quarta-feira, 31 de maio de 2023

PARA ALÉM DO CARGO

Luis Jorge Natal, OS DIVERGENTES

Quando Lula foi eleito, não foi uma vitória qualquer. Nem apertada. Foi gigante. Afinal, a maior máquina eleitoral jamais vista foi derrotada. A extrema-direita não teve prurido para arrebentar todos os parâmetros estatais para corromper a votação. Não adiantou. O país reagiu, unindo antigos adversários para evitar o que seria uma catástrofe: a reeleição de tudo o que o bolsonarismo significa.

E Lula foi o candidato escolhido para enfrentar as forças das trevas. Não por suas qualidades, mais por ser o único capaz de vencer. Porém, parece que o velho e tarimbado político não entendeu assim. Descontando a fase necessária para desopilar o fígado, depois de quase dois anos preso, agora chega desse messianismo.

Nelson Rodrigues – sempre citado, lido ás vezes -, feliz com a estreia de uma peça elogiada pela crítica, exclamou:

– Se a mulher amada me cumprimentasse, a desconheceria.

Cito de memória o exagero retórico do escritor. Mas serve para ilustrar, por analogia, o sentimento que toma conta de Lula. Não basta ser o primeiro operário a chegar à Presidência da República três vezes, ser respeitado no mundo. Tudo parece pouco. Quer estar no mesmo patamar de um Mandela. E parece ter perdido o senso de limite. Tenta lustrar a biografia e, por soberba, pode tê-la tisnado de forma definitiva ao bater palmas para um ditador inepto, sanguinário, como Maduro.

Falta um grilo falante no ombro de Lula alertando para o perigo que ronda a democracia. Afinal, a cadela do fascismo está sempre no cio.

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O REINO DO CASUÍSMO

José Sarney, OS DIVERGENTES

Dizem que a imprensa vive de crises e dramas; o lado positivo dos acontecimentos raramente tem a mesma cobertura. Há, sem dúvida, alguma verdade nisso. Mas há também a exceção da verdade, para prevenirmos desde já o que poderia ser uma calúnia. Eu, por exemplo, já escrevi algumas dezenas de textos em que o título contém a palavra “crise”. É que o Brasil tem a crise enraizada na sua estrutura política.

A Independência nasceu da crise do Reino Unido, que foi desunido pela vontade portuguesa de que voltássemos a ser colônia. O Império nasceu com o conflito entre duas vontades de D. Pedro: a de ser democrata e a de ser rei absoluto. Encerrou o 1º Reinado com sua expulsão para ir ser herói em Portugal. Seu filho atropelou o parlamentarismo pelo choque entre o querer ser chamado de republicano e o voluntarismo sobre a vida dos gabinetes. A República Velha começou com um golpe de Estado, teve o primeiro presidente pensando que o Congresso era seu estado maior que ele podia dispensar e o segundo governando como ditador. Viveu sem conciliar a interferência militar e a fraude eleitoral.

O golpe de 1930 promoveu a crise para que o presidente permanecesse em qualquer circunstância. A República de 1946 manteve os erros de um presidencialismo inviável, em que o presidente tendia a ser expelido do poder. Pela morte, pelo impeachment, pela renúncia, pelo golpe de Estado todos o foram, com a exceção de Dutra, inerte, e de Juscelino, que se abrigou no Planalto Central. O interregno do regime militar nos fez chegar à transição para a democracia, que conduzi debaixo de pauladas, mas com a volta dos militares para os quartéis e enquanto garantia a liberdade dos constituintes para fazer a Constituição.

Não quero dizer “meninos, eu vi!”. Mas eu previ que viveríamos um estado de crises. O capítulo de direitos da Constituição é excelente. Ela tem grandes virtudes. No entanto em seu cerne há contradições graves. Ela não construiu um regime verdadeiramente presidencialista — Afonso Arinos dizia, nos seus últimos anos, que o regime americano só existia, só podia existir nos Estados Unidos, de certa forma repetindo o que Bagehot havia dito no clássico The English Constitution — nem o regime parlamentarista. Ela manteve o sistema eleitoral que tem como fundamento o corporativismo e a inexistência de partidos democráticos. Ela deu ao executivo competências legislativas, com as medidas provisórias, criatórios de jabutis que saem correndo para os interesses privados como tartaruguinhas correndo para o oceano.

Pior foi o germe da autodestruição que plantou. Na constituição de 1824 as emendas constitucionais precisavam ser aprovadas pela próxima Câmara — nunca ficou claro o papel do Senado — e sob ela foi feita uma emenda, o Ato Adicional de 1834; a de 1892 exigia intervalo de um ano e três discussões com votos de 2/3 das duas Casas, e também só teve a Emenda de 1926; a de 1934 foi esmagada antes de ser emendada; a de 1937 não entrou em vigor; a de 1946 exigia duas sessões legislativas ordinárias e consecutivas e nos deu cinco emendas, a 4, de 1961, disfarçando o golpe de Estado impondo o parlamentarismo e cassando os direitos do Presidente e a 5 derrubando o parlamentarismo; os atos institucionais, bem, foram atos anticonstitucionais.

A Constituição agora exige para ser emendada apenas discussão em dois turnos, com os Regimentos — que tem valor constitucional — exigindo um interstício de cinco sessões. Mas a pressa acha que é demais e dispensa o interstício ou convoca as sessões em sucessão de minutos, eliminando o mínimo de reflexão que o Constituinte fixara.

O resultado é termos uma Constituição instável. É termos 106 emendas constitucionais, mais seis de revisão, e que formam um volume de texto três vezes superior ao original. E inúmeras alteram o que devia ser inalterável, as Disposições Transitórias. O objetivo dessas 106 emendas, que são milhares de normas, só pode ser resolver o problema do dia: vivemos o reino do casuísmo. Nem ouso falar de mérito, pois, por maior que seja, não há maior demérito que desmoralizar o Estado de Direito.

Enfim é mais fácil modificar a Constituição do que fazer uma medida provisória, um projeto de lei ou mesmo substituir a constituição como fez o Chico Campos em 1937 com a Polaca e em 1964 com o AI-1, ou fazer a Emenda No 1 que substituiu, em 1969, a de 1967, e vigorou até 1988, quando surgiu a Constituição atual, a mais social da História do Brasil.

José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras

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REGIME FECHADO

Márcio Falcão e Fernanda Vivas, TV Globo, g1 — Brasília

Supremo condena Collor por corrupção e lavagem a 8 anos e 10 meses de prisão

Plenário considerou que crime de associação criminosa prescreveu e não pode haver punição.

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quarta-feira (31) condenar o ex-senador e ex-presidente da República Fernando Collor de Mello pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro à pena de oito anos e dez meses de prisão no regime inicialmente fechado.

