domingo, 31 de outubro de 2021

A FOME

José Sarney, OS DIVERGENTES

As imagens têm se sucedido Brasil afora: as pessoas catando lixo e descartes de comida em busca de superar o drama terrível da fome. Quando isso acontece é sinal de que atingimos uma linha de alerta para a qual é necessária a mobilização de toda a sociedade.

O problema da fome é dos mais antigos da Humanidade. Foi certamente em busca de novas fontes de alimento que os primeiros homens se espalharam da África para o resto do mundo — tinham que acompanhar as mudanças climáticas de então, mas estamos falando de processos que levavam milhares de anos.

A força do Egito e de Roma estava nas grandes reservas de grãos. Os egípcios tinham as cheias do Nilo como sinal de que suas margens garantiriam mais ou menos trigo. Havia até os nilômetros, o principal o de Elefantina. Eram eles que indicavam o que os faraós distribuiriam ou não de alimentos. No caso de Roma eram as grandes colônias da Magna Grécia e África as principais fontes, mas havia o controle da produção em grandes armazéns para que a distribuição do grão — para o panis — garantisse a tranquilidade da plebe e do proletariado. Todos os grandes impérios tinham, de uma forma ou outra, suas reservas. Nem sempre elas funcionaram.

Hoje a FAO estima que haja no mundo 600 mil pessoas sem comer e 41 milhões com fome. A História conta mais de quarenta ocasiões em que o número de mortos pela fome foi de mais de um milhão de pessoas, e a China tem os tristes recordes de ter perdido mais de 40 milhões no começo do século XIX e de 55 milhões no fim dos anos 1950.

O Brasil sempre teve o problema. De quando em vez as grandes secas traziam, sobretudo ao agreste nordestino, grandes calamidades, mas não vivíamos a época da mídia em tempo real mostrando a morte. As imagens que ficavam eram as dos retirantes, como meu avô Assuéro, que veio da Paraíba em busca de terra para plantar e felizmente a encontrou aqui no Maranhão.

Eu tive sempre consciência do problema que era a fome que não mata de vez, mas aos poucos. Por isso mesmo, quando Presidente da República, dei grande importância aos programas de apoio alimentar, o principal deles o do leite para as crianças. Mais tarde dei o apoio possível ao José Graziano, quando fez o Programa Fome Zero, durante o governo Lula. Este programa, mais o Bolsa Família, tiveram um enorme sucesso, e o fantasma da fome parecia afastado do Brasil.

Infelizmente ele volta agora. Nada é mais importante do que combater a extrema desigualdade que a causa. Quem tem fome não tem nada mais, perdeu tudo: emprego, casa, dignidade humana.

Talvez mais que as imagens das pessoas catando lixo me chocou a notícia de que houve recurso contra a absolvição de pessoas que haviam sido presas pegando comida descartada nos fundos de um supermercado.

O Brasil ainda é um país rico. Esse egoísmo é inaceitável. É a sociedade como um todo que tem que se mobilizar e dar de comer a quem tem fome.

José Sarney. Ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras

Imagem : A fome, exposta na pintura de Cândito Portinari, "Os Retirantes"

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ZOMBIE APOCALIPSE NOS TRÊS PODERES

Freddy Freitas, OS DIVERGENTES

Jesus, Maria e José. É “halloween” no sertão nordestino, o que é reconfortante, porque a vibração “pré-apocalíptica” acontecendo na política brasileira pode pelo menos ser rotulada como natural.

Alguns escrevinhadores estão lutando especificamente para chegar à analogia perfeita para explicar como de outra forma os conservadores tradicionais se transformaram em apologistas de Jair Bolsonaro e comparsas.

Cidadãos do bem vivem com medo constante de encontrar o ditador Emílio Garrastazu Médici, o coronel Carlos Brilhante Ustra ou Dan Mitrione e eles começarão a discursar que Jair Bolsonaro é uma pessoa séria porque ele está tocando nisso ou ele está disposto a dizer isso. É possível vislumbrar os milhões de cachorros abandonados, que vagam pelas ruas do ensolarado Brasil, de repente latindo para eles incontrolavelmente.

Cientistas políticos americanos, principalmente os rotulados de “Brazilianists”, tiveram esse mesmo sentimento nas últimas semanas, quando história após história mostrou como alguns dos mais respeitados indivíduos conservadores, instituições e meios foram infectados ou substituídos por duplicatas alienígenas. Na verdade, isso não aconteceu da noite para o dia. Mas é impossível escapar da conclusão noturna de que a destruição em câmera lenta da frágil democracia brasileira está agora quase completa.

Nos capítulos anteriores, estávamos assistindo ao Brasil lentamente se transformar de um país emergente para um país de corruptos e lunáticos, e a mutação foi executada com o aval de membros do legislativo e judiciário que eram, ostensivamente, encarregados de vetar, recrutar e apoiar os funcionários públicos mais qualificados e elegíveis.

Enquanto isso, na coroa americana, o respeitado “The Wall Street Journal” deu espaço na semana passada para o padrinho e mentor de Bolsonaro, Donald Trump, ele mesmo, para argumentar em suas páginas que “na verdade a eleição foi fraudada”.

O pesadelo é que o marido de Michelle seguirá a mesma cartilha de Trump.

A vitória do candidato petista, Luiz Inácio Lula da Silva ou a reeleição de Bolsonaro transtornará a Praça dos Três Poderes num campo de batalha.

Agora, muitas pessoas dirão que filmes de terror apresentam a metáfora menos assustadora. Não há algo mais atemorizante em ver a democracia brasileira se esvair enquanto Bolsonaro transforma pouco a pouco as instituições democráticas em “Três Poderes Zombie” ou clone alienígena.

O episódio de que essa modificação ainda está acontecendo depois que o líder do terror mundial (neste caso, Trump) foi ostensivamente desbaratado só serve para robustecer o tom do gênero sobre o vilão reanimando ou sendo ressuscitado.

Enquanto isso, os países aliados continuam assistir antigos coligados ficarem irreconhecíveis. Em algum momento, não haverá mais brasileiros normais, e o incauto cidadão se encontrará em uma mina abandonada gritando com motoristas que passarão: “Eles já estão aqui! Você será o próximo! Você será o próximo!

Faça o que fizer, não durma. Eles te pegarão no seu sono profundo.

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FEMINISMO SEM DOGMAS

Hélio Schwartsman, Folha de S.Paulo

Gostei de "The Right to Sex" (o direito ao sexo), da filósofa Amia Srinivasan. Ela consegue ao mesmo tempo abraçar posições feministas e desenvolver uma reflexão honesta e não dogmática sobre o movimento, não raro expondo contradições que os grupos mais interessados em vencer batalhas do que em promover o bom debate prefeririam esconder. Melhor ainda, a autora consegue manter-se antiautoritária sem deixar de problematizar o que podemos chamar de "laissez-faire" sexual. Concordo com algumas de suas conclusões e discordo de várias outras, mas não há como não apreciar a clareza e a profundidade de seus argumentos.

Meu plano era fazer observações sobre "o direito ao sexo", nome do ensaio que dá título ao livro, mas como o João Pereira Coutinho foi mais rápido que eu, passo a outra questão polêmica: é correto universidades proibirem professores de relacionar-se sexualmente com estudantes? Fugindo um pouco a seu antiautoritarismo, Srinivasan pensa que esse é um caso em que o consentimento das partes não basta para tornar a relação ética. Mesmo que ambos desejem o sexo, quando ele se concretiza o princípio pedagógico, que deveria orientar as interações entre professores e alunos, é subvertido, e a tarefa de ensinar fica prejudicada, se não interditada. A analogia aqui é com o psicanalista que se envolve romanticamente com o analisando.

De novo, é difícil rejeitar os argumentos da autora, mas, se professor e estudante estiverem ambos dispostos a trocar a relação pedagógica pela sexual, por que não poderiam fazê-lo? Não estamos falando aqui de desistir do magistério, no caso do primeiro, ou da educação universitária, no do segundo, mas de abrir mão de um aluno entre muitos e de uma disciplina entre várias. Não consigo abandonar a ideia de que, ao fim e ao cabo, é só o consentimento que deve dar as cartas. Entre a burocracia universitária e o amor, fico com o amor.

Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman de 31.out.2021 - Annette Schwartsman

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JOGO BRUTO NO PSDB

Luiz Carlos Azedo, Nas Entrelinhas, Correio Braziliense

A Executiva Nacional do PSDB decidiu, ontem, desconsiderar os votos de 92 prefeitos e vices de São Paulo recentemente filiados à legenda nas prévias que vão escolher o candidato do PSDB à Presidência da República. Partidários do governador gaúcho Eduardo Leite contestaram as filiações feitas pelo governador paulista João Doria, no rastro da entrada do vice Rodrigo Garcia, que deixou o DEM para ser o candidato tucano ao Palácio dos Bandeirantes.

A Executiva confirmou decisão do presidente da legenda, Bruno Araújo (PE), que havia acolhido denúncia de que o diretório de São Paulo havia alterado a data das filiações para que os prefeitos e vice aliados de Doria participassem das prévias. O ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio, que também concorre às prévias, apoiou a decisão da Executiva. O diretório estadual do PSDB em São Paulo negou as irregularidades. A denúncia fora apresentada pelos diretórios de Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará e Minas Gerais. Todos já declaram apoio a Leite.

A decisão acirra ainda mais a disputa no ninho tucano, que virou um jogo bruto nos bastidores e deve deixar muitas sequelas. Pelas regras das prévias, apenas filiados até o dia 31 de maio podem votar. De fato houve “filiação em bloco” em São Paulo após a data limite, mas as adesões refletem inequivocamente o crescimento da legenda, em razão da entrada de Garcia no PSDB. Partidários de Doria alegam que as filiações foram anunciadas após o prazo em razão do falecimento do então prefeito de São Paulo Bruno Covas, cujo luto provocou 60 dias de interrupção de atividades partidárias.

