Jato, alojados nas salas cariocas, estão respondendo a um processo administrativo no Conselho Nacional do Ministério Público. Por 8 votos a 3, os conselheiros entenderam que há elementos para apurar a divulgação de informações sigilosas contra investigados, com o propósito estimular a publicidade opressiva, bandeira que mais tremulou nas salas comandadas por Moro. O relatório do caso, elaborado pelo corregedor-nacional Rinaldo Reis, sugeriu a demissão dos 11 procuradores.

As derrotas seriadas da Lava Jato levaram delatores ao arrependimento. Muitos já ensaiam pedir a anulação de ações penais que colocariam em xeque os acordos celebrados. Reina entre os principais delatores a sensação de que fizeram o papel de palhaço, como os únicos punidos. Uma das estrelas da Lava Jato nem terá tempo de pedir a anulação da delação, já que foi presa novamente por outro crime. Esse é o padrão delinquente dos delatores beneficiados pela direção da Lava Jato. A doleira Nelma Kodama foi detida em Portugal durante uma operação da Polícia Federal contra o tráfico internacional de drogas. Ela é suspeita de atuar como doleira para o narcotráfico. Kodama foi a primeira delatora da Lava Jato. Na época afirmou ter sido pressionada pelos procuradores a incriminar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Kodama era ex-mulher do doleiro Alberto Youssef, um velho amigo de Sérgio Moro desde os tempos do seriado do Banestado.

Sérgio Moro reprisou todos os capítulos fascistas da fracassada operação Mãos Limpas na Itália: deslegitimar a classe política, relativizar a sagrada presunção da inocência, prender para delatar, “vazar como peneira” e abusar da publicidade opressiva para antecipar a culpa e, com ela, obter uma espécie de consentimento social para fuzilar em praça pública os alvos previamente escolhidos. A diferença é que na Itália a operação não nasceu como projeto político. Pela excessiva exposição de seus atores alguns conquistaram mandatos. Aqui, os diálogos da Vaza Jato escancaram as ambições políticas. Outra diferença é que Antônio di Pietro, antes de cair em desgraça, foi eleito (deputado, senador) e até fundou o próprio partido, o IdV. Aqui Moro rasteja à porta de vários estúdios partidários, mas vem sendo ignorado por uns e chutado por outros. Após o juízo da ONU, Moro migra do gênero policial para o sobrenatural. Vira um zumbi. Na Itália, como aqui, todos acabaram flagrados com as mãos muito sujas. São transgressores, feios, sujos e malvados.

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A RUPTURA COMO CAMINHO

Carlos José Marques, ISTOÉ

Vamos a uma comparação em semelhante padrão de desvio de finalidade adotado pelo presidente Bolsonaro para beneficiar seu dileto amigo, Daniel Silveira, e afrontar, como outra face da moeda, o STF: imagine por um momento a ex-presidente Dilma Rousseff recorrendo ao mesmo instrumento da “Graça”, concedendo esse tipo de indulto individual a Lula, José Dirceu, Eduardo Cunha & Cia. Eles seriam automaticamente poupados de cumprir anos de cadeia, como tiveram de enfrentar. Beneficiados pelo mandatário de ocasião, ganhariam uma espécie de licença para delinquir. Ficando claro, nos termos da Lei: é faculdade constitucional do presidente da República dar indultos ou graça. 

O primeiro ocorre sempre para um grupo, obedecendo a determinados critérios – como exemplo, “a todos os presos a partir de 80 anos”, etc –, e a ferramenta da graça (que é individual) também necessita seguir a característica da impessoalidade, rotineiramente atendendo a fundamentos específicos. O principal deles: processo de cada indultado deve estar totalmente concluído, com a condenação em curso. Não ocorreu na situação do camarada presidencial, Daniel Silveira. Não há como outorgar perdão a um sujeito que não se encontra com o julgamento encerrado, passado por todas as apelações, recursos e embargos de direito. Sem, por assim dizer na linguagem jurídica, com a sentença “transitada em julgado”. Mas o soberano Bolsonaro achou por bem, de qualquer forma, à revelia da Lei, tomar a dianteira, atropelar trâmites, critérios e princípios, numa deliberação recorde – dia seguinte ao veredicto da Corte – para mostrar quem manda. 

Lançou um decreto temporal que precisa ser simplesmente anulado, muito embora ele tenha imposto, em tom de ameaça, que a decisão será cumprida a ferro e fogo, sem discussão. Faltou apenas a coroa para mostrar como ele imagina controlar o Brasil. A verborragia insolente e irresponsável do capitão não elimina o arcabouço legal em vigor. Não é por vontade pessoal de um mandatário que as coisas acontecem. Ao menos não em um Estado de Direito, no qual a Constituição vigora soberana. Bem verdade que Messias Bolsonaro parece estar pouco se lixando para “questiúnculas” como a do regimento de decretos e artigos da Carta Magna. Ele trabalha, minuciosamente, em todos os sentidos, dia após dia, na montagem de um golpe inconstitucional que venha a lhe conceder os poderes absolutistas que tanto sonha. Um objetivo acalentado de longa data. 