O caso é um desdobramento da Operação Lava Jato e envolve o ex-senador e outros dois réus: os empresários Luis Pereira Duarte de Amorim e Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos. O primeiro é apontado na denúncia como administrador de empresas de Collor; o segundo seria o operador particular do ex-parlamentar.

Na denúncia do Ministério Público apresentada em 2015, Collor foi acusado de receber R$ 29,9 milhões em propina por negócios da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras na venda de combustíveis. Para os ministros, a propina foi de R$ 20 milhões. Os pagamentos teriam sido feitos entre 2010 e 2014 em negócios envolvendo a subsidiária, que tinha à época dois diretores indicados pelo senador.

O plenário também condenou os empresários Luis Pereira Duarte de Amorim e Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos (veja as penas abaixo).

Em relação a um terceiro crime, alvo de divergência entre os ministros, o de associação criminosa (Collor foi denunciado por organização criminosa, mas o STF reconheceu a hipótese mais branda), o Supremo considerou que houve prescrição, ou seja, já se esgotou o prazo para punir o delito.

Todos foram condenados a pagar R$ 20 milhões de indenização por danos morais coletivos. Collor também fica impedido de exercer cargo ou função pública. Os bens, direitos e valores fruto da lavagem de dinheiro deverão ser devolvidos à União.

No sétimo dia de sessão reservado à ação penal, o plenário votou sobre a chamada dosimetria da pena. Na semana passada, por 8 votos a 2, a Corte já havia decidido condenar Collor e os outros dois envolvidos.

Em nota, a defesa de Collor reafirmou a sua convicção sobre a inocência do ex-presidente e afirmou que vai aguardar a publicação do acórdão (decisão do STF) para apresentar os recursos cabíveis.

Votos

O relator do caso, ministro Edson Fachin, propôs que Collor fosse condenado a 33 anos de prisão. Mas os demais ministros votaram por penas menores (veja abaixo como votou cada ministro). Por isso, a Corte definiu uma pena média baseada nos votos.

Em condenações superiores a oito anos de prisão, o regime prisional é fechado, mas a definição da pena não significa que Collor será preso imediatamente.

Isso porque, no Supremo, os ministros costumam determinar o início do cumprimento da pena após os chamados segundos embargos, que são recursos que pedem esclarecimentos sobre o julgamento, caso sejam apresentados.

Penas finais

Fernando Collor de Mello

Corrupção passiva - quatro anos e quatro meses e 45 dias-multa

Lavagem de dinheiro - quatro anos e seis meses e 45 dias-multa

Associação criminosa - dois anos - pena extinta em razão da prescrição

TOTAL: oito anos e dez meses de reclusão e 90 dias-multa (cinco salários-mínimos cada) em regime inicial fechado

Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos

quatro anos e um mês de prisão e 30 dias-multa no regime semiaberto

Luiz Pereira Duarte de Amorim

três anos de prisão e 10 dias-multa no regime aberto

Como votaram os ministros

Pena de 8 anos e 6 meses

André Mendonça

Nunes Marques

Dias Toffoli

Gilmar Mendes

8 anos e 10 meses

Alexandre de Moraes

Luiz Fux

15 anos e 4 meses

Luís Roberto Barroso

Cármen Lúcia

Rosa Weber

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POLÍTICA EXTERNA DE LULA TEM TOM PASSADISTA

Vera Magalhães, O Globo

Presidente brasileiro teve de ouvir, ‘em casa’, pitos dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric

Em poucas áreas o governo Lula dá tantos sinais de envelhecimento de ideias quanto em política externa. Aguardado por governos do mundo todo e de diferentes matizes políticos com a expectativa de uma nova fase de inserção global do Brasil graças às novas diretrizes, sobretudo concernentes à política ambiental, o presidente decidiu tomar o caminho, também nesse front, de revisitar um passado que a ele parece mais glorioso que aos que olham de fora. O resultado tem sido frustração e um grande grau de constrangimento.

Depois do vaivém retórico relativo à possibilidade, nunca transformada num plano de ação factível, de que o Brasil liderasse um grupo de países para buscar o fim da guerra da Rússia contra a Ucrânia, que teve no desencontro com Volodymyr Zelensky no Japão um último capítulo meio pastelão, Lula resolveu usar uma cúpula de que era anfitrião para lustrar a biografia de Nicolás Maduro e reescrever a História atual da Venezuela, produzindo justamente aquilo que apontou nos críticos ao ditador vizinho: uma narrativa falsa.

O resultado não poderia ser mais embaraçoso. Lula teve de ouvir, “em casa”, pitos dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric. Não há nem espaço para que se dê de ombros para a admoestação de Lacalle Pou, pela simplificação de que se trata de um político de direita: as frases duras de Boric frustraram essa saída, sempre conveniente.

O episódio evidencia que, nos sete anos em que esteve longe do poder, o PT perdeu a oportunidade de promover uma atualização da sua diretriz de política externa. Não para se tornar menos progressista ou deixar de ser um partido de esquerda.

Mas para travar contato com e se aprofundar no que a esquerda progressista mais moderna professa em termos de defesa da democracia sem alinhamentos ideológicos automáticos e de prevalência de agendas como a ambiental sobre outras que fizeram mais sucesso no século XX, às quais o presidente brasileiro e seu entorno para temas internacionais permanecem atados.

Boric faz parte dessa nova safra de políticos de esquerda, para os quais não apenas não é tabu chamar ditadores do “mesmo campo” por aquilo que são, como também é necessário diante da ameaça de autocratas de extrema direita em várias partes do mundo. Para ter legitimidade, coerência e sobretudo inteligência para lidar contra o avanço desses ditadores, é preciso não estar comprometido com outros que apenas trocam o garfo de mão.

E, vamos e venhamos, chega a ser difícil mesmo por qualquer viés chamar Maduro ou o ditador nicaraguense Daniel Ortega de políticos progressistas ou de esquerda, dadas a perseguição a inimigos políticos, a violação sistemática de direitos humanos, a opressão a povos originários e a grupos como mulheres e comunidades LGBTQIA+ nos dois países e noutras ditaduras camaradas.

Enquanto insiste em tirar do armário uma roupa cheia de naftalina que, como cantou Belchior, não nos serve mais, Lula vai perdendo também seu grande passaporte para ser o líder que almeja aos olhos do mundo: o protagonismo na agenda verde.

O avanço do Congresso e de setores do próprio governo sobre o Ministério do Meio Ambiente e sobre a política voltada aos povos indígenas tem o potencial de levar o Brasil de volta à condição de pária internacional que gozou nos anos Jair Bolsonaro e de evidenciar a contradição entre o discurso enfático da campanha e a ação dúbia da gestão.