Comum nos partidos Democrata e Republicano dos Estados Unidos, as prévias do PSDB são uma inovação decorrente da disputa instalada na cúpula tucana pelo controle da legenda, desde as últimas eleições, principalmente entre o governador João Doria e o deputado Aécio Neves, ex-governador de Minas. Doria chegou a propor, sem sucesso, a expulsão do político mineiro. Entretanto, em dificuldades para alavancar sua candidatura eleitoralmente, confinado em São Paulo por causa da pandemia e com sua liderança muito confrontada por Aécio, o governador de São Paulo acabou desafiado por outras lideranças, como o senador Tasso Jereissati, que desistiu da candidatura, e o governador Eduardo Leite, que cresceu muito junto aos setores descontentes.

As prévias

As prévias da legenda, desde sua convocação, são polêmicas. Doria queria uma espécie de voto direto, secreto e universal entre os filiados, o que daria enorme vantagem ao diretório de São Paulo, o berço da legenda e sua fortaleza até hoje, mas a cúpula tucana decidiu ponderar a relação entre filiados e mandatários. Serão quatro grupos de votantes, todos com peso unitário de 25% do total de votos válidos: (1) filiados, (2) prefeitos e vice-prefeitos, (3) vereadores, deputados estaduais e distritais (deputados representam 50% do peso do grupo, e vereadores, os outros 50%); e (4) governadores, vice-governadores, ex-presidentes e o atual presidente da Comissão Executiva Nacional do PSDB, senadores e deputados federais. Mandatários poderão votarão presencialmente, em Brasília, em urnas eletrônicas; vereadores e filiados votarão virtualmente, por aplicativo.

A disputa no ninho tucano virou um jogo de xadrez, com resultado imprevisível. A exclusão dos 92 prefeitos e vice prefeitos pode, sim, alterar o resultado final. Eduardo Leite já está sendo apontado como favorito pela maioria dos líderes históricos do PSDB. Qualquer que seja o resultado das prévias, a possibilidade de um racha no PSDB é muito grande. O governador de São Paulo movimenta-se como um candidato sem retorno ao Palácio dos Bandeirantes, pelas alianças que teceu em torno de Rodrigo Garcia. Se perder, sua linha de recuo para concorrer à reeleição é muito estreita, embora exista. No campo de Eduardo Leite, a pré-disposição para cristianizar Doria também é grande, principalmente em Minas Gerais, na Bahia e no Ceará.

Quem quer que seja o vencedor das prévias, internamente, terá que fazer um esforço muito grande para acomodar os descontentes, principalmente em nível regional; em alguns casos, isso será impossível. Externamente, o ganhador terá que fazer um movimento muito robusto para ampliar suas alianças e criar um fato político novo, o que não é fácil, haja vista que os possíveis aliados estão lançando seus próprios candidatos e nenhum dos tucanos, até agora, decolou nas pesquisas.

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A IGNORÂNCIA SEM LIMITES

Carlos José Marques, ISTOÉ

Por que estamos sempre às voltas com discussões débeis? Resposta simples: porque o mandatário, que comanda esse País diretamente da cadeira do Planalto (de maneira infeliz), é dado a fazer da ignorância a profissão de fé. Uma arma para o seu desgoverno. Impossível listar tantas ignomínias geradas por esse capitão. Mas passa de qualquer limite do razoável o negacionismo atávico que insiste em promover contra a imunização. Bolsonaro já virou piada mundial, motivo de chacota, mesmo entre líderes globais e veículos de comunicação internacionais, quando insinuou que os vacinados poderiam virar jacaré. A aberração era, por si só, tão grotesca que foi encarada com desprezo. 

Tida como pitoresca, risível e digna de brincadeiras. Mas agora ele subiu um patamar, o da demência mesmo, com ilações absurdas sobre os efeitos clínicos colaterais, capazes de gerar dúvidas na população menos informada, insinuando serem as vacinas contra a Covid – que, aliás, ele nem tomou (ou diz que não) – passíveis de provocar a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (a temida AIDS). Como foi capaz de proferir tamanho despautério, distorcendo, mais uma vez, dados e veiculando mentiras tão graves? Vindo de quem veio, não há grandes surpresas. Mas o mandatário não pode ser encarado simplesmente como um mero moleque inconsequente. Não na posição que ocupa. 

Ele tem de ser contido. Aquele que debocha da vida dos semelhantes e conspira para o avanço da doença, por ações e omissões, estará sempre – pode acreditar! – trabalhando em causas inomináveis como essa, e passou da hora de as instituições lhe aplicarem um corretivo, dando um basta a tanta insensatez. As redes sociais independentes tomaram as próprias medidas. Facebook, Instagram e YouTube tiraram do ar o vídeo alegórico no qual ele profanava a imunização vinculando-a a AIDS. Mas não é o suficiente. Bolsonaro, o delinquente psicopata que vive a levantar calúnias contra a Ciência, converteu-se no maestro brasileiro das fake news e ancora nelas sua política de governo. 

Como um País pode suportar tanto obscurantismo? É hediondo imaginar até onde podem ir as suas pretensões. Ele deseja, por exemplo, transformar o Brasil em um antro das mentiras onde as pessoas, imersas nessa realidade paralela, sejam manipuladas ao seu bel prazer para a concretização do objetivo maior de instaurar um regime autocrático no qual comande absoluto. Com a torneira de asneiras que abre rotineiramente para desviar o foco dos esquemas arquitetados rumo ao aparelhamento do poder há um método de gestão milimetricamente calculado. Bolsonaro quer abolir o conhecimento do mapa nacional. Não há dúvida. Mergulhar o País nas trevas da imbecilidade. Nesse sentido desmontou e revirou de cabeça para baixo o sistema educacional. Implodiu com a Cultura. 

Almeja censurar livros que não sigam a sua cartilha de retrocessos. Ataca célebres docentes, a exemplo do professor Paulo Freire, reconhecido como o patrono da Educação e considerado o brasileiro com o maior número de títulos de Doutor Honoris Causa do mundo (com 35 honrarias universitárias), enquanto saúda notórios torturadores, que vilipendiavam o pensamento, como o general dos porões da ditadura, Carlos Brilhante Ustra. O fundamentalismo tacanho e alienador é a base da estratégia bolsonarista, martelado como instrumento de controle. Ao afrontar, mais uma vez, o sistema vacinal, Bolsonaro tenta ridicularizar os esforços da medicina, que tanto combateu. Como sempre, ele precisa se mostrar senhor das narrativas.

Com a sua falsa e caricata live, onde fazia a associação das vacinas com o HIV, o presidente colocou em dúvida, efetivamente, o próprio PNI tocado pela pasta da Saúde. Como profeta do deboche que é, não parece se importar com os efeitos colaterais ou consequências dos seus atos, mesmo diante de uma tragédia que já ceifou mais de 600 mil vidas. Na rede de ódio que o cerca, por incrível que pareça, seguidores tentaram dar base e argumentos a sua tese, denotando até onde podem ir os alienados fanáticos dessa seita. Na prática, não estamos falando de liberdade de expressão, muito menos de pontos de vista discordantes. A ilação presidencial é a mais pura e cristalina exibição de um crime contra a saúde pública.

Fruto decorrente da ignorância sem limites. Não há mais como aceitar um comportamento tão nefasto. A comunicação do presidente sofre de um vício de origem chamado mentira. No “cercadinho”, onde é aplaudido pelos incautos, pode até fazer sucesso. Mas a vergonha que promove do Brasil a nível mundial, com tantas tolices, é incalculável. No estágio raso do método de emburrecimento coletivo que adotou, a escolaridade de cada um logo, logo, será desprezível por aqui. Ainda bem que existe esperança da reviravolta. Os dias do capitão no controle podem estar contados e, cedo ou tarde, a sensatez prevalecerá novamente. Temos de acreditar.

(Crédito: Montagem sobre foto time e Jorge William)

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A ANEDOTA DA VENDA DA PETROBRAS

Editorial O Estado de S.Paulo

O preço da gasolina ultrapassou a marca de R$ 7 por litro em seis Estados na última semana e, a julgar pelo novo aumento anunciado pela Petrobras no dia 25, logo essa será a realidade em todo o País. Múltiplos fatores explicam esse comportamento, mas, até poucas semanas atrás, os culpados, para o presidente Jair Bolsonaro, eram os governadores. 

Agora, Bolsonaro assumiu um novo discurso para se livrar da responsabilidade pelos preços recordes dos combustíveis: é a própria Petrobras que, segundo diz, lucra muito. Ato contínuo, resmunga que gostaria de privatizar a empresa – sem explicar, contudo, como uma empresa inteiramente privada praticaria preços mais baixos.

Há certamente inúmeras razões para apoiar a privatização da companhia, a começar pelo fato, óbvio, de que um Estado incapaz de fornecer saúde e educação de qualidade para a maioria dos brasileiros não pode gastar energia e recursos escassos explorando petróleo, atividade que pode ser feita pela iniciativa privada. 

Ademais, a presença de mais empresas no mercado certamente contribuiria, no médio prazo, para promover preços mais baixos. Por anos, durante os governos petistas, a estatal atuou para impedir a atividade de importadores, com práticas predatórias que inviabilizavam a concorrência. Em 2019, a empresa se comprometeu a vender 8 de suas 16 refinarias até o fim deste ano, mas apenas 2 operações se concretizaram.

A realidade dos fatos, no entanto, não é problema para o governo Bolsonaro. Pelo contrário. O governo diz agora que tem um projeto de lei, que até agora ninguém viu, para privatizar a Petrobras. A orquestração começou no dia 13 de outubro, quando o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), “lançou” a pauta. “O que existe é que há uma política que tem que ser revista, porque hoje a Petrobras não é pública nem privada completamente, e hoje só escolhe os melhores caminhos para performar recursos e para distribuir dividendos”, afirmou.

Para quem não acredita em coincidências, no dia seguinte, 14 de outubro, Bolsonaro reverberou a ideia. Não porque acredite ou defenda privatizações, mas porque seria uma forma de se eximir de responsabilidades – como sempre faz. “É muito fácil, ‘aumentou a gasolina, culpa do Bolsonaro’. Já tenho vontade de privatizar a Petrobras”, disse. 