É um déspota em gestação e ninguém pode ter a mais pálida sombra de dúvidas sobre isso. A busca da ruptura democrática vem no escopo de suas metas desde que tomou posse. Demonstrações nesse sentido não faltam. São claras e constantes, em um sobranceiro atrevimento fora de época, para a perplexidade geral do País e fanatismo em delírio dos seguidores. Como aceitar que um sujeito com índole tão perversa e desestabilizadora continue a comandar os destinos nacionais? Bolsonaro quer a algazarra, criar uma lambança com seguidas confusões e provocações aos tribunais, envolvendo os militares num assunto que é estritamente político, de regramento da democracia, constrangendo as Forças Armadas a lhe dar respaldo em uma aventura fraudulenta. A coação e o envolvimento de uma instituição – que nunca foi poder moderador – para se intrometer em assuntos dessa natureza, são possíveis somente na cabeça doentia de caudilhos.

Bolsonaro não vai parar. Sua claque já torce por anistias, no mesmo modelo equivocado, a Roberto Jefferson, Zé Trovão e Allan dos Santos. Na prática, parece aberta a temporada para a camarilha dos amigos serem libertados de seus crimes, acusações e quetais. A que servirá a Justiça nesse contexto? Restará como um bedel do circo armado para consagrar a impunidade. Depois do enterro da Lava Jato, a nova toada de artifícios para livrar da cadeia contumazes infratores vai tomando corpo. Em outras palavras: não interessam quais desvios ou delitos tipificados cometeram. Caso sejam próximos do soberano da vez podem contar com a benevolência da graça imperial. Serão perdoados. Azar daqueles que não possuem essa influência. 

Meros desesperados que subtraem comida nos supermercados para saciar a fome de filhos estão aos montes mofando atrás das grades por décadas, sem ninguém ligar para eles ou um mandatário qualquer se mostrar tão rapidamente prestativo no intento de absolvê-los. O “mito” certamente não vê vantagem alguma em olhar para esse tipo de condenado. Os apaniguados, sim, merecem carinho e proteção. Bolsonaro arquitetou com o seu corpo jurídico uma manobra que tem todos os traços de uma esperteza ilegal com o objetivo de peitar e emparedar a Suprema Corte, no limite do desmonte institucional. Colocou, de novo, o País numa crise insana que destrói a esperada harmonia de poderes para o bom funcionamento da República. Ministros do STF apontam que o presidente vem, com isso, sinalizando a indisfarçável vontade de conturbar o processo eleitoral e a eventual sucessão em caso de derrota. Ele joga pesado para erodir a democracia. A sanha golpista precisa urgentemente ser controlada com respostas firmes. Do contrário, restará a anarquia.

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sexta-feira, 29 de abril de 2022

MARCOLA, LAMBROSO, BOLSONARO

Luís Francisco Carvalho Filho, Folha de S.Paulo

O perdão ao deputado Daniel Silveira é o ataque mais atrevido de Jair Bolsonaro ao cenário democrático.

Ridiculariza o Supremo Tribunal Federal e estabelece um estado de coisas inconstitucional, aparentemente insuperável. O presidente, que já manietava a Polícia Federal, as Forças Armadas e a Procuradoria-Geral da República, manipulando também regras de segredo de Estado para favorecer a delinquência mais próxima, firma-se agora como última e mais poderosa voz.

Príncipe da incivilidade, chefe supremo de todos e de tudo, Jair Bolsonaro estende o manto protetor da Presidência da República para aliados golpistas.

O perdão um dia depois da condenação mostra que decisão contrária não é mesmo para valer.

A senha é inconfundível. Não hesitem, ameacem: eu estou aqui, como um Deus, para amparar o futuro dos meus inocentes.

Bolsonaro estraga, desconstrói o Brasil. Logo haverá demanda para perdão de policiais que torturam ou matam suspeitos, de madeireiros que queimam florestas, de garimpeiros que estupram meninas indígenas.

A mesma mão que promete livrar o país do fantasma comunista —nas artes, nas escolas, na medicina, nos tribunais— é clemente para quem afronta a democracia. A mesma voz que acusa impiedosamente a corrupção de adversários é dócil, dócil demais, com corruptos amigos.

É o ápice da escalada golpista. Bolsonaro prega a desobediência como política pública. O descrédito da Justiça Eleitoral é essencial (em caso de derrota) para deslegitimar o resultado das eleições.

O Supremo estabelece marco temporal para a demarcação de terras indígenas? Bolsonaro anuncia que não vai cumprir. Em nome da liberdade de expressão, Bolsonaro manda juiz calar a boca.