É preciso calcular melhor o poder de estrago das falas de Lula em temas de política externa, sob pena de queimar muito cedo o cacife que ele reuniu ao vencer, que pode, mesmo, ser um ativo importante para ele e para o Brasil. Um chefe de Estado não deve confiar apenas no passado e em sua intuição para falar de temas complexos. Porque aí quem produz narrativas vazias é ele.

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LACALLE E BORIC DEIXARAM LULA NUMA SAIA JUSTA

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

Ao tratar o regime autoritário da Venezuela como uma “narrativa”, o que colocou a democracia em segundo plano, Lula desnudou o ponto fraco de sua política externa: afastar o Brasil dos EUA

É preciso ter cuidado para não jogar a criança fora com a água da bacia. A reunião dos presidentes sul-americanos, oito anos após o colapso da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), ontem, em Brasília, foi um passo importante para a integração dos países do subcontinente, num momento de reestruturação das cadeias globais de valor e de uma mudança importante na conjuntura política mundial, na qual a centralidade da democracia está se impondo no Ocidente.

O erro político do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao tratar o regime autoritário da Venezuela como uma “narrativa”, o que colocou a democracia em segundo plano, ofuscou a relevância do encontro e desnudou o ponto fraco de sua política externa: a busca de alianças que podem afastar o Brasil dos Estados Unidos. Os presidentes do Uruguai, o conservador Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, de esquerda, criticaram a fala de Lula e, duramente, a falta de democracia e violações aos direitos humanos na Venezuela.

Lacalle Pou aproveitou o desgaste de Lula e rejeitou a retomada de instituições de integração regional como a Unasul, criada em 2008, quando os ventos políticos no continente sopravam para a esquerda. “Precisamos parar com essa tendência de criar organizações, vamos à ação”, declarou. Lula havia proposto reorganizar a organização na abertura do encontro. O uruguaio registrou em vídeo seu discurso e divulgou nas redes sociais, quebrando um acordo de que a discussão entre os presidentes seria a porta fechadas.

A repercussão negativa foi imediata e fragilizou Lula. Lacalle Pou fora muito contundente: “Ora, se há tantos grupos no mundo que estão tratando de mediar para que a democracia seja plena na Venezuela, para que se respeitem os direitos humanos, para que não haja presos políticos, o pior que podemos fazer é tapar o sol com a mão”.

Após a abertura, foi a vez de Gabriel Boric roubar a cena. Defendeu o reingresso da Venezuela nos encontros multilaterais, mas criticou a fala de Lula sobre o regime de Maduro. O presidente chileno, em entrevista nos jardins do Itamaraty, revelou o teor de sua intervenção na reunião: “Manifestei, respeitosamente, que tenho uma discordância com o presidente Lula quando ele diz que a situação dos direitos humanos na Venezuela é uma construção narrativa. Não é uma construção narrativa. É uma realidade séria”. Cobrou “uma posição firme e clara de que os direitos humanos sejam respeitados sempre e em todos os lugares, independentemente do viés político do governante de plantão”.

Depois do encontro, em coletiva, Lula minimizou o desgaste, ao ser questionado sobre as críticas dos colegas ao regime e ao presidente venezuelano. “O Maduro faz parte deste continente. Houve muito respeito com a participação do Maduro. Ninguém é obrigado a concordar com ninguém. É assim que a gente vai fazendo”, respondeu. “O fato de ter dois presidentes que não concordaram, não sei em que jornal eles leram. Eu disse que, aqui, não foi convocada uma reunião de amigos do Lula. Foi convocada uma reunião de presidentes para construir um órgão dos países”, afirmou.

Integração regionali

A reunião convocada por Lula não deixa de ser um êxito da diplomacia brasileira. Além de Maduro, Lacalle e Boric, participam do encontro o presidente da Argentina, Alberto Fernandéz; da Bolívia, Luís Arce; da Colômbia, Gustavo Petro; do Equador, Guillermo Lasso; da Guiana, Irfaan Ali; do Paraguai, Mário Abdo Benítez; e do Suriname, Chan Santokhi. A presidente do Peru, Dina Boluarte, que vive uma crise institucional, foi representado pelo presidente do Conselho de Ministros, Alberto Otárola.

No encerramento, Lula fez um apelo aos demais presidentes: “Deixamos que as ideologias nos dividissem e interrompessem o esforço da integração. Abandonamos canais de diálogo e mecanismos de cooperação e, com isso, todos perdemos”, afirmou. Ficou acordado que em 120 dias será discutido um roteiro para a integração da América do Sul, cujos países vivem uma situação muito semelhante à do Brasil. Estão na esfera de influência geopolítica dos Estados Unidos, com exceção da Venezuela, mas têm como principal parceiro comercial a China.

Os maiores parceiros comerciais de Pequim na América do Sul são o Brasil e o Chile, onde a balança comercial suplanta a dos EUA duas vezes. A seguir vêm Peru, Argentina, Uruguai e Venezuela. Somente na Colômbia o comércio com Washington suplanta o chinês.

A proposta de Lula de criar um mercado integrado de 450 milhões de pessoas, com uma moeda unificada, a exemplo do que fez a União Europeia (UE), não agrada nem um pouco aos EUA, porque seguramente seria lastreada principalmente no yuan e enfraqueceria o dólar.

A presença da China na América Latina é uma realidade. Ao contrário das empresas norte-americanas, as chinesas não têm medo de economias caóticas e buscam oportunidades como as encontradas na província argentina Jujuy, a 900km de Buenos Aires, com quase 800 mil habitantes. O lítio de suas salinas brancas é mais fácil de ser explorado do que na Bolívia e no Peru.

A oeste, a estrada que cruza a província, construída pelos chineses, atravessa os Andes até o Chile e chega ao Pacífico. A leste, liga a Argentina ao Paraguai e, depois, ao Brasil. Entretanto, os EUA estão desvinculando suas cadeias de valor da China para criar cadeias regionais, principalmente de produtos eletrônicos e semicondutores. É uma briga de cachorro grande, mas não deixa de ser uma oportunidade para a América Latina.

Em tempo: As agressões a jornalistas por parte de seguranças de Maduro e brasileiros, entre as quais a veterana repórter da Globo Delis Ortiz, muito experiente em coberturas presidenciais no Brasil e no exterior, são inadmissíveis, ainda mais no Itamaraty. Mostram a cara do regime venezuelano e desgastam ainda mais o governo Lula. 

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BORIC DESMONTOU DISCURSO DE LULA SOBRE VENEZUELA

Bernardo Mello Franco, O Globo

Com oito palavras, Boric desmontou discurso de Lula sobre Venezuela

Presidente teve chance de se corrigir, mas insistiu em negar fatos para defender Maduro

Gabriel Boric tem 37 anos. É o presidente mais jovem da América do Sul. Quando nasceu, em fevereiro de 1986, Lula já iniciava sua segunda campanha. Nove meses depois, seria eleito o deputado mais votado da Assembleia Constituinte.