Faltava a manifestação do ministro da Economia, Paulo Guedes, o mesmo que prometeu arrecadar R$ 1 trilhão em privatizações e que, até agora, não apenas não privatizou nenhuma estatal sob controle da União, como criou outras duas. Pelo argumento que usou, nem parece que realmente quer vendê-la. “Daqui a 10 ou 20 anos, o mundo inteiro migra para hidrogênio e energia nuclear, abandonando o combustível fóssil. A Petrobras vai valer zero daqui a 30 anos”, disse.

Desta vez, nem o mercado comprou a promessa. A privatização da Petrobras precisaria de aval do Congresso, mas, a um ano das eleições, isso é um sonho distante, cortina de fumaça e realidade inviável, avaliam analistas. Se for para seguir o caminho da capitalização da Eletrobras, que vai custar R$ 84 bilhões aos consumidores em razão dos jabutis incluídos pelos parlamentares no texto final, é melhor não fazer nada mesmo.

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NÃO AO PRECONCEITO

Editorial Folha de S.Paulo

Em julgamento concluído na última quinta-feira (28), o Supremo Tribunal Federal decidiu que a injúria racial é uma forma de racismo. Ofensas desse tipo podem ser punidas a qualquer momento, pois constituem crimes imprescritíveis, conforme a Constituição.

O caso entrou na pauta do STF há um ano, na esteira do assassinato de um homem negro por seguranças brancos de um supermercado em Porto Alegre, mas a votação foi suspensa após pedido de vista de um dos juízes e só agora foi retomada.

Os magistrados analisaram a situação de uma mulher idosa condenada em 2013 por injúria racial depois de ter ofendido a frentista de um posto de gasolina de Brasília, chamando-a de "negrinha nojenta, ignorante e atrevida".

A defesa pedia a extinção da pena, alegando que o crime havia prescrito em razão da idade da mulher. Mas o STF rejeitou o recurso, reafirmando decisão tomada anteriormente pelo Superior Tribunal de Justiça no mesmo caso.

Os ministros precisaram decidir se a injúria racial (uma ofensa direcionada a um indivíduo, por exemplo, em razão da cor da pele), deveria ou não ser considerada crime de racismo (um insulto dirigido a determinado grupo social).

Prevaleceu o voto do relator, Edson Fachin, para quem a injúria racial, na medida que emprega elementos relacionados a raça, cor, etnia, religião ou origem para ofender alguém, constitui uma forma de ato racista, pois viola a honra intrínseca à dignidade humana.

A decisão permitirá que casos similares tenham o mesmo tratamento em outras instâncias do Judiciário, onde muitas vezes o aspecto racial das ofensas é desconsiderado como se elas não passassem de piadas ou palavras soltas em discussões acaloradas sem má intenção.

Fora dos tribunais, outro caso de intolerância, este de natureza sexual, ganhou holofotes na semana passada. Numa decisão tomada após pressão de patrocinadores, o Minas Tênis Clube demitiu o jogador de vôlei Maurício Souza por causa de comentários homofóbicos proferidos numa rede social.

Por exemplar que tenha sido, a punição a Souza, sozinha, não será capaz de extirpar a homofobia do esporte. Da mesma forma, não será por meio do direito penal que o racismo chegará ao fim no Brasil. Mas os dois episódios mostram que, felizmente, os limites impostos à intolerância e ao preconceito tornam-se cada vez mais estreitos na sociedade contemporânea.

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TSE: A JUSTIÇA FALHA PORQUE TARDA

Helena Chagas, OS DIVERGENTES

De onde menos se espera é que não sai nada mesmo, e não é supresa nenhuma para ninguém a decisão do TSE de não cassar a chapa Bolsonaro-Mourão pelos disparos ilegais de mensagens e fake news durante a campanha de 2018. Não que o tribunal tenha isentado o presidente da República da prática desses atos, que foram praticados e são claramente crimes eleitorais.

Mas a alegação de que não há provas sobre seu grau de influência no resultado da eleição, que pode ser até verdadeira, esconde a questão principal: três anos depois, seria razoável cassar uma chapa que já tomou posse e governou até agora? Seria até cômico se não fosse trágico. Uma vez cassados Bolsonaro e Mourão, quem se sentaria na cadeira?  Fernando Haddad, o segundo colocado, para governar por um ano em meio ao caos deixado por Bolsonaro?

Ou seria declarada a vacância da presidência da República e realizada nova eleição, que a Constituição manda ser indireta por ocorrer nos dois últimos anos do mandato em curso? Já pensou o bafafá? Quem elege é o Congresso. Arriscamos ver ali naquele gabinete do Planalto personagens do quilate de um Arthur Lira ou de um Ciro Nogueira. O Centrão governaria, finalmente, sem intermediários…

Mas o TSE não vai fazer isso. Sabe que na origem dessa situação absurda, que certamente desembocaria em crise política, está sua própria leniência, que se estende às cortes supremas de modo geral. Levar três anos para julgar se uma chapa cometeu ilegalidades ou não na eleição inviabiliza o próprio julgamento. Qualquer condenação, ainda que justíssima do ponto de vista criminal, vai cheirar a tapetão a um ano das eleições em que o cabeça da chapa vai concorrer novamente.

O TSE agora tenta limpar a própria barra com avisos e advertências sobre a prática desse tipo de delito nas próximas eleições, sugerindo que será muito mis rigoroso durante a campanha. É muito bom que seja, mas nada anulará o fato de que, quem sabe, tenhamos sido governados por integrantes de uma chapa que cometeram crimes e não deveriam sequer ter tomado posse. Leite derramado.

O que nos leva a concluir que, no atual cenário institucional, precisamos mudar o ditado de que a Justiça tarda, mas não falha, para aproximá-lo de nossa triste realidade. Por aqui, a Justiça falha porque tarda.

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O BURRO E O CONFUSO

Editorial Folha de S.Paulo

Até quem já se acostumou com a incontinência verbal do governo Jair Bolsonaro se espantou ao saber que o ministro da Economia, Paulo Guedes, chamou de burro o da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, numa reunião com deputados.

A pauta do encontro era a retirada de R$ 600 milhões do orçamento da pasta do astronauta para este ano. Os parlamentares foram a Guedes apelar para que reconstituísse a verba subtraída e ouviram então o ministro criticar o colega.

Pontes é um ministro decorativo, que mais parece orbitar a pasta sem nunca ter nela aterrissado para liderar um setor crucial para o desenvolvimento, sobretudo num governo dado à ignorância.

Em raro rompante na defesa da pesquisa, o ministro disse no início do mês que pensara em se demitir, chateado com a perda dos recursos, mas que a inclinação tinha passado. A ameaça implícita teve parca repercussão. Ainda assim, foi o que bastou para deixar Guedes irritado.

Pontes é irrelevante, mas a comunidade científica tem razão para reclamar. Em 2020, o investimento em ciência e tecnologia foi o menor em 12 anos, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério da Economia.

Em 2013, no pico das verbas do setor, investiram-se R$ 27 bilhões. Em 2020, a cifra retrocedeu para R$ 17 bilhões —isso num ano de pandemia, em que seriam de esperar vultosos dispêndios na pesquisa de vacinas e outras iniciativas.

Pontes, entretanto, preferiu ocupar-se com terrenos na Lua, remédios ineficazes contra a Covid-19 e um spray à base de nióbio para limpar as mãos e combater o coronavírus, que, como todos sabem, se dissemina principalmente pelo ar.

Em agosto, Guedes enviou ao Congresso projeto de lei abrindo crédito suplementar de R$ 690 milhões para o combalido ministério do astronauta, na mesma época em que até a plataforma de currículos acadêmicos Lattes saiu do ar por falta de recursos para manutenção.

Dois meses depois, Economia e Casa Civil decidiram realocar R$ 600 milhões da verba para outras pastas. Segundo Guedes, a medida foi tomada porque Pontes é incompetente e não consegue gastar nem o que seu ministério recebe.

O ministro atacado se defendeu e disse que o colega da Economia talvez esteja confuso, dada a dificuldade para fechar as contas do Orçamento de 2022. Na ausência de diálogo, a investigação científica e tecnológica perdeu mais uma.

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sábado, 30 de outubro de 2021

O PARAÍSO FECAL

Weiller Diniz, OS DIVERGENTES

O canteiro central da demolição institucional, política e administrativa do bolsonarismo é cercado pelos tapumes malcheirosos da baixíssima cognição, da estupidez e da indigência lexical. Pela imperícia em compreender a complexidade do Brasil, pela inapetência ao trabalho e a incapacidade de se expressar, a maioria dos peões martelam parábolas escatológicas com uma assiduidade infecta.

“Merda”, utilizada como exortação nas coxias teatrais, é um dos vocábulos prediletos nas fossas bolsonaristas. O capitão, além das obsessivas analogias anais, é um chapiscador de agressões e palavrões. Quando não está falando “merda” está obrando uma titica qualquer. “Cocô dia sim, dia não”, ensinou o mestre do desarranjo.

A Globo – imprensa de maneira geral – também é “merda”. Dia desses quase morreu por uma obstrução intestinal. Olavo de Carvalho, guru da cloaca, ameaçou derrubar a “merda de governo” e Romário, justificando o apelido de “baixinho”, falou que o país era uma “merda” antes de Bolsonaro. As palavras e as obras deles são coletadas no mesmo esgoto da deterioração.

O capitão Bolsonaro está rodeado de capatazes incapazes, embora devotos das chulices. Paulo Guedes, outrora estrela do lixão e essência aromática da fedentina, incorporou os coliformes nauseabundos ao vocabulário. Ao defender a natimorta CPMF recendeu os doutrinamentos da latrina: “Você acha que sou um homem de desistir fácil das coisas? De forma alguma. Porque você acha que estamos pensando nessa coisa de merda”. Depois incensou o miasma no debate sobre a reforma tributária: “Temos que desonerar o custo do trabalho. Enquanto as pessoas não vierem com uma solução melhor, eu prefiro esse imposto de merda”, adubou o ministro em evento realizado em outubro de 2020.

