"Paz para a nossa época" –as palavras de Chamberlain, ao retornar da Conferência de Munique, ecoam até hoje como um signo de vergonha. O primeiro-ministro britânico praticava o "apaziguamento", utilizando-se da linguagem do pacifismo. Diante da guerra de agressão russa na Ucrânia, o discurso pacifista está de volta. Como em 1938, seus mais destacados arautos não querem a paz, mas um desfecho específico da guerra.
Chamberlain não era um pacifista. O "apaziguamento", estimulado pela parcela da elite britânica simpática a Hitler, sintetizava um desastrado cálculo estratégico: direcionar as forças alemãs para um confronto mutuamente destruidor com os soviéticos. Os pacifistas aplaudiram a entrega dos Sudetos tchecos, que exibiam como um preço de liquidação para obter a paz universal. "Chamberlain fez a coisa certa em Munique", declarou Bernard Shaw, a figura icônica do pacifismo.
"Se Zelenski tivesse dito há tempos que não iria entrar na Otan, teria evitado a guerra", tuitou o teólogo Leonardo Boff. Os fatos desmentiram, de imediato, a profecia contrafactual do piedoso humanista. Na segunda semana da guerra, Zelenski aceitou trocar a paz por um estatuto de neutralidade geopolítica da Ucrânia –mas a Rússia rejeitou a oferta, exigindo a transferência da Crimeia, do Donbass e do sul ucranianos à sua soberania.
Putin deflagrou uma guerra de conquista alegando que a Ucrânia não passa de uma extensão da Rússia. Boff está de acordo com o conceito que sustenta a invasão. No seu tuíte, a frase estende-se do seguinte modo: "...a guerra e a carnificina que os russos estão fazendo, destruindo uma parte de si mesmos, pois Ucrânia e Rússia foram sempre uma só terra".
Shaw não era apenas um pacifista célebre, mas também –algo geralmente esquecido– um admirador de Hitler, Stalin e Mussolini. Na quarta semana da guerra, Boff transitou da exigência inicial de neutralidade ucraniana para uma posição mais "realista", que replica os objetivos de Putin: "Me pergunto se tem sentido Zelenski sacrificar todo um povo numa guerra que sabe não poder ganhar. Para poupar seu povo caberia, não uma rendição, mas uma negociação mesmo com concessões." Assim, de passagem, Boff conta-nos que não é Putin, mas Zelenski, que sacrifica "todo um povo".
Putin imaginou que, por não ser uma nação legítima, a Ucrânia capitularia sem luta. Viu, no lugar disso, uma nação inteira se levantar contra o poderoso invasor. Na sua infinita bondade, Boff solicita a Zelenski que faça a vontade de Moscou, entregando-lhe vastos territórios –e, com eles, as populações que os habitam. Seu pacifismo, como o de tantos outros, é uma encenação destinada a divulgar os pretextos e as narrativas do chefe do Kremlin.
Diante da decisão dos EUA, junto com outros 42 países, de fornecer armas pesadas à Ucrânia, o ministro do Exterior russo, Sergei Lavrov, passou a acusar a Otan de promover uma guerra por procuração contra a Rússia. Os pacifistas de araque repetem, sílaba por sílaba, as cínicas sentenças de Lavrov. De fato, ignoram a Carta da ONU, que condena a guerra de conquista e avaliza o direito à autodefesa coletiva –ou seja, o direito de nações não beligerantes de contribuir para o esforço de guerra de um país invadido.
Na Ucrânia, mais que o destino de uma nação soberana, joga-se o futuro da ordem mundial edificada em 1945 pelas potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, inclusive a URSS. Um triunfo em terras ucranianas impulsionaria Putin a prosseguir sua escalada de guerras imperiais na Moldávia e nos países bálticos, sob o álibi de proteger os "russos do exterior". Segundo a lógica de Boff, em nome da paz, cada uma dessas nações deveria desistir da soberania e de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas. O pacifismo do nosso Shaw, como o do Shaw original, é propaganda de guerra.
Demétrio Magnoli - Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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