A altivez politicamente criminosa de Jair Bolsonaro, às vezes vista como singelo exagero, é reafirmada nas vésperas da eleição para reacender (na hora do golpe) o sentimento plantado em diversos setores sociais —nos pontos de táxi, nas delegacias de polícia, entre milicianos, nas cooperativas agrícolas, nas corretoras de valores, nas igrejas, nos quartéis e, sobretudo, em entidades empresariais— de que a veia autoritária é sim um caminho viável (sempre passageiro, é claro) para o desenvolvimento do Brasil.

O emaranhado democrático de leis, tribunais e direitos atrapalha o empreendedorismo e a vida liberal.

São as homenagens ao deputado Daniel Silveira, imundo e perdoado, que formam o retrato mais constrangedor da distopia nacional.

Se as fotografias das comemorações na Câmara dos Deputados e no Palácio do Planalto fossem observadas pelo criador da criminologia científica, o médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), uma teoria antropológica baseada nas características (físicas, psíquicas, éticas e estéticas) dos apoiadores homens e mulheres de Jair Bolsonaro poderia ser construída para explicar a natureza da delinquência política no país.

Piadas a parte, parlamentares das bancadas da bala e da fé, eleitos pela poderosa ressonância do bolsonarismo no Brasil real, formam um agrupamento de delinquência política que, em matéria de desafio à lei e à ordem, só encontra paralelo em agrupamentos de delinquentes comuns, como o PCC e a máfia.

Paradoxalmente, "homens de bem" que se recusam a compartilhar valores morais do crime organizado, admiram e compartilham valores morais apodrecidos que as ventas do Marcola da política brasileira, Jair Bolsonaro, expelem sobre nós.

Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).

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GOLPE E DEBOCHE

Alvaro Costa e Silva, Folha de S.Paulo​

Primeiro de Maio bom é (ou era) na Quinta da Boa Vista. Piquenique no gramado, passeio de pedalinho e trenzinho, resenha no pagode chinês e no fim da tarde um grande show de música clássica ou popular nos jardins projetados pelo francês Glaziou. Arrisco a dizer que neste ano o antigo Paço de São Cristóvão, onde nasceram Pedro 2º e a princesa Isabel, estará vazio de trabalhadores. Falta dinheiro até para passagem de trem, quanto mais para churrasquinho de gato.

Tradicional data de reivindicações da esquerda, o Dia do Trabalhador também será usado para manifestações da extrema direita em Brasília, São Paulo, Rio e outras capitais. Para realizá-las dinheiro não falta, nem apoio da máquina estatal. A intenção é reviver o Sete de Setembro do ano passado, quando houve um ensaio de golpe. A ordem é esticar a corda até arrebentar.

Dos oradores, não se deve esperar palavra sobre o desemprego de 12 milhões de pessoas, um dos mais altos do mundo, ou a inflação em foguete (o preço do gás de cozinha é o maior do século). Tampouco sobre a situação de pobreza que atinge metade da população.

O alvo mais uma vez será o STF, com pedidos para implantação da ditadura militar e novos AI-5. Discurso de desprezo à democracia, camuflado como liberdade de expressão, que Bolsonaro e os generais do Planalto adotam desde o começo do governo.

No Congresso, o tecido vai se esgarçando. Depois de Carla Zambelli propor "anistia geral" a parlamentares condenados por manifestações antidemocráticas, Daniel Silveira foi indicado para compor a Comissão de Constituição e Justiça. Um deboche. Líder da bancada evangélica, Sóstenes Cavalcante apresentou um projeto para dificultar a perda de mandato, alterando o número de votos, dos atuais 257 para 340.

Com ataques ao sistema eleitoral, Bolsonaro desvia a atenção do caos econômico e prepara a cama do golpe. Já tem gente louca para se jogar nela.

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OBRAS EM DECLÍNIO

Editorial Folha de S.Paulo

Dados do Instituto Brasileiro de Economia, da FGV, mostram que o investimento público continua definhando. No ano passado, a taxa em todos os níveis de governo, incluindo estatais, recuou para 2,05% do Produto Interno Bruto, ante 2,68% em 2020. Trata-se do segundo patamar mais baixo da série histórica iniciada em 1947.

No caso da administração federal, a taxa ficou em apenas 0,26% do PIB, a pior em 17 anos. Mesmo as estatais aportaram apenas 39,7% do volume que constava em seu planejamento, muito abaixo do padrão de 90%. A principal retração se deu na Petrobras, que agrega o maior volume de recursos.

Nos governos estaduais, o quadro foi algo melhor, com alta de 0,4% para 0,58% do PIB de 2020 a 2021. Nesse caso houve certa sobra de recursos, em razão do crescimento acelerado da arrecadação que decorreu da inflação, fenômeno que deve permanecer neste ano. Já nos municípios, houve queda de 0,81% para 0,55% do produto no período.

Cabe notar que no governo federal os números incluem as emendas parlamentares ao Orçamento, que têm crescido nos últimos anos —especialmente as emendas de relator, as verbas nebulosas sob o controle das lideranças do centrão, que passaram a representar uma parcela elevada dos recursos.