Uma flatulência da despersonalização. Ele era o chefe do encanamento econômico e não outras “pessoas”, uma terceirização imprecisa, ilógica. Outrora síndico perfumado do condomínio xexelento, Guedes está em estado de putrefação, recendendo aos cadáveres insepultos. Só ele não ouviu a descarga da suíte econômica e ainda boia por lá.

A casa começou a cair para ele muito antes. A economia demanda planejamento, cálculo estrutural, fundações sólidas, alicerces seguros para evitar rachaduras e, sobretudo, rejeita remendos e improvisos. O mestre de obra Paulo Guedes, que sempre promete entregar a obra na semana que vem, fracassou na empreitada e não entregou obra alguma. Depois de quase 3 anos espanando todos os cômodos da economia, as gambiarras do posto Ipiranga provocaram um curto-circuito fatal, transformando a centelha em uma explosão de alta octanagem.

A inflação voltou ameaçadora e está perto dos 2 dígitos, a fome ressurgiu devastadora, os investidores evaporaram, fábricas fecharam, a dívida pública cresceu, o PIB tem desempenhos pífios, o desemprego atinge mais de 30 milhões de pais e mães de família, a renda do brasileiro evaporou, o real foi uma das moedas que mais se desvalorizou no planeta e o Brasil levou um tombo vertiginoso no ranking das economias mundiais, caindo do telhado para o calabouço. Nenhuma das projeções desenhadas por Guedes saiu da prancheta (déficit zero, trilhões de privatizações, empregos etc.).

O novo reboco fiscal, que ameaça botar a casa abaixo e tem a solidez das construções milicianas no Rio de Janeiro, foi lavrado eufemisticamente como “licença para gastar”. Exatamente como a “licença para matar” do ex-ministro Sérgio Moro, arquiteto responsável pela implosão da política que, agora, cobra o preço na economia. O bacanal fiscal, gastança irresponsável dos recursos públicos, tem frágeis vigas eleitoreiras e desenhos populistas muito toscos. É dar com uma mão e tirar com a outra.

Furar o teto resultará no aumento das contas públicas, maior elevação dos juros, explosão inflacionária, desvalorização do real e no fosso profundo da recessão. No lado externo da obra adensará a perda da credibilidade, a desconfiança e a imprevisibilidade, ralo devastador para qualquer economia do planeta. Rastejando no porão das intenções de votos e amargando rejeições superlativas no topo da edificação, o despreparado capitão quer ascender no elevador da popularidade pelo botão da irresponsabilidade.

Com a implosão liberal, Paulo Guedes vem assistindo deserções em seu barracão. 15 abandonaram a empreitada ao longo dos últimos meses. Joaquim Levy tomou uma denúncia vazia por causa da nomeação do advogado Marcos Barbosa Pinto, que trabalhou em governos do PT. Levy foi levado a síndico do BNDES por indicação de Paulo Guedes. Os dois têm passagem pela Universidade de Chicago, considerada a principal ‘resort’ do pensamento liberal.

O ex-secretário Marcos Cintra acumulou desgastes no governo ao sugerir a tributação de igrejas e a criação de outros impostos, como a recriação do tributo sobre transações financeiras, nos moldes da extinta CPMF. Mansueto Almeida que integrava a equipe econômica desde 2016, na gestão Temer, e seguiu na administração Bolsonaro, também deu baixa na carteira. Ele comandava o Tesouro. Salim Mattar, insatisfeito com o ritmo das vendas de patrimônios do Estado também saiu. Roberto Castelo Branco, também indicado por Guedes para Petrobrás, foi despejado por Bolsonaro em mais uma martelada populista.

Assim que o calote nos precatórios foi cimentado para escorar o aumento do Bolsa Família, marketing indissociável do PT, mais quatro capatazes de Paulo Guedes entregaram o capacete e abandonaram o canteiro da heresia liberal. Foram eles: secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt, a secretária especial-adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araújo.

A debandada fragiliza ainda mais o engenheiro-chefe da economia em ruínas e concreta a frouxidão no alicerce fiscal, que foi severamente criticada por economistas do mesmo aldeamento ideológico de Guedes. Entre eles ex-ministros como Maílson da Nobrega, Henrique Meirelles e Affonso Pastore, ex-presidente do Banco Central. Guedes disparou pregos contra todos eles. O andar de cima, liderado pelo rooftop do mercado financeiro, também detonou o puxadinho eleitoreiro de Paulo Guedes.

O aterro populista visa a impulsionar o nome do capitão na região Nordeste, condomínio quase privativo do candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Fernando Haddad, em 2018, obteve 69,7% dos votos (7 em cada 10 votos) contra 30,3% de Bolsonaro, que tem hábito de se referir aos nordestinos pejorativamente chamando-os de “paraíbas”. Em 2020, após 5 parcelas de auxílio emergencial de R$ 600 a mais de 66 milhões de pessoas – dinheiro na veia – a avaliação positiva do governo oscilou modestamente por lá.

O acréscimo de ótimo e bom em relação aos 30% da eleição rendeu poucos andares. Entre as 5 capitais de maior impopularidade à época, 4 estavam no Nordeste: Salvador, São Luiz, Teresina e Fortaleza. De acordo com as pesquisas mais recentes, Lula mantém a dianteira na região com muita folga. O DataFolha de julho/2021 registrou 64% para Lula e 16% para Bolsonaro no Nordeste.

Além de rabiscar e assinar uma planta eleitoreira incerta e precária, o fura teto Guedes desceu vários andares no andaime do poder e virou vidraceiro do centrão, limpando as janelas e levando pedradas em nome de quem, verdadeiramente, manda na economia. Nos últimos meses o centrão controla o orçamento público, que foi privatizado e embaçado, sem nenhuma transparência. Mais do que conservar os recursos para as emendas parlamentares, os governistas no Parlamento terão um colchão adicional de mais R$ 80 bilhões para torrar nas eleições do ano que vem, 40 vezes o valor do Fundo Eleitoral.

Estima-se um rombo superior a R$ 100 bilhões, sendo que apenas R$ 49 bilhões são destinados ao auxílio. Não é uma simples pedalada, mas uma motociata fiscal poluente que irá estourar no futuro. Quem sempre paga a conta dessas farras é o povo, geralmente os mais pobres. O centrão estará sempre hospedado sob qualquer teto governamental, desde que haja dinheiro a rodo, independente da cor vermelha das paredes ou das fachadas verde e amarelas.

Na atual construção ainda foi edificada uma anomalia para blindar o governo no Congresso contra pedidos de impeachment. Ergueu-se um orçamento paralelo de R$ 3 bilhões em emendas para aplainar o centrão. Boa parte dessa alvenaria é destinada à compra de tratores e equipamentos agrícolas por preços até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo. O flagrante do “tratoraço”, sem controle, foi fotografado num conjunto de 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados para indicar como eles preferiam usar os recursos.

Os ofícios, revelados pelo jornal “Estado de São Paulo”, mostram que o esquema muda o eixo das leis orçamentárias. São os ministros que deveriam definir onde aplicar os recursos e não parlamentares. Esse quarto secreto foi desenhado para dificultar o controle do Tribunal de Contas da União e da sociedade. A distribuição dos valores atende a critérios eleitorais. Só ganha quem apoia o governo. Com as portas arrombadas, a peça orçamentária, antes pública, virou privada.

Paulo Guedes não responderá apenas pelos erros crassos nas maquetes rudimentares da economia. Enquanto o Brasil atola na lama ardente do paraíso fecal, o porteiro do prédio da economia entrega as chaves do cofre e da casa ao centrão. Guedes se ocupa em nutrir seus milhões de dólares na cobertura do paraíso fiscal, nas Ilhas Virgens Britânicas. A cada tremor que racha as estruturas do vulnerável casebre brasileiro, o dólar sobe e a caixa registradora de Guedes acrescenta alguns tijolinhos no patrimônio impermeabilizado lá fora.

O telhado de vidro de Guedes está trincado e há muitos cômodos mal iluminados nesse barraco. Por aqui os escombros da economia são visíveis. A fome ressurgiu, o emprego sumiu, o real diluiu e o Brasil desmilinguiu nessa gestão dos obreiros do caos, da desordem, da morte, da mentira, do golpe e da miséria. Quem perde o telhado ganha as estrelas. No caso de Guedes e do centrão a explosão do teto é um lote escriturado no paraíso celestial.

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SEM LICENÇA

Editorial Folha de S.Paulo

O tumulto econômico causado pela irresponsável proposta do governo para fechar as contas do Orçamento de 2022 abriu uma janela para a busca de alternativas menos danosas ao futuro do país.

Na semana passada, o plano eleitoreiro improvisado pelo presidente Jair Bolsonaro encontrou resistência até mesmo nas fileiras governistas, o que levou os aliados do mandatário no Congresso a adiar a votação da proposta.

Além disso, a ideia casuística de elevar o teto que impõe limite à expansão dos gastos, sancionada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, abriu caminho para que novas demandas por aumentos de despesas surgissem, como era previsível.

A emenda constitucional em debate no Congresso, que muda o teto e adia o pagamento de dívidas com precatórios, cria espaço para dispêndios superiores a R$ 90 bilhões no Orçamento do ano que vem.

A gambiarra permitiria ampliar gastos sociais em R$ 50 bilhões, contemplando 17 milhões de famílias beneficiadas pelo Auxílio Brasil, e atender diversos interesses políticos, de emendas para financiar projetos paroquiais à ampliação dos fundos destinados ao financiamento da próxima campanha eleitoral.

Os aliados de Bolsonaro no centrão, que assumiram as rédeas da política econômica, buscam garantir R$ 16 bilhões às emendas orçamentárias sob seu controle e querem ampliar de R$ 2 bilhões para R$ 5 bilhões os recursos disponíveis para os candidatos que concorrerão às eleições do ano que vem.