A julgar pela experiência de cada um, o brasileiro teria lições a dar ao chileno. Não foi o que ocorreu na cúpula de ontem em Brasília. Diante de uma dúzia de chefes de Estado, Boric desmontou o discurso de Lula sobre a Venezuela. Ao fim do encontro, resumiu a questão em oito palavras: “Não é uma construção narrativa. É uma realidade”.

Lula acertou ao restabelecer relações diplomáticas com Caracas. Em seguida, errou feio ao relativizar o autoritarismo no país vizinho. Nicolás Maduro sufocou a oposição, amordaçou a imprensa e produziu um êxodo de 7 milhões de refugiados. Seus abusos foram documentados pelas Nações Unidas e são investigados no Tribunal Penal Internacional, que apura crimes contra a Humanidade.

O presidente sabe de tudo isso, mas preferiu apresentar o aliado como vítima de “narrativas”. “O preconceito contra a Venezuela é muito grande”, disse. “Nossos adversários vão ter que pedir desculpas pelo estrago que fizeram na Venezuela”, emendou.

Boric não foi o único a contestar as declarações de Lula. Os presidentes de Uruguai, Paraguai e Equador também usaram a cúpula para condenar o regime de Maduro. A crítica do chileno chamou mais atenção porque ele é um político de esquerda. Apesar disso, recusou-se a fazer vista grossa aos desmandos na Venezuela.

Ontem Lula teve uma chance de se corrigir, mas insistiu em negar os fatos. Ainda cobrou respeito à “soberania” venezuelana, como se criticar um autocrata fosse equivalente a desacatar o país que ele subjuga.

O petista alegou que não pode avaliar a situação no país porque não pisa lá há dez anos. Bastava ler o relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, assinado por outra socialista chilena. No texto, Michelle Bachelet empilha casos de “detenções arbitrárias, maus-tratos e tortura” contra críticos de Maduro.

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DUAS HISTÓRIAS DE CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL

Zeina Latif, O Globo

Regras fiscais precisam estar acompanhadas de compromisso de governantes com as contas públicas e com reformas

As políticas fiscal e monetária se entrelaçam, mas têm histórias de construção institucional diferentes no Brasil, com atraso do lado fiscal e maior solidez do lado monetário. Não há sinalização de mudança desse quadro, em ambos os lados.

A autonomia do Banco Central (BC) não se resume à aprovação do projeto de lei complementar em 2021. Ainda que um passo essencial, não é suficiente, pois leis podem ser revogadas, como foi o caso da autonomia do BC em sua criação, em 1964. A diferença agora é que a lei decorreu de uma longa construção institucional, desde a redemocratização. Assim, sua reversão é pouco provável.

Um primeiro passo para autonomia foi acabar com a conta-movimento entre o Banco do Brasil e o BC, o que implicava repasses automáticos de recursos para financiamento de políticas públicas. Era um desenho que não provia o BC de instrumentos para exercer sua função de controle monetário.

O segundo foi a implementação das metas de inflação, em 1999. O mandato preciso ao BC contribuiu para blindar a instituição de pressões externas.

O terceiro passo foi a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, que proibiu o BC de financiar a dívida pública, devendo apenas atuar no mercado secundário para regular a liquidez do sistema.

Um fator de grande importância foi o próprio amadurecimento do debate público ao longo das últimas décadas e especialmente após a experiência do governo Dilma, quando aparentemente houve pressão sobre o BC para forçar o corte da taxa de juros.

Em que pese a capacidade do presidente da Câmara de avançar com a matéria, identificando uma janela de oportunidade para avanço no tema no Congresso, é crucial reconhecer a longa construção institucional, o que dificulta retrocessos.

A autonomia formal dos bancos centrais não é garantia de autonomia na prática, pois ela depende do compromisso de disciplina fiscal de governantes. Isso porque a expansão fiscal descontrolada afeta o apetite de investidores para financiar o governo, por meio da dívida pública, o que acaba se traduzindo em busca por outros ativos, como dólar ou qualquer outro bem que funcione como reserva de valor. Em uma situação extrema, o BC perde o controle da inflação.

Esse risco diminuiu bastante no Brasil, exatamente pelo apreço da sociedade à inflação baixa. Mas há o meio do caminho, com um regime fiscal frágil que reduz a eficácia da política monetária, exigindo juros mais altos. Ou seja, a autonomia passa por o BC poder contar com instrumento eficaz para o controle da inflação. Nesse aspecto, há muito a avançar.

Alguns propõem aperfeiçoamentos no regime de metas de inflação, abolindo o ano-calendário e utilizando a meta contínua. Outros, o aumento da meta. São temas secundários, mas que não deveriam avançar de forma oportunista, para forçar cortes de juros no curto prazo. Um benefício pequeno ante o custo de arranhar a construção institucional do BC. A agenda necessária para reduzir os juros é outra, é a agenda fiscal.

Não há a mesma institucionalidade na política fiscal, apesar dos muitos esforços desde a criação da Secretaria do Tesouro, em 1986. A regra de ouro da Constituição (o governo não pode se endividar para pagar despesas correntes) não pegou. A LRF (não pode criar despesa sem fonte de receita definida) com alguma frequência é violada, se não formalmente, em seu espírito. Houve muita contabilidade criativa para camuflar déficits primários.

A regra do teto foi mal gerida na pandemia e acabou alimentando violações posteriores, com grupos organizados aproveitando para deixar mais despesas fora do teto. Por essa perspectiva, o arcabouço fiscal já nasce com credibilidade comprometida.

Regras fiscais precisam estar acompanhadas de compromisso de governantes com a disciplina fiscal, com reformas. E arrumar as contas públicas é comparativamente mais difícil diante das pressões de grupos organizados, que se beneficiam da falta de transparência, governança e de análise de custo-benefício da ação estatal.

Aqui, qualidade e quantidade se misturam. Como as políticas públicas pouco entregam, a demanda por recursos é inesgotável. A solução é complexa e exige perseverança, envolvendo inclusive reforma administrativa para melhorar a ação estatal. Não é algo que combina com governos fracos e focados no curto prazo.

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POR QUE IMPORTA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO ?

Wilson Gomes* , Folha de S. Paulo

Não há pensamento livre se não pudermos dizer o que pensamos

Diante das escaramuças constantes entre os que defendem ou atacam a liberdade de expressão, a tentação é sempre responder: faça o que acha que tem que fazer, mas pelo menos use argumentos de melhor qualidade. Afinal, quem ainda aguenta receber, à guisa de argumento final, o meme com a falsa citação de Voltaire: "Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo"? Jura? Devo morrer para que você diga, p. ex., que vacina causa autismo e, com isso, mate outras tantas pessoas?