O problema, além da queda dos montantes, é que a qualidade dos investimentos é declinante. Sem planejamento claro, a destinação do dinheiro passa a seguir ditames políticos, em geral distantes de critérios de eficiência e racionalidade.

Têm sido numerosos os exemplos de obras mal conduzidas, que se tornam esqueletos inacabados nos rincões do país, resultado de clientelismo político —ou, nas piores hipóteses, de corrupção.

Perde-se, assim, outro grande papel que deve ser desempenhado pelos investimentos públicos: mobilizar o setor privado em aportes complementares num encadeamento virtuoso que eleve o potencial de crescimento do país.

Já o caso das estatais é intrigante. As empresas hoje estão mais saneadas e com maior espaço de caixa.

Mais desembolsos, de todo modo, nem sempre significam melhor uso das empresas, como se verificou nos anos em que a Petrobras embarcou em projetos perdulários, ao custo de maior dívida.

As boas notícias passam a depender de maior participação privada, como no caso do saneamento, cujas concessões tem atraído recursos que carregam o potencial de finalmente erradicar o déficit de acesso a água e esgoto que ainda atinge milhões de brasileiros.

É inegável que o setor público precisa ter mais protagonismo. Retomar a capacidade de investir, porém, depende de equilíbrio orçamentário que só virá com reformas.

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QUALIDADE DA DEMOCRACIA DEPENDE DA CÂMARA

Editorial O Estado de S.Paulo

Um deputado desqualificado e insignificante se tornou o centro das atenções do País e peão de uma constrangedora rusga entre os Poderes da República, que resvalou até para as Forças Armadas. É como se nada mais urgente demandasse as atenções dos chefes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário do que o destino da triste figura de Daniel Silveira (PTB-RJ) e suas implicações jurídicas e políticas.

A sociedade teria sido poupada do sentimento de vergonha alheia e seus interesses estariam mais bem resguardados se acaso a Câmara dos Deputados – que representa a sociedade, afinal – tivesse cassado Daniel Silveira por quebra de decoro parlamentar. Razões para isso não faltaram.

Antes mesmo de ser eleito na onda “antipolítica” que varreu o País em 2018, o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro já dava mostras cabais de que seu comportamento iracundo, vulgar, indisciplinado e desrespeitoso era absolutamente incompatível com o exercício do múnus público. Mas, até a eleição, esse era um problema de seus eleitores. Uma vez eleito, mantida a postura indecorosa, Daniel Silveira passou a ser um problema da Câmara.

A Casa tem o papel inalienável de zelar pela qualidade da democracia representativa. Esse zelo se materializa na sanção política, que pode culminar na cassação do mandato, daqueles que manifestam um comportamento que degrada, antes de qualquer coisa, a própria imagem do Legislativo. Contudo, não só Daniel Silveira não foi cassado, malgrado a falta de decoro e a condenação criminal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como foi premiado com assento em cinco comissões permanentes da Câmara, inclusive a mais importante e prestigiosa de todas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

O deputado Daniel Silveira está longe de ser o único exemplo de tolerância excessiva da Câmara com graves desvios de conduta – quando não crimes – cometidos pelos seus. Para ficar apenas no caso de condescendência mais nocivo para o País até hoje, basta um simples exercício de imaginação para inferir qual teria sido a sorte dos brasileiros se acaso a Câmara tivesse cassado o mandato do então deputado Jair Bolsonaro após um dos muitos episódios de quebra de decoro que o atual presidente da República protagonizou durante seus quase 30 anos de vida parlamentar. No caso de Silveira, ainda há tempo para a Casa refletir e agir como se espera.

O espírito de corpo na Câmara pode muito bem beneficiar determinada legislatura e aumentar o poder do seu presidente de ocasião, mas, visto a longo prazo, contribui decisivamente para o desprestígio popular do Legislativo e, como consequência, para o enfraquecimento da democracia representativa.

Na esteira da graça inconstitucional concedida a Daniel Silveira por Bolsonaro, um grupo de parlamentares ligados ao presidente da República, liderados pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), pretende transformar a condescendência em lei. A parlamentar apresentou um projeto de lei que propõe anistia a todos os deputados que tenham praticado atos investigados como “crimes de natureza política” entre o dia 1.º de janeiro de 2019, data da posse de Bolsonaro, e o dia 21 passado, quando o presidente assinou o decreto “perdoando” Silveira, como se inocente este fosse e como se Bolsonaro fosse um “revisor” das decisões do STF.

A mera apresentação de um projeto desse gabarito, com esse explícito recorte temporal, já é indecente por si só, mas, vindo de uma bolsonarista de quatro costados não chega a surpreender. Outro deputado bolsonarista, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), apresentou um Projeto de Resolução que torna ainda mais difícil a cassação do mandato parlamentar ao propor o aumento do quórum de votação, de maioria absoluta (257 votos) para dois terços (342 votos).