Não se pode atender a tais demandas sem esgarçar ainda mais os limites da Constituição, o que só contribuiria para aumentar o pessimismo dos agentes econômicos e causar mais inflação e desemprego.

Se não resta dúvida sobre a necessidade de ampliar o alcance dos programas sociais e oferecer alívio aos que mais sofrem com os efeitos prolongados da pandemia, abrir mão do controle das contas públicas para acolher outros interesses apenas prejudicará os mais pobres.

O governo teve vários meses para conceber uma solução para o fim do auxílio emergencial criado no auge da crise sanitária, mas ficou inerte. Como a confusão no Congresso nos últimos dias mostrou, falta ao Executivo liderança e estratégia.

A disparada dos preços de itens essenciais como alimentos e energia e o desemprego elevado apontam para uma emergência social que justificaria exceções à regra constitucional para viabilizar o pagamento de benefícios aos mais vulneráveis.

Não é o caso dos projetos eleitoreiros que buscam saltar a barreira do teto de gastos. Se o governo quer uma licença para gastar mais, como declarou o ministro da Economia, é necessário definir prioridades e fazer escolhas sem impor custos ainda maiores à sociedade.

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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

MORRE GERALDO BRINDEIRO

Rosanne D'Agostino, g1 — Brasília

O ex-procurador-geral da República Geraldo Brindeiro morreu nesta sexta-feira (29), aos 73 anos. Ele ocupou o cargo de PGR por oito anos nos governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2003. Atualmente, era subprocurador.

A causa da morte foram complicações da Covid, de acordo com o boletim do hospital onde ele estava internado em Brasília.

"Colega de trato gentil e bastante leal, Geraldo Brindeiro foi, dentre outras coisas, responsável pela construção da sede atual da PGR, além de ter promovido diversos concursos de ingresso na carreira, ampliando em muito o MPF", afirmou o presidente da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta, em uma rede social.

Geraldo Brindeiro nasceu no Recife no dia 29 de agosto de 1948. Formou-se em direito pela Faculdade de Direito do Recife em 1970. Fez pós-graduação na Universidade de Brasília (UnB), especializando-se em direito tributário na Constituição Federal e alteração do contrato de trabalho. Também era mestre e doutor em direito pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos.

Foi assessor jurídico do tio, ministro Djaci Falcão, no STF, entre fevereiro de 1971 e março de 1973. Foi professor de direito civil e constitucional da Faculdade de Direito do Distrito Federal. Em 1975, passou a integrar o Ministério Público Federal.

Em 1989, foi promovido a subprocurador geral da República. Em 1995, foi nomeado por Fernando Henrique Cardoso para seu primeiro mandato na PGR, com a missão de despolitizar o órgão.

Notas de pesar

Veja notas de pesar publicadas em homenagem a Brindeiro:

Superior Tribunal de Justiça (STJ)

O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho da Justiça Federal (CJF), ministro Humberto Martins, manifesta, em nome dos ministros do tribunal, profundo pesar pelo falecimento do subprocurador da República Geraldo Brindeiro nesta sexta-feira (29).

“Recebemos com muita tristeza a notícia do falecimento do procurador da República Geraldo Brindeiro, que atuou por tantos anos junto ao STJ e também por oito anos como comandante do Ministério Público. Que Deus possa confortar a família e os amigos neste momento de perda”.

Geraldo Brindeiro foi nomeado em junho de 1995 procurador geral da República pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele foi reconduzido ao cargo três vezes, ficando no posto até 2003. Formado pela faculdade de Direito do Recife, ingressou no Ministério Público em 1975. Ele tinha 73 anos.

Augusto Aras, procurador-geral da República

Perdemos um valoroso colega, um homem que devotou a vida ao Ministério Público. Geraldo Brindeiro foi um incansável defensor da independência funcional, a própria e a dos colegas.

Aras determinou ainda luto oficial de três dias no Ministério Público Federal (MPF).

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SÃO TANTAS HISTÓRIAS

Hoje, 29 de outubro que se comemora o Dia Nacional do Livro, fez-me lembrar de uma história da escritora cearense, Rachel de Queiroz, relatada em sua autobiografia Tantos Anos, escrita por Rachel e sua irmã caçula, Maria Luiza de Queiroz, em 1998.

Rachel de Queiroz, a pioneira cearense – primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, 1977 – conhecida pelas belas histórias contadas em suas obras, o carinho que tinha pelas palavras, seja nas crônicas, nas peças de teatro ou nos romances, ela era uma mulher à frente do seu tempo. Até na politica Rachel de Queiroz enveredou e teve uma vida intensa.
A consagrada carreira de escritora e jornalista, parte dos brasileiros já conhece, mas, na política é desconhecida pela maioria da população brasileira. Rachel se tornou membro do Partido Comunista ao lado de amigos de sua geração, uma turma politizada e ‘comunizada”, como relatou ela na autobiografia Tantos Anos, de 1998. Foi presa duas vezes.
Em 1931, após passar dois meses no Rio de Janeiro – tinha ido receber o Prêmio Graça Aranha, dado a O Quinze – Rachel volta ao Ceará, com credenciais do Partido Comunista, já politizada e com a missão de promover e reorganizar o Bloco Operário e Camponês, movimento político o qual ela tinha participado.
Rachel passou a fazer parte do Partido Comunista, mesmo sem ter feito uma ficha, assinado alguma ata. Aliás, não se podia deixar nenhum rastro de papéis, livros ou qualquer tipo de documento, a polícia era brutal e se pegasse algum vestígio, levava todos para a cadeia: às pessoas e os papéis. Com a chegada de Getúlio Vargas ao Rio, a polícia ficou mais feroz.
Em 1937, com a decretação do Estado Novo de Getúlio Vargas, os livros de Rachel de Queiroz foram proibidos e, num fato marcante, várias de suas obras acabaram queimadas em praça pública em Salvador (BA), junto a livros de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, todos classificados de subversivos.
O desligamento do Partido Comunista aconteceu após ela ver censurado pelo próprio Partido o romance João Miguel. No romance João Miguel, ‘campesino’ bêbado, matava outro ‘campesino’. O aviso: só permitiria a publicação da obra, se Rachel fizesse as modificações apontadas pelo presidente do Partido Comunista. Segundo o Partido, a trama era carregada de preconceitos contra a classe operária.
Jamais se curvou as imposições feitas a sua obra, Rachel de Queiroz não aceitou as tais modificações exigidas pelo Partido Comunista, pegou o original que tinha datilografado e saiu em disparada, como relatado por ela no capítulo O Rompimento, da autobiografia Tantos Anos.
Em sua obra Caminho de Pedras (1937), Rachel trata desse momento político que viveu no Partido Comunista, porque fazer política na década de 20, ser comunista era muito perigoso. A ideia de comunismo era distorcida e alguém que ousasse se apresentar como comunista pagaria um preço alto, até com a própria vida.
Rachel de Queiroz faleceu dormindo em sua rede, em sua casa no Rio de Janeiro, em 4 de novembro de 2003.
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OS POBRES COMO ÁLIBI

Artigo de Fernando Gabeira

Para políticos cujo único objetivo é o poder, é possível ver o País entrar num processo de decadência e não se importar tanto com isso.

Existe um consenso, não unanimidade, é claro, de que o teto de gastos não pode ser rompido. Bolsonaro usou as condições dramáticas da população para estourar os limites de gastos.

A maioria das análises indica que isso pode trazer quebra de confiança dos investidores, aumento de preço dos combustíveis, inflação, enfim. Não vi ninguém condenar uma ajuda aos mais pobres. Os argumentos mais comuns são os de que, feita dessa maneira, ela dá com uma das mãos e tira com a outra, pois a economia vai estagnar, o desemprego vai crescer, e isso com repercussão negativa para todos, principalmente para os mais vulneráveis.

Essa é a discussão mais frequente. Alguns chegam a indicar as famosas emendas de relator, do também famoso orçamento secreto, como a fonte ideal para financiar a nova versão do Bolsa Família. Mas nem os deputados ligados ao governo nem o próprio governo estão dispostos a abrir mão dessas emendas, pois ela são uma das formas de pagamento de Jair Bolsonaro para evitar o impeachment.

Para além dessa discussão, alguns novos temas devem ser incorporados ao debate. O primeiro deles é a perspectiva.

Paulo Guedes comportou-se como um jogador de futebol dando entrevista no fim do primeiro tempo: levamos um gol, mas faremos tudo para empatar e virar este jogo.

Faltou, entretanto, a entrevista com o time adversário, que levou vantagem nos primeiros 45 minutos. De um modo geral, dizem isto: fizemos um gol, mas a partida não está ganha, precisamos fazer mais um ou dois para matar o jogo.

Esta é a lógica que se abre com o ano eleitoral: o teto será rompido sempre que o núcleo político que apoia Bolsonaro achar que sua eleição e a do próprio presidente estão ameaçadas. E, dentro deste contexto, Paulo Guedes será transformado num simples caixa de campanha.

Há um tema que não é propriamente novo, mas parece ignorado pelos que fazem preleções sobre o equilíbrio financeiro e a prosperidade econômica. Para políticos cujo único objetivo é o poder, equilíbrio financeiro não é algo determinante. É possível ver o País entrar num processo de decadência e não se importar tanto com essa variável, desde que a continuidade do poder não seja ameaçada.

Em outras palavras, manter o poder é fundamental, mesmo que seja para administrar a miséria. O bolivarianismo na Venezuela é um exemplo disso: as crises se acentuaram com o tempo, mas eles se agarraram ao governo. Há sempre uma forma de explicar o fracasso econômico, desde que o poder político não seja ameaçado.

Na verdade, seria injusto atribuir essa tendência perversa à grande parte dos políticos. Banqueiros e grandes financistas também se adaptam com facilidade, desde que seus lucros não sejam ameaçados.