E quem ainda confia na crença numa tal de "liberdade absoluta de expressão" defendida por quem, na semana passada, estava perseguindo autores, fechando exposições, proibindo filmes e removendo posts?

Numa época em que grupos ideológicos fazem vertiginoso revezamento entre uma defesa intransigente da liberdade de fala e a gritaria furiosa por "remova, interdite, cale-se", parece que todas as justificativas à liberdade de expressão não passem de argumentos de conveniência política sem qualquer princípio que as sustente. Não é verdade. Há algumas boas razões pela liberdade de expressão, assim como há argumentos para sustentar que a limitação de certos tipos de discurso é compatível com a democracia liberal. Apresentarei os primeiros hoje, prometendo voltar para falar sobre discurso de ódio na próxima semana.

A mais clássica justificativa da liberdade de expressão é o conhecido argumento da descoberta da verdade. A ideia é intuitiva, e desconcertantemente otimista: se as opiniões e ideias forem deixadas livres, e for estimulado o atrito entre elas, as verdadeiras findarão por prevalecer sobre as falsas. Há uma versão mais cautelosa que apenas diz que a censura é inferior à discussão livre como método para que as pessoas possam identificar as ideias erradas, uma vez que o censor pode acabar suprimindo a priori ideias verdadeiras em virtude de preferência ou de incapacidade. É um argumento clássico, não necessariamente uma justificativa forte. Em ambientes científicos talvez isso se dê, mas nos ambientes sociais não nos parece, por experiência, que as ideias falsas estejam fadadas inexoravelmente ao fracasso. Ao contrário.

A justificativa baseada na autonomia dos cidadãos parece mais promissora. Na fórmula de Scanlon, um ser humano não é realmente autônomo se o Estado precisa protegê-lo, filtrando o que ele deve ler ou ouvir, para que não corra o risco de adotar convicções falsas. Na versão de Dworkin, quando o Estado decreta que não confia na maturidade dos seus cidadãos para ler ou ouvir opiniões que lhes possam persuadir a adotar convicções perigosas ou ofensivas, na verdade os insulta, subestimando-os e os considerando moralmente irresponsáveis. Cidadãos têm direito à independência moral, que lhes é retirada quando a autoridade se permite pré-selecionar o conteúdo a que eles podem ser expostos.

Há ainda a justificativa baseada no desenvolvimento pessoal. Quem não pode formular e expressar com liberdade suas crenças, principalmente por meio da discussão de pontos de vista, nunca alcançará realmente a maioridade. Sem essa liberdade, não há como cada um escolher seu projeto de vida de acordo com a própria convicção do que é uma vida boa e digna.

Há também o forte argumento de que a vida democrática não se sustenta sem uma deliberação pública aberta, livre e franca, ou, ao contrário, com controles autoritários sobre o que se deve falar e o que deve ser ouvido. Isso impõe à autoridade, inclusive à do Estado, uma essencial neutralidade de pontos de vistas ante as perspectivas que são válidas numa democracia. Direita e esquerda, liberais e conservadores, representam perspectivas legítimas num regime republicano, de forma que o Estado não pode favorecer uns e preterir outros nem nas regulações sobre a vida pública nem na produção de leis e outras decisões políticas. É preciso reservar espaço para posições desagradáveis ou molestas desde que compatíveis com a democracia, caso contrário serão perdidas coisas valiosas para a vida em comum, como a igualdade, o pluralismo, a liberdade de pensamento e a liberdade de buscar o bem e a felicidade em meus próprios termos.

Por fim, há o mais recente argumento: sem liberdade de expressão, perdemos, enquanto seres pensantes, a capacidade de estabelecer o intercâmbio reflexivo que nos faz humanos e cidadãos. Não há de fato pensamento livre se os seres humanos não puderem dizer uns aos outros o que realmente acreditam. Sem liberdade de fala, não há liberdade de pensamento.

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

Imagem: Gaudêncio Fidelis, curador da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, alvo de conservadores - Anderson Astor - 12.set.17/Folhapress

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O FALSO ATALHO DIPLOMÁTICO PARA A VENEZUELA

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Absolvição de Maduro é um falso atalho diplomático de Lula

Petista acerta ao liderar reabilitação da Venezuela, mas mancha processo ao tratar violações como ilusão

O presidente Lula foi mais generoso com Nicolás Maduro do que o candidato Lula. Na campanha, o petista reclamava das sanções impostas ao regime venezuelano, mas driblava os críticos do ditador ao reconhecer os benefícios da alternância de poder. "Desejo para a Venezuela e para todos os países. Não há presidente insubstituível", disse, em agosto.

No Planalto, Lula deixou a concessão de lado. Ao receber Maduro, o brasileiro ignorou as violações democráticas do venezuelano, pintou o companheiro como vítima de "uma narrativa" e agraciou o regime com uma absolvição: "Nossos adversários vão ter que pedir desculpas pelo estrago que fizeram na Venezuela".

Lula não mudou de posição, mas a diferença de tom evidencia o raciocínio por trás de suas escolhas. Antes, o petista preferiu modular o discurso de campanha para amortecer os ataques de seus adversários. Agora, ele faz questão de usar o poder presidencial para ajudar e demarcar uma ligação firme com o vizinho.

Ninguém esperava que Lula convidasse Maduro para ouvir um sermão. O petista corrigiu um erro político ao reatar laços com a Venezuela, reforçou o investimento num projeto de integração regional e se protegeu atrás da doutrina brasileira de não interferência em outros países.

Se parasse por ali, Lula conseguiria beliscar uma vitória diplomática. Dentro do jogo político, poderia até tratar como um lamento ingênuo a exploração, feita por opositores, de sua fotografia ao lado de Maduro. O petista ultrapassou esse limite ao oferecer ao venezuelano uma espécie de defesa coletiva ("nossos adversários") e apresentar conselhos ao ditador.

Lula parece interessado em aproveitar a estatura do Brasil e sua credibilidade internacional para pegar um atalho diplomático enganoso. O objetivo seria acelerar uma reabilitação da Venezuela que, de certa maneira, poupasse o chavismo de um acerto de contas. Tratar a deterioração da democracia como uma ilusão, porém, deixa uma mancha na legitimidade desse processo.

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LULA TAPA O SOL COM A PENEIRA

Mariliz Pereira Jorge, Folha de S. Paulo

Lula pediu que fosse cobrado; pois vamos cobrá-lo

Ao ver Lula e Maduro na maior confraternização, não há como não pensar: cadê um amigo para dar um toque? Não tem. Apoiadores e aliados políticos tratam o presidente como uma criança mimada que não deve ser contrariada. Imaginam que, com o silêncio, conseguem falsear apoio irrestrito do eleitorado às ações do presidente, quando, de fato, servem de trampolim para que ele se jogue na fogueira.