Para o bem da própria Câmara e da democracia representativa, projetos claramente corporativistas como esses não devem prosperar. É do interesse maior da Casa que os maus parlamentares, os que não honram o mandato recebido de seus eleitores, sejam excluídos da vida pública.

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PACIFISMOS

Demétrio Magnoli, Folha de S.Paulo

"Paz para a nossa época" –as palavras de Chamberlain, ao retornar da Conferência de Munique, ecoam até hoje como um signo de vergonha. O primeiro-ministro britânico praticava o "apaziguamento", utilizando-se da linguagem do pacifismo. Diante da guerra de agressão russa na Ucrânia, o discurso pacifista está de volta. Como em 1938, seus mais destacados arautos não querem a paz, mas um desfecho específico da guerra.

Chamberlain não era um pacifista. O "apaziguamento", estimulado pela parcela da elite britânica simpática a Hitler, sintetizava um desastrado cálculo estratégico: direcionar as forças alemãs para um confronto mutuamente destruidor com os soviéticos. Os pacifistas aplaudiram a entrega dos Sudetos tchecos, que exibiam como um preço de liquidação para obter a paz universal. "Chamberlain fez a coisa certa em Munique", declarou Bernard Shaw, a figura icônica do pacifismo.

"Se Zelenski tivesse dito há tempos que não iria entrar na Otan, teria evitado a guerra", tuitou o teólogo Leonardo Boff. Os fatos desmentiram, de imediato, a profecia contrafactual do piedoso humanista. Na segunda semana da guerra, Zelenski aceitou trocar a paz por um estatuto de neutralidade geopolítica da Ucrânia –mas a Rússia rejeitou a oferta, exigindo a transferência da Crimeia, do Donbass e do sul ucranianos à sua soberania.

Putin deflagrou uma guerra de conquista alegando que a Ucrânia não passa de uma extensão da Rússia. Boff está de acordo com o conceito que sustenta a invasão. No seu tuíte, a frase estende-se do seguinte modo: "...a guerra e a carnificina que os russos estão fazendo, destruindo uma parte de si mesmos, pois Ucrânia e Rússia foram sempre uma só terra".

Shaw não era apenas um pacifista célebre, mas também –algo geralmente esquecido– um admirador de Hitler, Stalin e Mussolini. Na quarta semana da guerra, Boff transitou da exigência inicial de neutralidade ucraniana para uma posição mais "realista", que replica os objetivos de Putin: "Me pergunto se tem sentido Zelenski sacrificar todo um povo numa guerra que sabe não poder ganhar. Para poupar seu povo caberia, não uma rendição, mas uma negociação mesmo com concessões." Assim, de passagem, Boff conta-nos que não é Putin, mas Zelenski, que sacrifica "todo um povo".

Putin imaginou que, por não ser uma nação legítima, a Ucrânia capitularia sem luta. Viu, no lugar disso, uma nação inteira se levantar contra o poderoso invasor. Na sua infinita bondade, Boff solicita a Zelenski que faça a vontade de Moscou, entregando-lhe vastos territórios –e, com eles, as populações que os habitam. Seu pacifismo, como o de tantos outros, é uma encenação destinada a divulgar os pretextos e as narrativas do chefe do Kremlin.

Diante da decisão dos EUA, junto com outros 42 países, de fornecer armas pesadas à Ucrânia, o ministro do Exterior russo, Sergei Lavrov, passou a acusar a Otan de promover uma guerra por procuração contra a Rússia. Os pacifistas de araque repetem, sílaba por sílaba, as cínicas sentenças de Lavrov. De fato, ignoram a Carta da ONU, que condena a guerra de conquista e avaliza o direito à autodefesa coletiva –ou seja, o direito de nações não beligerantes de contribuir para o esforço de guerra de um país invadido.

Na Ucrânia, mais que o destino de uma nação soberana, joga-se o futuro da ordem mundial edificada em 1945 pelas potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, inclusive a URSS. Um triunfo em terras ucranianas impulsionaria Putin a prosseguir sua escalada de guerras imperiais na Moldávia e nos países bálticos, sob o álibi de proteger os "russos do exterior". Segundo a lógica de Boff, em nome da paz, cada uma dessas nações deveria desistir da soberania e de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas. O pacifismo do nosso Shaw, como o do Shaw original, é propaganda de guerra.

Demétrio Magnoli - Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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A SERVIÇO DO GOLPISMO

Vinicius Sassine, Folha de S.Paulo

BRASÍLIA - Jair Bolsonaro é um presidente com intenções e atos golpistas. Provou isso ao inflamar manifestação a favor de intervenção militar, em frente ao QG do Exército; ao usar o 7 de Setembro para um protesto pelo silenciamento do STF, quase invadido nos dias seguintes; ao confrontar o Judiciário com o perdão a Daniel Silveira; e ao atacar o sistema eleitoral.