Por isso essa discussão toda sobre as perspectivas da economia, essa angústia em torno da possibilidade ou não de o Brasil dar certo, tudo isso passa ao largo do cinismo de alguns setores dominantes.

Para eles, dar certo significa manter o poder e os lucros. O próprio Paulo Guedes passou quase uma década escrevendo artigos críticos sobre a social-democracia. Ao detonar o teto dos gastos, ele declarou que a ajuda aos mais pobres foi uma invenção do liberalismo.

As previsões econômicas para 2022 são ruins, as otimistas preveem um crescimento de 1,5%, algumas já falam que vamos andar para trás.

É neste contexto que se abre o ano eleitoral. Inevitavelmente, apesar de estourar o teto de gastos, Bolsonaro vai se beneficiar da ajuda oficial aos mais pobres. Certamente, já calculou, de um lado, o impacto na economia e, de outro, o impacto nas urnas.

De qualquer maneira, o fator econômico não é o único. Há algo em Bolsonaro que transcende à luta pelo poder, à ambição populista de governar mesmo que o País fracasse.

No momento em que nem todos se vacinaram contra a covid e que o Brasil contrata 300 milhões de doses de vacina para o próximo ano, Bolsonaro propaga mentira de que a vacina pode provocar aids.

Ele não se importa se isso afastará as pessoas da vacina que seu governo comprou, muito menos se haverá mais mortes a partir desta propagação de uma notícia falsa. Isso significa que ele não pode ser classificado apenas como um populista. Há algo de perverso em sua atuação, mistura de ignorância e inconsequência, indesejável em qualquer pessoa, mesmo que tenha um cargo de pouca responsabilidade.

Bolsonaro acaricia o instinto de morte e convida o País a um suicídio coletivo. Não existe nada parecido no mundo. Mesmo no passado, os grandes desastres históricos foram conduzidos por ambições territoriais, doutrinas de superioridade. Bolsonaro, ao contrário, isola alegremente o País e dificilmente vai se comover com a tragédia nacional, enquanto puder comer seu pão com leite condensado e sonhar com um caldo de cana na esquina.

É um caso especial de patologia política que levaremos anos para explicar, sua ascensão e o fascínio que exerce na parcela da população que até hoje ainda o apoia. Certamente, ao cabo dessa tarefa, poderemos dizer que entendemos um pouco mais a loucura brasileira.

Artigo publicado no jornal Estadão em 29/10/2021

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quinta-feira, 28 de outubro de 2021

MANDATO CASSADO

Do g1 PR

Quem é Fernando Francischini, deputado estadual do Paraná cassado por divulgar 'fake news' sobre urnas eletrônicas

Deputado estadual pelo Paraná desde 2019, Fernando Francischini (PSL) teve o mandato cassado nesta quinta-feira (28) pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por propagação de informações falsas sobre a urna eletrônica e o sistema de votação durante as eleições de 2018.

Essa foi a primeira vez que o tribunal tomou decisão relacionada a político que fez ataque às urnas eletrônicas.

Na oportunidade, Francischini foi o deputado estadual mais votado da história do Paraná, com 427.749 votos, ou seja, 7,5% do total, segundo dados do TSE. Com a votação, o parlamentar "puxou" três deputados da mesma chapa com ele, que também devem perder as cadeiras na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) com a cassação.

Com cassação de Francischini, Alep terá 'dança das cadeiras'; veja nomes

Na Assembleia, Francischini atualmente preside a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Em nota, Francischini afirmou que lamenta a decisão. "Um dia triste, mas histórico na luta pelas liberdades individuais. Nós vamos recorrer e reverter essa decisão lá no STF, preservando a vontade de meio milhão de eleitores paranaenses", afirmou.

Carreira política

Antes disso, Fernando Francischini foi deputado federal por dois mandados, de 2011 a 2018.

Neste meio tempo, entre 2014 e 2015, se licenciou do cargo para assumir a Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp) do Paraná, durante a gestão de Beto Richa (PSDB).

Ele era o secretário estadual quando a Polícia Militar (PM) e professores entraram em confronto no Centro Cívico, em Curitiba, durante a votação de um projeto que alterava a previdência dos servidores. Mais de 200 pessoas ficaram feridas, e Francischini deixou o cargo dias depois do caso.

Em 2020, Francischini foi candidato à prefeitura de Curitiba. Ele ficou em terceiro lugar na disputa, com 52 mil votos e 6,26% dos votos.

Vida pessoal

Fernando Francischini nasceu em Londrina, em 1970. Formado em direito, é delegado licenciado da Polícia Federal.

Na PF, Francischini comandou a investigação que prendeu, em 2007, o traficante colombiano Juan Carlos Abadia. O criminoso era procurado internacionalmente e foi encontrado em um condomínio de luxo em Aldeia da Serra, em São Paulo.

Fernando Francischini é pai de Felipe Francischini (PSL), deputado federal, e marido de Flávia Francischini (PSL), vereadora em Curitiba.

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QUEIROGA FAZ FIGURAÇÃO COMO MINISTRO APÓS FALA DE BOLSONARO SOBRE AIDS

Bruno Boghossian, Folha de S.Paulo

O médico que comandava o Ministério da Saúde no início da pandemia foi demitido porque decidiu contestar os desatinos do chefe. Na véspera de perder o cargo, Luiz Henrique Mandetta reconheceu que estava em risco porque havia "um descompasso" entre a pasta e Jair Bolsonaro. O doutor que ocupa a cadeira hoje prefere não correr o mesmo perigo.

Marcelo Queiroga faz figuração no cargo de ministro da Saúde enquanto espera para lançar uma candidatura nas próximas eleições. Ele já lançou dúvidas sobre o uso de máscaras numa época em que morriam 1.000 pessoas por dia e suspendeu a vacinação de adolescentes para seguir as vontades de um presidente que acredita em boatos da internet.

Agora, o doutor resolveu defender um chefe que espalhou uma associação falsa entre os imunizantes contra a Covid-19 e a Aids. Numa entrevista à agência de notícias portuguesa Lusa, Queiroga disse que Bolsonaro foi mal interpretado e que só existem "narrativas de como o presidente é contra a vacina".

O ministro desfila pelo país com números oficiais da vacinação para fazer propaganda do governo federal, mas é incapaz de desmentir uma das maiores atrocidades fabricadas pelo presidente em sua interminável campanha de sabotagem à imunização dos brasileiros.

Na ausência de um ministro disposto a proteger a saúde da população, surgiu um contra-almirante. O presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres usou o início de uma reunião da agência para rebater a barbaridade presidencial. "As vacinas aprovadas pela Anvisa não induzem a nenhuma doença", disse.

Formado em medicina, o militar se dizia amigo de Bolsonaro e participou de uma aglomeração em frente ao Planalto durante a pandemia. Meses depois, ele foi chamado à CPI e criticou as atitudes do presidente.

Barra Torres tem estabilidade no cargo e mandato até 2024. Queiroga quer segurar a vaga na Esplanada e pedir votos com Bolsonaro em 2022. Para atingir esses objetivos, o ministro prefere só bajular o presidente.

Bruno Boghossian - jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

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AGITADOR SILENCIADO

Editorial Folha de S.Paulo

Dono de um canal de vídeos com mais de 1 milhão de seguidores na internet, o jornalista Allan dos Santos destacou-se nos últimos anos como um dos mais estridentes apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

Na semana passada, ele foi silenciado pelo ministro Alexandre de Moraes, que conduz no Supremo Tribunal Federal investigações sobre uma rede de bolsonaristas que usa as plataformas digitais para espalhar desinformação e fomentar ódio e descrédito na democracia.

Santos vive nos Estados Unidos desde o ano passado, quando virou alvo de outro inquérito conduzido pelo magistrado, o que apurou o envolvimento de bolsonaristas com a organização de manifestações de caráter antidemocrático.

Moraes também mandou bloquear todos os canais do agitador nas redes sociais, congelou suas contas bancárias e determinou que o governo peça aos EUA sua extradição para que seja trancafiado no Brasil.

Para a Polícia Federal, que pediu ao STF a prisão do jornalista, Santos precisa ser contido porque tem usado seu poder de comunicação para atacar as instituições, desacreditar o processo eleitoral e gerar animosidade na sociedade.

Seguida dias depois pela decisão do Facebook de remover o vídeo infame em que Bolsonaro atacou as vacinas contra a Covid, a ordem judicial mostra que se estreita cada vez mais o espaço do mandatário para envenenar o debate público.

Há diferenças, porém. O Facebook justificou a derrubada do vídeo acusando o presidente de violar os termos de uso da empresa, que proíbe os usuários de disseminar falsidades sobre vacinas na plataforma.

A censura imposta a Allan dos Santos é mais ampla, e por isso mais inquietante. Ela impede que ele continue a se manifestar nas redes e barra o acesso de seus seguidores a tudo que ele publicou no passado, sem distinguir banalidades de ofensas e atos criminosos.

Moraes também determinou que o Google e provedores de internet forneçam dados de todos os seguidores que fizeram contribuições financeiras a Santos durante as transmissões do seu canal de vídeos.

Cabe aos investigadores desvendar o funcionamento da engrenagem odiosa que sustenta os bolsonaristas nas redes sociais e identificar os que abusam da liberdade de expressão garantida pela Constituição para sabotar a democracia. Cumprirá ao plenário do STF definir com nitidez os limites que separam o exercício desse direito fundamental e a prática de delitos.

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BC ATIRA NOS PREÇOS, MAS PODE ACERTAR O PIB

Ivanir José Bortot, OS DIVERGENTES

Com Selic mais alta, BC atira nos preços, mas pode acertar o PIB

O Comitê de Política Monetária do Banco Central (COPOM) elevou em 1,5% a taxa básica de juros para evitar perda de controle sobre as expectativas do regime fiscal, monetário e, ao mesmo tempo, passar a ideia de sua disposição de cumprir a meta de inflação em 2022. O mercado indicava a necessidade de um aumento de 2% para que o BC tivesse êxito em seus objetivos.