Lula, por sua vez, usa a Presidência em situações delicadas para fazer seu próprio cercadinho para o militante incondicional. Sabemos o que acontece com quem governa assim. Não pegou bem nem entre os líderes no encontro de sul-americanos. O uruguaio Luís Lacalle Pou, por exemplo, estranhou o encontro bilateral antecipado e o endosso de Lula de que a crise democrática na Venezuela é "narrativa": "É tapar o sol com a mão", disse Pou.

O festerê em torno do ditador venezuelano é um vexame mundial, mas principalmente um escárnio diante dos brasileiros que só apertaram 13 contra a ameaça de que o Brasil virasse exatamente o que foi feito no país vizinho, uma ditadura. A bajulação com a qual Maduro foi recebido parece desdém em relação a um momento em que os alicerces da nossa própria democracia ainda estão fragilizados depois do último governo e sua agenda golpista.

Os eleitores preferem tapar o sol com a peneira e se calam, porque criticar Lula seria engrossar o coro da oposição, que deita e rola. Mas silenciar diante do enaltecimento de um ditador é assumir a própria falta de compromisso com o fortalecimento de nossas instituições.

Em dezembro, ao anunciar seu ministério, Lula pediu que fosse cobrado. "Não deixem de cobrar, porque se vocês não cobram, a gente pensa que tá acertando. Quero dizer em alto e bom som: nós não precisamos de puxa-saco. Um governo não precisa de tapinha nas costas. Um governo tem que ser cobrado todo santo dia."

Pessoal, está liberado.

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HOJE O STF DIRÁ A PENA DE COLLOR

Elio Gaspari, O Globo

Aos 73 anos, o ex-presidente e ex-senador Fernando Collor poderá ser condenado a uma pena de algo entre sete e nove anos de cadeia em regime fechado, com direito a alguns recursos. Se dependesse do ministro Edson Fachin, seriam 33 anos, dez meses e dez dias. Nessa conta, Collor seria libertado com 107 anos.

Desde a semana passada, quando o tribunal condenou-o por malfeitorias praticadas como senador, entre 2010 e 2014, calcula-se a dosimetria da pena. Esse caso nada tem a ver com o período em que Collor ocupou a Presidência e dela afastou-se em 1992. Esse processo, onde se detalhava o aparelho corrupto de seu governo, foi mandado ao arquivo pelo mesmo Supremo Tribunal Federal.

Decisão judicial não se discute, mas balbúrdia não se entende. As acusações contra Collor vieram da falecida Operação Lava-Jato, com suas delações premiadas. Passaram os anos, um cidadão folheia o jornal e, nas páginas pares, a turma do juiz Sergio Moro é ré. O então procurador Deltan Dallagnol perdeu o mandato de deputado federal. Nas ímpares, é símbolo do combate à corrupção, permitindo a condenação de Collor. Votando pela absolvição do ex-senador, o ministro Gilmar Mendes recusou-se a sentenciá-lo porque as acusações vieram de delatores, inclusive de delinquentes confessos.

O Supremo que arquivou o processo da máquina de roubalheiras de um presidente da República pode mandá-lo para a cadeia por crimes cometidos no exercício do mandato de senador. Se não tivesse tomado a primeira decisão, a segunda malfeitoria nunca teria acontecido. Isso num país que viu um ex-presidente ser encarcerado pela Justiça e, anos depois, exonerado, recolocado no poder pela vontade popular. Num sinal dos tempos, Cristiano Zanin, o valente advogado de Lula ao tempo em que a Lava-Jato o tratava como pano de chão, é favorito para o preenchimento de uma vaga no STF.

A balbúrdia do Judiciário reflete certa perplexidade do andar de cima nacional com as malfeitorias de seus confrades. Enquanto milhares de brasileiros pobres mofam na cadeia por delitos menores, os maganos são afagados enquanto têm algum poder e apedrejados quando voltam ao chão. Collor tornou-se exemplo desse declínio. Como senador, votou pelo impedimento da presidente Dilma Rousseff e posteriormente aninhou-se no bolsonarismo.

Há mais de meio século, o economista sueco Gunnar Myrdal escreveu que os mecanismos de controle dos governos, quando não funcionam, podem provocar um aumento da corrupção:

— Novas leis, quando não são aplicadas, podem estimular o cinismo.

Myrdal escreveu isso pensando em países da Ásia.

Com seu melancólico desfecho, a Operação Lava-Jato envenenou por muitos anos o combate à corrupção no Brasil, o que também não é novidade porque, em 1960, Jânio Quadros elegeu-se cavalgando uma vassoura e, muitos anos depois, debilitado, foi levado à Suíça para localizar o banco onde havia deixado sua poupança.

A astúcia do andar de cima nacional produziu situações que embaralham o raciocínio de Myrdal. Os mecanismos de controle não funcionam, mas dão um jeito para mostrar que funcionaram.

Collor caiu nessa máquina de moer quem perde o poder.

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LULA PODE TER TRINCA DE VEXAME INTERNACIONAL

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Com Ucrânia, Venezuela e ambiente, Lula pode ter trinca de vexame internacional

Acossado no front doméstico do Congresso, Lula ainda comete disparates internacionais

Apesar dos delírios de grandeza de Lula 3, não há hipótese de seu governo ser capaz de fazer algo que preste pelo fim da guerra da Rússia contra a Ucrânia. O Brasil mora longe, é mal pago, não tem dinheiro ou armas.

Haveria chance pequena de fazer algo pela Venezuela. Por exemplo, um acordo de líderes regionais para elaborar um plano de transição no país vizinho. Não costuma dar certo, mas é o que temos. Além do mais, a maioria da América Latina está mal das pernas, para variar, em crises mais ou menos graves na economia e em surtos de burrice e violência, recorrentes. Mas, pelo menos, poderia ser uma alternativa ao projeto cruel e fantasista dos Estados Unidos de entregar o país à direita lunática e de matar os venezuelanos de fome.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva preferiu, no entanto, estimular Nicolás Maduro a mentir ainda mais e a inventar uma "narrativa" para a ruína sórdida que esse tiranete ajudou a criar por lá. Tratou Maduro como amigão e fez um discurso entusiasmado a favor da propaganda enganosa.

Poderia ser apenas espuma de disparate isolado. Não é o caso. O governo de Lula 3 ainda tenta remendar o estrago de sua aventura russo-ucraniana. Há o risco de vexame internacional no ambiente.

Juntem-se as palavras "oil", "Amazon", "native Brazilians" e Lula em uma manchete de um texto que trataria da exploração de petróleo na bacia da Foz do Amazonas, o mar diante do Amapá e de Marajó (Pará).