O golpismo de Bolsonaro, para que tenha êxito pelo menos no campo da retórica, passa por um cargo estratégico no governo: o de ministro da Defesa. O presidente quer as Forças Armadas alinhadas ao seu projeto e, a seu modo, usa os generais colocados na Defesa –já foram três em três anos.

Por isso, quando o general Paulo Sérgio de Oliveira aceitou deixar o comando do Exército para comandar a Defesa, no ano em que Bolsonaro tentará a reeleição, a dúvida não era se seria arrastado ao golpismo, mas quando.

Bastaram 24 dias. O general, na noite do último domingo (24), divulgou uma nota para rebater o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, que afirmou existir orientação para as Forças Armadas atacarem o sistema eleitoral.

O texto de Oliveira, submetido previamente a Bolsonaro, fez críticas duras a um integrante do Supremo; citou a necessidade de mais segurança no processo eleitoral; e colocou as eleições como questão de "soberania e segurança nacional".

O gesto do ministro da Defesa municiou Bolsonaro em mais uma ofensiva golpista, apenas três dias após a nota. O presidente apontou possibilidade de suspeição da eleição e chegou a sugerir que as Forças Armadas participem de uma contagem paralela dos votos.

O golpismo de Bolsonaro tem a mesma cadência da politização das Forças. Os dois movimentos crescem em proporção igual.

O presidente segue sem ser incomodado, e ouve "sims" de seus generais para instrumentalização da Defesa, descredibilização das urnas eletrônicas e desfile de tanques enfumaçados em frente ao Planalto. Bolsonaro está à vontade para ser golpista.

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TUÍTES E LIMITES

Editorial Folha de S.Paulo

O acordo de compra do controle acionário do Twitter por Elon Musk provocou uma previsível onda de reações. Até aqui, as análises sobre o futuro da plataforma se ancoram em algumas poucas informações, em boa parte oriundas de tuítes do próprio megaempresário.

Ainda que seja cedo para prever com alguma precisão o que ele pretende fazer a partir do negócio de US$ 44 bilhões, parece inevitável o debate sobre a liberdade de expressão na internet.

Em diferentes plataformas e em vários países, o assunto dá margem a ideias perigosas. Mesmo que bem intencionadas, medidas unilaterais de controle do que pode circular nas redes adentram o pantanoso terreno de restrição à manifestação do pensamento —assegurada, no caso brasileiro, pelo artigo 5º da Constituição de 1988.

Nos Estados Unidos, a sombra provocada por esse debate já se faz sentir. Apenas 1 em cada 3 norte-americanos considera que todos os seus conterrâneos têm liberdade de expressão completa, conforme mostrou pesquisa encomendada pelo jornal The New York Times e pelo Siena College.

Esta Folha há muito defende que o limite aceitável para essa liberdade fundamental é o dado pela lei. O cerceamento deve estar circunscrito a manifestações que incorram em crimes tipificados pela legislação; o mesmo vale para o comércio de produtos na rede.

Já as ideias ruins devem desvanecer-se pela própria fragilidade, e as mentiras precisam ser desmontadas, não impedidas de circular.

Nesse tópico, é bem-vindo o posicionamento de Musk. "Sou contrário à censura que vá muito além do que está na lei", afirmou.

O negócio bilionário ainda expõe, uma vez mais, a morosidade do poder público em relação ao assunto. Legislações que poderiam controlar o poder das big techs pouco avançaram ao longo dos últimos anos em diferentes países, sendo a Austrália um notório contraexemplo a esse padrão —espera-se que a União Europeia seja outro mais à frente.

No Brasil, a possibilidade de abusos nas campanhas eleitorais motivou acordos de procedimento firmados entre as empresas e o Tribunal Superior Eleitoral, um paliativo que não elimina a necessidade de uma legislação coerente e estável para a conduta nas redes.

A capacidade dessas megacorporações de influenciar imensa e imediatamente a sociedade está mais do que demonstrada. A régua sobre o que elas podem e devem fazer tem de ser dada pela lei, não por seus acionistas. A entrada da pessoa mais rica do mundo nesse universo só torna ainda mais urgente agir nesse sentido.

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DRAMA ARGENTINO

Editorial Folha de S.Paulo

A América Latina é a região do mundo que menos deve prosperar em 2022, exceção feita ao Leste Europeu, afetado pela guerra, segundo as previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI). Nesse cenário, as economias de Argentina e Brasil são aquelas que, entre as maiores do subcontinente, tiveram o pior desempenho desde 2014.

No período, o PIB argentino encolheu 4,1%, e o do Brasil, 1,6%. Nos casos mais bem-sucedidos estão Paraguai, com expansão de 26,2%, Bolívia (23,8%), Colômbia (21,6%), Peru (20,2%) e Chile (18,1%).

Nota-se que características comuns dos países da região, como a dependência de commodities ou o tumulto político, não determinam o resultado econômico. A hipótese de que nações mais pobres podem se beneficiar de algum bônus na transição para a renda média também parece pouco explicar, vide os casos de Chile e Colômbia.