Com este aumento, a taxa Selic subiu para 7,75 % ao ano. Mesmo assim está abaixo da inflação, que, nos últimos 12 meses, somou 10,25%. O teto de gastos restringe o aumento das despesas, e o crescimento da receita é utilizado para reduzir a dívida pública. Este mecanismo torna a dívida sustentável ao longo do tempo.

O aumento de juros poderia ser menor, não fosse a decisão do presidente Jair Bolsonaro de furar o teto constitucional de gastos do Orçamento da União. A percepção de piora no quadro fiscal vem provocando uma reação negativa junto aos investidores, nos preços das ações e na desvalorização na taxa de câmbio. Real desvalorizado provoca aumentos generalizados de preços e contribui para que a inflação continue subindo. O mercado indicava a necessidade de um reajuste de 2% no mínimo para que o BC recupere a confiança de que, mesmo com a lambança da área fiscal, a política monetária possa controlar preços e trazer o câmbio para o ponto de equilíbrio.

Já a autoridade monetária espera que com este aumento  dos juros que fez  haja uma valorização  do real, uma redução do consumo e uma que dos preços da inflação. O resultado deste amargo remédio recessivo para uma economia que anda  mal só saberemos em torno de seis meses, quando os efeitos monetários serão percebidos.

Falta controlar o caixa de Guedes

O potencial de eficácia deste aumento de juros para controlar a inflação depende, além do câmbio, acima mencionado, do comportamento fiscal. Quando maior o déficit público e  injeção de dinheiro na economia, como é o caso da PEC que tramita no Congresso Nacional autorizando uma gasto adicional de R$ 92 bilhões, menor é o efeito contracionista da política monetária aqui representada pelo aumento de juros sobre a inflação. Os juros também terão pouco impacto para uma parte significativa de preços administrados, como energia elétrica, combustíveis, commodities, entre outros.

A dura realidade, como bem disse o Ministro da Economia, Paulo Guedes, é que sobrou a dura tarefa de garantir um mínimo de equilíbrio à economia para o Banco Central. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, que levou as taxas de juros anuais do Brasil ao menor patamar histórico, de 2% ao ano em 2020, alertava a sustentabilidade de uma política de juros baixos para estimular o crescimento da economia dependia de bons resultados nas contas públicas, assunto de responsabilidade de Paulo Guedes.

A atual realidade é de um crescimento pífio da economia no ano que vem, o que deve piorar ainda mais o quadro fiscal da União, Estados e Municípios. E quando a economia cresce, as receitas tributárias aumentam. Como o teto de gastos restringe o aumento das despesas e o crescimento da receita é utilizado para reduzir a dívida pública. Este mecanismo torna a dívida sustentável ao longo do tempo.

A política monetária restritiva que está sendo adotada pelo Banco Central de controle de inflação pode contribuir para garantir algum poder de compra dos mais pobres e aqueles que vão receber o Auxílio Brasil. O problema são os milhares de novos desempregados vítimas desta política econômica recessiva.

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UM GOVERNO PERDIDO

Paulo Delgado, Capital Político                             

A foto

Se as perspectivas econômicas internacionais são pouco favoráveis no curto prazo as brasileiras são um desastre a curto, médio e longo prazo. Não adiante mais recorrer a testes de estressepara tentar fazer projeções e fugir do buraco.

Basta olhar os fatos políticos, econômicos e sociais para deduzir os argumentos.  A inflação continua bastante alta, o índice de preços ao consumidor subindo sem parar com aumento generalizado em todos os setores. O custo do trabalho é crônico e preocupante, o desemprego não arrefece mesmo com a pequena e lenta melhora das condições sanitárias.

Juros altos, taxa de câmbio, aumento do combustível e da energia devem fazer manter a inflação elevada até o final do ano. A carestia mostra a cara desaparecendo com a noção de preços relativos. A indústria produz menos, a taxa de crescimento da economia não sustenta nenhuma recuperação na dimensão necessária.

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Como pouco se avançou em termos de reformas, difícil imaginar otimismo e melhora do ambiente socioeconômico. A perspectiva para 2022 preocupa e só piora. ____________________________________________________________

A deterioração do ambiente econômico se mantém com a derrubada do PIB e a subida da inflação para 2021 e 2022. Único ponto positivo são as perspectivas para o setor agrícola, que poderão se confirmar se decidir apoiar a produção sustentável, o selo verde e a nova mentalidade mundial em relação ao meio ambiente.

O fato

Eleitoralismo sem fim – O presidente nunca mudou e não deve ser criticado por incoerência, mas por não ser coerente o bastante como prometeu. Sua comunicação pessoal do tipo “cólera sem receio” faz o estilo conhecido da irresponsabilidade vai e vem do populismo e conta com a astenia, a falta de força da sociedade para contestá-lo. Sua manha não é astúcia original.

Tatear, confrontar e recuar, sempre mirando setores específicos do eleitorado cativo é a pior marca do político brasileiro no poder. Tal atitude contaminou sua gestão de retórica eleitoral permanente e a estendeu ao parlamento.

A maré favorável ao demagogo não é novidade. Somente agrava um costume dos governos Lula-Dilma, que se consolida como verdadeiro modelo político, a comprometer a estabilidade e os fundamentos econômicos de longo prazo.

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Os políticos – diante do enfraquecimento dos sindicatos e das associações profissionais somado à dispersão provocada pelas redes sociais – perceberam que é mais seguro se ancorar no eleitoralismo do governo do que ser porta voz das necessidades da sociedade.

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São tantos anos dessa prática que temos hoje um eleitoralismo permanente de Estado. Partidos políticos se converteram em verdadeiras autarquias estatais presas a fundos públicos milionários que subjugam o compromisso com os anseios da população. Isso pode ampliar a perigosa janela de desilusão do cidadão comum com a política.

São partidos e bancadas alienados da vida real e suas decisões servem mais aos seus mandatos que ao país. Como deseducadores coletivos não podemos nos espelhar na sua história.

O conflito do sistema

A crise política e sua volatilidade é fruto da competição desregrada entre o Presidencialismo pessoal, o Federalismo dos Estados membros e o Parlamentarismo irresponsável. A autonomia do parlamento tirou a prerrogativa do Executivo em relação à execução orçamentária na Câmara e ao diálogo com os governadores no Senado.

A retórica eleitoral presidencial e legislativa é da mesma natureza, mas o Senado tem demonstrado maior dose de maturidade. O controle autônomo das emendas de despesa, através do orçamento impositivo e do orçamento do presidente da Câmara, chamado secreto, é um verdadeiro “sistema”, montado desde os anos 2000 para sustentar governos em crise e baseado no aumento vertiginoso dos valores das emendas parlamentares.

Com um presidente experiente em relação aos desejos e demandas dos colegas da Câmara surgiu uma simbiose entre Congresso e Executivo que deteriora o cenário político brasileiro. Os benefícios recíprocos entre os dois poderes podem levar a outro escândalo do Orçamento como já tivemos nos anos 1990 e 2000. O tratamento dado ao Bolsa Família (ou Brasil) é só um bode expiatório.

Um grande exemplo do caráter secundário dado à desigualdade: pilotado por prefeitos, vereadores, deputados e senadores a lista dos ungidos aumenta ou diminui por critérios também subjetivos.

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Sem tocar nas verbas parlamentares e fazer a reforma administrativa, revogando privilégios da elite dos Três Poderes, os recursos necessários ao pagamento de benefícios virão de ilegalidades e improvisações, contribuindo para tudo ficar como antes.

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Sem capacidade operacional e inteligência emocional na gestão estatal desde o início, a equipe econômica enfrenta a pressão por rompimento dos compromissos fiscais, com desrespeito ao pagamento de precatórios e violação do teto de gastos.

Não adianta reclamar quem nunca se deu conta de que está tocando a fazenda pública de forma burocrática e na direção de mais concentração de renda e manutenção da pobreza.

Não há estudos sobre o alcance da regra e do papel dos benefícios sociais, nem qualquer discussão relevante sobre resultados de políticas públicas, nem de custo-benefício para o destinatário final, como estratégia de desenvolvimento e de melhoria estável das condições de vida.

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Há muita propaganda das exceções que sempre existem, os que conseguiram por seus próprios méritos se livrar da bolsa do Estado. A regra de confundir renda emergencial com mobilidade social de classe permanece entre a maioria dos estudiosos das políticas sociais.____________________________________________________________

O horizonte do Executivo e do Parlamento é o ganho eleitoral em 2022. Por isso, a ênfase na troca de nome do programa de Bolsa Família para Brasil. A mesma razão que fez o governo Lula trocar Bolsa Escola por Fome Zero na campanha e Bolsa Família no mandato. São programas sazonais de governo, infrutíferos à longo prazo.

Pecado original

A reforma ministerial já ocupa um lugar de destaque entre os despropósitos brasileiros decisivos para nosso fracasso como gestores públicos.  A improvisação a que chegamos tem o nome do ministro e seu universo de falsos problemas.

O economicismo teórico de Paulo Guedes e sua pulsão política mal informada, produziu a inepta concentração ministerial, que extinguiu o Ministério do Planejamento e desaparelhou o Estado para exercer melhor sua função de médio e longo prazos.

Ao tentar escapar da dominação paternalista do Estado se valeu das categorias de pensamento de um liberalismo antissocial, fora do lugar e fora de moda. E ao atribuir aos Ministérios da Área Social – Trabalho, Cidadania, Cultura, Educação e Saude – o papel pejorativo de ministérios gastadores, necessitando de tutela, foi facilmente dominado pela realidade desigual e injusta brasileira que alimenta a maioria dos mandatos parlamentares no país.

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Sem nada oferecer em troca, Guedes tornou-se refém do parlamento, que é composto por voto de eleitores e tem obrigação de responder aos seus anseios.

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A exaltação da competência técnica como engajamento real e moralmente superior ao engajamento político, foi um álibi da equipe econômica para tomar posição política sem parecer se interessar pela política. Não deu outra: está submetido a dupla dominação – do aparato técnico antipolítico e do mundo político anticientífico.