A reportagem imaginária trataria também da derrota dos defensores de demarcação de mais terras para indígenas (o tal "marco temporal"). Contaria também que a direita fez um "strike", derrubando um monte de pinos progressistas. Rapou parte do recheio dos ministérios de duas mulheres não-brancas (Marina Silva e Sonia Guajajara), defensoras da floresta, do ambiente, de povos originários e de outros povos prejudicados.

Como se sabe, o agro ogro, clientelistas e a direita chucra em geral tiraram órgãos e instituições dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Originários.

Essa reportagem imaginária explicaria que essas derrotas se devem ao fato de Lula 3 não ter força no Congresso e, também, de que integrantes de governo e do PT não ligam muito lá para ambiente e indígenas. Para completar, falta apenas a Amazônia pegar fogo por causa da temporada de El Niño que se aproxima —nada a ver com Lula, decerto, mas o estrago estaria completo: "Lula não contém ruína ambiental no Brasil".

Como se não bastasse o risco de má fama internacional, os disparates e tropeços políticos do governo se juntam às bobagens e tombos domésticos.

Na semana passada, Lula lançou o "Mais Carros", um troço literalmente sem pé nem cabeça. Uma ideia econômica, tecnológica, social e ambiental já em si ruim, foi anunciada de resto sem qualquer fundamento, sem contas de custo e benefício. Um fiasco.

Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara e premiê informal do governo semipresidencialista de coabitação (PT no Executivo, direita no Congresso), está deixando o barco correr e tripudia. Toma cuidado apenas nos casos dos "projetos de país", como o arcabouço fiscal e outros assuntos que interessam também aos donos do dinheiro.

Acaba de dizer que o governo não apresentou plano algum para resolver o problema da demarcação das terras indígenas e que, assim, vai tomar uma tunda, com beneplácito de Lira. Disse que a Câmara vai fazer o que quiser quanto à organização dos ministérios; que ele, Lira, lava as mãos e que o petista se vire com as hienas. Em suma, Lula 3 não tem força nem ao menos para reorganizar o governo, pós-trevas de Jair Bolsonaro.

Com tanto rolo, Lula ainda deu o show venezuelano para agradar à plateia mais retrógrada do PT. Durma-se com um Maduro desses.

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AGENDA HADDAD NA CORRIDA DE OBSTÁCULOS

Lu Aiko Otta, Valor Econômico

Há momentos em que decisões de Lula parecem contraproducentes para o próprio governo

Não é de hoje, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem atropelado a agenda do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Chefe tem esse direito. Mas há momentos em que essa prática parece contraproducente para o próprio governo.

O caso do incentivo fiscal ao consumo de automóveis é um exemplo. Para socorrer as montadoras, que amargam uma taxa de ociosidade de 50%, o governo aceitou dar descontos no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e nas contribuições PIS/Cofins, que somarão entre 1,5% e 10,96%.

Abrir mão de receitas não parece boa ideia nesse momento. A principal dúvida do mercado em relação ao novo arcabouço fiscal é se ele será capaz de entregar o prometido, pois para isso será necessário elevar fortemente a arrecadação. A ajuda às montadoras vai na direção contrária.

Atropela o discurso do ministro que, exatamente para elevar receitas, vem defendendo cortar em 25% a conta dos gastos tributários. Esse é um conjunto de medidas destinadas a reduzir ou eliminar a cobrança de impostos sobre setores ou produtos que chega a R$ 600 bilhões. Há os que são benéficos à economia, diz ele. E há os ditos jabutis - aqueles que só estão no alto das árvores por força de enchente ou mão de gente.

Não foi o primeiro atropelamento. Haddad já estreou como ministro da Fazenda pilotando uma crise: o adiamento, de 1º de janeiro para 1º março, da volta dos tributos federais sobre combustíveis.

No caso dos automóveis, a equipe de Haddad trabalha para limitar os danos. Quer manter os descontos de impostos pelo menor tempo possível. As montadoras pediram pelo menos um ano. Haddad disse em entrevista à GloboNews que deve ser coisa de três ou quatro meses.

Investir contra a concretização do arcabouço fiscal é má ideia principalmente porque os juros de longo prazo começaram a cair após a aprovação da proposta na Câmara dos Deputados. O mercado trabalha com taxas na casa dos 10% daqui a 18 meses, apontou o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, indicado para diretor de Política Monetária do Banco Central, em evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Isso, mesmo considerando que ninguém do mercado morreu de amores pela nova regra, considerada frouxa. E que ela, a rigor, ainda não existe. Precisa passar pelo Senado, onde tende a ser retida por algum tempo e a sofrer modificações, antes de virar lei.

Com todas essas ressalvas, a aprovação do arcabouço reforçou um quadro propício ao corte da taxa de juros básica da economia, a Selic, hoje em 13,75%. Os números mostram que o mercado enxerga juros menores à frente.

Também nesse ponto, os ataques de Lula ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e à autonomia do Banco Central não ajudaram. Durante o tiroteio, qualquer movimento em direção ao corte da taxa, se houvesse condições, seria confundido com interferência política na autoridade monetária - o que não seria bom.

A queda dos juros de forma consistente e sustentada, isso sim, ajudaria a destravar as vendas. Não só das montadoras, mas para toda a economia.

Potencial candidato à sucessão de Lula, Haddad não posa de derrotado. Pelo contrário, procura colocar panos quentes nas situações. Pondera que os pedidos do presidente refletem o programa econômico que venceu nas urnas em outubro de 2022. E que o ambiente politicamente polarizado exige cautela nas ações do governo. Aos poucos, porém, vai impulsionando sua agenda.

Na negociação com a indústria automobilística foram discutidas outras medidas mais modernas, estruturais e de caráter horizontal, que ajudariam toda a economia, e não apenas um setor. Por exemplo, o novo marco legal para garantias.

É um projeto de lei elaborado no governo de Jair Bolsonaro que já foi aprovado na Câmara e aguarda votação no Senado. A atual equipe de governo examinou a proposta e está de acordo com os pontos que facilitam aos agentes financeiros executar garantias para não tomar calote. É uma forma de reduzir juros.

Haddad sinalizou com um programa de depreciação acelerada, que permitirá às empresas recuperar mais rapidamente os investimentos que fizerem na compra de novas máquinas e equipamentos. Essa recuperação se dá via redução de impostos, o que demonstra que o ministro admite o uso de estímulos tributários, a depender de sua finalidade.

No caso, a renovação do parque industrial vai na direção da agenda ambiental que o governo diz ter abraçado. O incentivo fiscal a automóveis individuais movidos a combustíveis fósseis e as hesitações quanto à exploração de petróleo no litoral da região Norte vão na direção contrária.