A obstinação com políticas fracassadas é uma explicação parcial, mas forte, em casos como o argentino e o brasileiro. O país vizinho padece desse mal faz décadas.

Buenos Aires firmou neste ano novo acordo com o FMI, o 22º desde que se juntou ao organismo em 1956 —um a cada três anos, em média. De modo recorrente, sua economia passa por crises de endividamento externo que terminam em insolvência iminente.

Como alternativa ao financiamento em moeda estrangeira, imprime dinheiro, vivendo sob inflação alta, ora na casa dos 55% ao ano. Só no mês passado, os preços subiram desastrosos 6,7%.

A crise mais recente ocorreu em 2018, com o surto de endividamento do governo centro-direitista de Maurício Macri. A partir daí, acertou um um pacote de US$ 57 bilhões com o FMI, o maior da história. À beira da inadimplência, em março, refinanciou o débito.

Como sempre, as condições dos arranjos são a redução do déficit e de subsídios de tarifas públicas, o fim de tabelamentos de preços, o controle da inflação, com alta das taxas básicas de juros, ora negativas, e reformas básicas.

Em tese, por três ou quatro anos, haveria folga nos pagamentos da dívida. Mas duvida-se que o esquerdista Alberto Fernández queira ou possa cumprir o acordo.

O governo perdeu as eleições legislativas do final de 2021. A coalizão no poder está dividida quanto às condições do FMI, é impopular e vai enfrentar dura eleição geral em 2023. As reformas parecem adiadas para o governo seguinte, quando a Argentina se arriscará a um novo surto de sua crise crônica.

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A ONU EXPLICA OS DESMANDOS DA LAVA JATO PARA O MUNDO

Reinaldo Azevedo, Folha de S.Paulo

O Comitê de Direitos Humanos da ONU não poderia ter sido mais eloquente sobre as violações aos direitos de Luiz Inácio Lula da Silva praticados pelo Estado brasileiro por intermédio da Lava Jato, muito especialmente pelo então juiz Sergio Moro.

Também o PowerPoint de Deltan Dallagnol —que contou com a aprovação de Moro— aparece no texto como uma das agressões ao devido processo legal. O sempre excelente Jamil Chade antecipou a decisão no UOL e fez uma boa síntese do caso.

Para Lula, a decisão tem peso moral, não jurídico. E certamente será tratada, e com toda razão, na campanha eleitoral. Segundo o comitê, ao ser impedido de se candidatar, em 2018, o petista teve ainda solapados os seus direitos políticos.

Muitos, no Brasil, estão zangados com o comitê, especialmente o "Colunismo de Acusação", que atuou como uma espécie de anexo da força-tarefa, indiferente à evidência de que, numa democracia, a correção de qualquer mal, também o da corrupção, tem de se dar segundo regras.

Coube ao Estado brasileiro tentar justificar as ações de Moro e do Ministério Público. Mas o grupo chegou à conclusão, sem muita dificuldade, de que elas eram incompatíveis com uma sociedade democrática, assentada em leis. A verdade é que se confundiu por aqui, ao longo de quase seis anos, o exercício da oposição com o da persecução penal.

Operou-se uma mistura perversa de "lawfare" —uso da lei para perseguição política— com uma leitura torta do conceito de "direito penal do inimigo", como se fosse razoável suspender as garantias constitucionais de um adversário ideológico sob o pretexto, sempre!, de combater a corrupção.

Goste-se ou não da decisão, o fato é que o comitê da ONU atua como um olhar externo, neutro desde a partida, sobre o processo. Por aqui, infelizmente, a guerra ideológica e as batalhas políticas turvaram o juízo de muita gente.

Mais uma vez, o país foi engolfado pelo moralismo amoral, que consiste em substituir a presunção de inocência pela de culpa, de modo que o acusado se vê na contingência de produzir a prova negativa, dispensando-se o órgão acusador de apresentar a evidência do crime.

Este escriba conhece cada detalhe, como canta Chico César, "da maldade de gente boa". Quando, já em 2014, comecei a constatar laivos de messianismo e de viés político na tal "Lava Jato", virei alvo da fúria dos que se queriam justos.

Em 2016, Dallagnol tricotou contra mim em conversinha indecorosa com Moro no Telegram, chamando-me "jurista", com aspas, como se desqualificação fosse. Ele reclamava porque escrevi então, com todas as letras, que apresentara uma acusação sem provas e que seu PowerPoint era uma excrescência. Logo eu, não é?, que alguns pretendiam ser um exemplo de militante antipetista. Ocorre que abandonei a militância aos 21 anos.

Não tenho como lidar com as decepções e com os desenganos de terceiros em relação às expectativas boas ou más que alimentam a meu respeito. Agora cito Jorge Mautner: "Eu não peço desculpa/ E nem peço perdão/ Não, não é minha culpa/ Essa minha obsessão".