Inexperiente e autossuficiente não se deu conta de que não se deve pretender acertar agindo fora da realidade, querendo transformar problema político em problema técnico.

Fuga de capitais

A perda de relevância na alocação de capital estrangeiro hoje, a baixa proporção que o Brasil tem na composição dos índices de mercado, crédito e participação acionária mundial, são consequência da má gestão da Economia.

A pouca atração de capital, o fato de nenhum grande banco de investimento operar no país, juros altos e câmbio desvalorizado e a perda de confiança na política governamental é que torna relevante o episódio da autoridade ter investimentos privados fora da costa – offshore. Nem o Ministro investe no país. É como cozinhar e comer fora. Inaceitável, senhores!

Os tanqueiros

A discussão sobre os impostos de combustíveis visa a desviar o foco da gestão atual da Petrobrás e da carestia geral e traduz a verdadeira guerra travada no governo entre União e Estados.

Ao contrário do mote que elegeu o atual presidente com o “menos Brasília, mais Brasil” temos hoje muito mais Brasília. O governo teme a força mobilizadora dos tanqueiros, transportadores autônomos de combustível, o setor mais organizado e influente da categoria dos caminhoneiros.

Terceira via

Pesquisa sobre como o brasileiro se informa exibe o fôlego do presidente e os limites da oposição: quem tem na televisão sua fonte revela uma visão mais negativa do presidente Bolsonaro do que aquele que busca seu insumo via Internet. A diferença é significativa, porque consolida a força da retorica governista em redes.

O ex-presidente Lula começa a usar mais as redes para tentar neutralizar essa vantagem. A chamada “terceira via” está longe de atingir bons números em mídias eletrônicas. Ainda é uma hipótese, mas seu campo de manobra tende a crescer após as decisões de fusão do DEM-PSL, a prévia do PSDB, a filiação do presidente do Senado ao PSD e a entrada de Moro na disputa.

As eleições ainda estão indefinidas com o ex-presidente Lula economizando sinais claros de ser um candidato para valer. Parece fazer uma cruzada-teste para medir os benefícios do recall a seu favor: se prevalecerá a memória positiva ou a negativa de sua biografia política.

O presidente Bolsonaro continua lançando balões de ensaio sem levar quase nada até o final acumulando cada vez mais ônus na economia. As outras opções só terão chance se unidas e capazes de pôr o dedo na ferida enfrentado o tabu.

Um novo campo só se justifica como “extra-ideologia” capaz de composição “anti-extremos”, um centro clássico em torno de um candidato moderado de fala sincera e agradável. Quanto mais candidatos existirem na via larga, que é a multipartidária e pluralista, mais se consolidará o cenário de duas ruas sem saída, já plenamente conhecidas e habitadas por dois inusitados “paz e amor”.

Paulo Delgado - É professor, sociólogo e consultor de empresas. Foi constituinte de 1988 e exerceu mandatos de deputado federal por Minas Gerais de 1986 a 2011. Articulista regular d'O Estado de São Paulo e assina a coluna de politica internacional dos Jornais Correio Braziliense e O Estado de Minas. É colaborador do Capital Político.

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O METEORO E A RENOVAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA

Marcos Magalhães, Capital Político

Quem circula de carro com os olhos atentos pelo Eixo Monumental, a caminho da Praça dos Três Poderes, percebe duas joias arquitetônicas pelo caminho: a Catedral de Brasília, sinônimo de inovação na construção de templos religiosos, e o Palácio do Itamaraty, o mais elegante da quase homogênea Esplanada dos Ministérios.

O palácio, cenário inevitável de fotos de turistas que visitam a capital federal, é cercado por um espelho d’água, onde em 1967 pousou a escultura Meteoro, do escultor Bruno Giorgi. Os cinco blocos de mármore de Carrara que a compõem são referências aos cinco continentes.

Nas palavras oficiais de nota emitida pelo Ministério das Relações Exteriores, a conexão entre os cinco blocos de mármore da obra de Giorgi recorda a “missão principal da diplomacia de negociar e interagir com todos os povos”.

Pois a escultura, como informa a nota, será restaurada pela primeira vez desde que se integrou de forma harmoniosa às linhas de Oscar Niemeyer. Os trabalhos de restauração, que serão acompanhados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), serão concluídos em 10 meses.

Ou seja, os blocos brancos de Giorgi estarão como novos no início do segundo semestre de 2022, quando a campanha eleitoral já estará em velocidade de cruzeiro. A tempo do início dos inevitáveis debates – quase inéditos em campanhas eleitorais – sobre outra restauração inadiável: a de uma política externa sensata e equilibrada.

Candidatos à Presidência da República provavelmente serão cobrados a explicar como pretendem conduzir as relações exteriores do Brasil. Ou como planejam se reconectar com países distribuídos pelos cinco continentes. A harmonia dos traços de Giorgi poderá servir como inspiração para o longo trabalho.

Ruídos

Desde que Jair Bolsonaro tomou posse, em 2019, multiplicaram-se os ruídos nas relações com diversos países do mundo. Havia duas exceções: Estados Unidos e Israel, cujas bandeiras faziam parte dos adereços obrigatórios dos desfiles de manifestantes de extrema direita pelas largas avenidas de Brasília.

Bolsonaro havia apostado em uma relação preferencial com o presidente Donald Trump. O que era bom para os Estados Unidos, parecia indicar o presidente recém-eleito, era mais uma vez bom também para o Brasil.

Ele esteve ao lado de Trump até o fim. Chegou ao ponto de prever que as cenas de invasão do Capitólio, por republicanos inconformados com a derrota do líder, poderiam vir a se repetir em Brasília, dois anos mais tarde, caso ele mesmo não viesse a ser reeleito.

Se esta era a principal aposta da diplomacia bolsonarista, o prejuízo veio rápido. Após a vitória do democrata Joe Biden, Bolsonaro perdeu seu mais importante aliado.

As relações com os Estados Unidos esfriaram. E o presidente brasileiro não perdeu a oportunidade de tornar as coisas ainda mais difíceis, ao repetir a incrédulos representantes do novo governo americano acusações de fraudes nas eleições dos Estados Unidos.

Bolsonaro queixou-se, ainda, de que a nova administração em Washington – “mais à esquerda”, em sua geometria – teria uma “quase obsessão” pelo tema do meio ambiente, o que viria a atrapalhar “um pouquinho” o Brasil. Os próximos debates sobre a mudança climática vão dimensionar o tamanho do abismo entre os dois governos a respeito do tema.

Ainda observando as Américas, como em uma análise de danos do primeiro bloco de concreto de Giorgi, houve significativos prejuízos nos últimos anos nas relações com a Argentina, principal sócio brasileiro no Mercosul. O diálogo entre Brasília e Buenos Aires ainda segue truncado.

Assim como no caso dos Estados Unidos, Bolsonaro apostou em um lado nas últimas eleições presidenciais da Argentina. E perdeu. Contrariado, ele viu na vitória de Alberto Fernández um retorno da esquerda ao poder. Talvez tenha lembrado do antigo Efeito Orloff: “eu sou você amanhã”.

A África, por sua vez, passou longe das prioridades da nova administração brasileira. O continente, que recebeu com entusiasmo diversas iniciativas de aproximação promovidas desde o regime militar até o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, saiu do foco.

A mais importante missão do atual governo ao continente africano, chefiada pelo vice-presidente Hamilton Mourão, foi para defender os interesses da Igreja Universal do Reino de Deus em Angola, onde religiosos brasileiros haviam sido acusados de racismo, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

O ex-prefeito Marcelo Crivella, bispo licenciado da mesma organização, chegou a ser indicado em julho por Bolsonaro para o cargo de embaixador brasileiro na África do Sul. Mas o governo sul-africano até hoje não se pronunciou sobre a sua indicação.

A diplomacia de Bolsonaro também é vista com reservas pelos dois principais países da União Europeia, França e Alemanha. O acordo de associação da EU com o Mercosul foi congelado por causa de restrições europeias à política ambiental do novo governo brasileiro.

O futuro governo alemão, que deve ter presença importante dos Verdes, imporá ainda mais restrições às negociações com o Brasil. Na França, da mesma forma, o meio ambiente estará entre os temas principais das eleições presidenciais do ano que vem.

Tecnologia

Na Ásia, a tecnologia esteve no centro do mais recente desentendimento do governo Bolsonaro com a China, maior parceira comercial do Brasil. Para agradar a Trump, Bolsonaro havia anunciado restrições à presença de empresas chinesas na implantação em solo brasileiro da quinta geração de telefonia celular.

As regras do leilão, ao final das contas, não impediram diretamente a presença dessas empresas nos investimentos que serão feitos no Brasil. Mas as dúvidas persistem. E elas podem estar por trás de recentes suspensões, por Pequim, de compras de carnes brasileiras.

O quinto continente, a Oceania, nunca esteve entre as maiores prioridades da política externa brasileira. Mas dali surgiu há poucas semanas uma notícia que demonstra como o Brasil nunca esteve entre os principais aliados de Washington, como parecia buscar Bolsonaro ao se aproximar de Donald Trump.

Para se contrapor à crescente presença naval chinesa no Indo-Pacífico, o governo americano – que nunca demonstrou simpatia pelo programa nuclear da Marinha brasileira – anunciou acordo de criação de aliança com o Reino Unido e a Austrália, a Aukus, que permitirá a aquisição de submarinos nucleares pela Marinha australiana.

Os submarinos nucleares brasileiros, ainda que menores como sempre lembram os críticos norte-americanos, poderão até ser lançados ao mar antes dos australianos. Mas terão sido desenvolvidos ao longo de três décadas por cientistas brasileiros.

Ainda falta bastante tempo para isto. No futuro próximo, a partir de 2023, o Brasil precisará reconstruir pontes com outros governos espalhados pelos cinco continentes. Será um trabalho tão ou mais meticuloso que o dos especialistas encarregados de dar ao Meteoro o brilho de tempos passados à frente do Itamaraty.

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