E complemento a palavra: sou obcecado pelo devido processo legal. Se não posso confiar no Estado julgador, por intermédio do Poder Judiciário, vou confiar em quê? Na luta armada? Infelizmente, noto à margem, remanescem certos cacoetes que o lava-jatismo imprimiu à cobertura jornalística.

Os veículos profissionais de comunicação deveriam organizar seminários para rever seus respectivos procedimentos durante a Lava Jato. De cara, uma pergunta teria de ser respondida: "Por que jamais se investigaram os investigadores que falavam em nome da pretensão punitiva do Estado?" Já ali havia, e isto me parece inequívoco, uma adesão a um lado da contenda e uma quebra da necessária imparcialidade.

"E Daniel Silveira, Reinaldo, não seria ele também vítima de ilegalidades?" Não! Mas deixo a sugestão: o presidente revoga o seu decreto inconstitucional, e o deputado cumpre os rigores da lei, como fez Lula. E sempre se poderá, adicionalmente, apelar ao Comitê de Direitos Humanos da ONU. Que tal?

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SOB O DOMÍNIO DO MEDO

Silvio Almeida, Folha de S.Paulo

Silvio Almeida - Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

O primeiro passo para enfrentar uma situação difícil é admitir que a situação existe.

Então, para que que possamos dar este primeiro passo é preciso dizer com todas as letras que o Brasil não é uma democracia e nem uma República. Se um dia foi —e há bons argumentos para sustentar o contrário— hoje, definitivamente, não é mais.

Havia antes a ideia de que éramos uma "jovem democracia". Pois bem: essa "jovem" democracia morreu antes de chegar à fase adulta, como morrem os jovens nas periferias, na maioria negros, assassinados pelas tais "balas perdidas".

Não pode ser considerado democrático um país em que pessoas com armas na cintura se sintam autorizados a participar do debate público.

Tornou-se normal no Brasil que militares emitam notas "criticando" políticos, membros do judiciário e até se posicionando sobre temas eleitorais. Isso deveria ser uma anomalia porque, em última instância, a arma na cintura torna a pretensa crítica uma ameaça, independentemente de qual seja a real intenção de quem emitiu a nota.

Por isso, em sociedades minimamente organizadas, militares são proibidos de opinar sobre política ou mesmo dela diretamente participar porque parte-se do pressuposto de que não é possível negociar em termos republicanos e democráticos com pessoas armadas.

Militares deveriam ser agentes de Estado e não de governo e essa é a diferença fundamental entre um exército e uma milícia. Nada há na Constituição Federal que dê às Forças Armadas a condição de "poder moderador" da República. E se houvesse algo do tipo poderíamos dizer sem subterfúgios que o Brasil não é um país democrático nem do ponto de vista formal, até porque culturalmente já sabemos que não é.

Tampouco cabe o papo furado de que nesse caso seria melhor que todos andassem armados. Isso é conversa de miliciano ou de quem está preso a algum mundo delirante de filmes de faroeste.

Quando pessoas armadas se sentem confortáveis, mesmo ao arrepio da lei, para "criticar" decisões judiciais ou matérias jornalísticas é porque passamos de todos os limites. E sem limites não há responsabilidade e sem responsabilidade não há nem democracia e nem republicanismo.

Precisamos admitir que não mais flertamos com o abismo, mas que dentro dele já estamos. Neste exato momento, com um presidente abertamente golpista e com os demais poderes capturados, perplexos ou coniventes não há como sustentar que vivemos em normalidade democrática ou sob um Estado de direito. Nossa única regra é a exceção e nossa política é baseada no medo.

O medo é um sentimento ambíguo, pois pode nos conduzir a duas posturas distintas. A primeira delas é a paralisia e a capitulação. Às vezes o medo é tanto que, para escaparmos de uma situação ruim, nos entregamos ainda mais a quem nos amedronta.

E é com isso que contam aqueles que nos ameaçam. Querem que vejamos neles a solução para os problemas que eles mesmos causam. Por isso é paradoxal suplicar às Forças Armadas para que sejam os fiadores da democracia e nos salvem de um golpe de Estado que só elas, Forças Armadas, poderiam de fato perpetrar. Isso é síndrome de Estocolmo, não democracia.

A segunda postura que se relaciona com o medo é a coragem. A coragem não está na ausência do medo, mas na disposição para enfrentá-lo. Falo aqui não de coragem apenas em termos morais, do tipo que pode empurrar indivíduos para o sacrifício individual.

Trato aqui da coragem como virtude cívica, que em termos aristotélicos se refere ao meio-termo entre o medo e a confiança, algo que se constrói no curso da ação política. Nesse contexto, todo ato de coragem é também um ato político de cuidado para com o país.

O Brasil está em cativeiro e sob tortura e nossa missão, ainda que diante do medo, é garantir que aqueles que nos amedrontam voltem para o lugar de onde nunca deveriam ter saído.

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