O papel do Brasil como potência ambiental tem sido reforçado em todos os foros internacionais de que o país participa. No entanto, os benefícios desse futuro que tanto promete ainda não são palpáveis. Só serão vislumbrados a partir do segundo semestre.

Num governo ainda sem uma marca, a estratégia econômica avança. Seria bom o conjunto do governo apoiá-la.

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ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DA ARTICULAÇÃO POLÍTICA

Fernando Exman, Valor Econômico

Até agora contida, a reação da ministra Marina Silva ao esvaziamento da pasta do Meio Ambiente é um contundente sinal de que o governo passa, enfim, a reconhecer em público as limitações de sua base de sustentação no Congresso.

Em teoria, interlocutores do governo ponderam que o Executivo mantém uma boa margem de manobra na Câmara. Mas precisará calibrar a estratégia de interlocução com os deputados para usufrui-la e virar o jogo. Afinal, a “frente ampla” que reconduziu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto ainda não se replicou em uma aliança congressual sequer capaz de manter o texto de uma medida provisória.

Uma fonte pega como exemplo a votação do texto-base do novo arcabouço fiscal e, com um lápis na mão, faz um exercício. Na semana passada, contabiliza, 372 deputados cravaram o voto a favor do parecer, um se absteve e 108 foram contra. No entanto, observa, neste último grupo estavam 12 deputados do Psol e um do Rede. Portanto, tirando esses que preferiram marcar posição contra as novas regras fiscais mesmo que à revelia da orientação governista, apenas 95 dos 513 deputados teriam fechado completamente as portas para os interlocutores do Executivo e podem ser considerados 100% oposição.

Em teoria. Na prática, essa divergência de Rede e Psol causou desconforto na base. Foi considerada oportunista, embora longe de ser vista como um rompimento. Espera-se agora que as duas siglas não reincidam e fiquem com o presidente se alguma crise mais grave surgir. Criou-se um precedente.

Em outra frente, deputados do PL, PP e Republicanos, que apoiaram o ex-presidente Jair Bolsonaro na campanha eleitoral, entregaram diversos votos em favor do arcabouço fiscal. São parlamentares vistos como potenciais aliados, caso o governo compreenda de vez a dinâmica que vem regendo as relações dos dois Poderes nos últimos anos.

Após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Michel Temer tomou posse com o compromisso de abrir as portas do palácio para os congressistas e governar junto com o Parlamento. Em 2019, Bolsonaro tentou fazer política negociando diretamente com frentes parlamentares temáticas. E fracassou. Após realizar reiteradas ameaças ao estado democrático de direito, precisou acomodar o Centrão no núcleo decisório do Palácio do Planalto para se proteger, terceirizou a articulação política e cedeu a gestão de fatia considerável do Orçamento para o Legislativo. Não bastasse, também perdeu ascendência sobre a pauta de votações do Legislativo.

Não resta opção ao governo além de reconhecer que o Congresso tornou-se um poderoso nicho de poder e não recuará, alerta um aliado. Sobretudo em um cenário em que a população elegeu um Congresso majoritariamente conservador, a despeito das bandeiras progressistas do candidato alçado à Presidência. Se o governo acredita que liberar a conta gotas as emendas parlamentares irá minar a longo prazo o poder do Centrão, a cúpula do Congresso sacará suas pipetas para pausadamente dosar o ritmo de tramitação da agenda legislativa de interesse do Executivo.

Nesse cenário, alguns interlocutores de Lula fora do PT se arriscam a palpitar: o Planalto precisa ter paciência, resiliência e seletividade na pauta. Em outras palavras, definir uma lista enxuta de projetos considerados fundamentais e negociá-la com os presidentes da Câmara e do Senado. Será preciso reconhecer que na grande maioria dos casos o Congresso fará prevalecer sua palavra final em relação às proposições do Executivo e a eventuais vetos presidenciais. O projeto sobre o marco temporal das terras indígenas é um exemplo.

Em um novo formato de interação institucional, argumentam esses aliados de Lula, o governo deveria se aproximar dos parlamentares novatos, ampliar a interlocução para além dos líderes de bancada e fortalecer politicamente os ministros que possam arregimentar votos no varejo. Isso requer poder para distribuir cargos e negociar emendas.

Na votação do texto-base do arcabouço fiscal, aliás, o único deputado em exercício do partido de Marina Silva, o Rede Sustentabilidade, votou contra. O detalhe não passou despercebido por aqueles que, mesmo sendo de partidos alinhados ao governo, estão ajudando a desfigurar a medida provisória que dá novo formato ao organograma da máquina pública federal e esvazia o Ministério do Meio Ambiente.

Para um influente interlocutor do presidente, isso decorre de outra característica da atual legislatura: um número substancial de parlamentares fala hoje diretamente com o seu eleitorado por meio das redes sociais e não se preocupa com eventuais constrangimentos que seus posicionamentos possam causar na opinião pública em geral. Caso a ministra tivesse adotado um tom mais belicoso, muitos não se furtariam a atacá-la com desproporcional virulência. Teriam a oportunidade de causar a primeira baixa do governo Lula.

Recordou-se de imediato o embate protagonizado em 2015 pelo então ministro da Educação, Cid Gomes, e o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, expoente do Centrão que meses depois abriria o processo de impeachment contra Dilma. Chamado à Câmara para explicar por que chamou os deputados de "achacadores", Cid Gomes disse da tribuna do plenário que preferia ser acusado de mal-educado que de achaque. Saiu do Congresso praticamente demitido.

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TRÊS PARTIDOS AJUDAM A PASSAR A BOIADA DO MARCO TEMPORAL

Bruno Carazza, Valor Econômico

MDB, PSD e União Brasil ajudam a passar a boiada do marco temporal

Maioria da Câmara dos Deputados é contrária à agenda ambiental, revela levantamento

Minha conta é imprecisa, porque o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deixa a critério dos próprios candidatos preencherem a sua declaração de bens e a classificação feita pelos servidores do Judiciário não traz os detalhamentos necessários. Segundo o meu levantamento, porém, dos 513 deputados federais eleitos em 2022, pelo menos 449 (87,5%) são proprietários rurais.

A conta foi feita levando em consideração apenas aqueles que declararam possuir fazendas, sítios, chácaras, glebas de terras, tratores, colheitadeiras, cabeças de gado, cavalos e afins – e não investigou sua participação em empresas agropecuárias.

Obviamente trata-se de uma medida aproximada, pois há uma grande diferença entre um deputado que possui um pequeno sítio para passar o final de semana e outro que seja um grande produtor de soja. Da mesma forma, ser proprietário rural e defender a sustentabilidade ambiental ou a instituição de reservas indígenas não são necessariamente características e posturas antagônicas.

Em Formação Política do Agronegócio (2021), o pesquisador Caio Pompeia demonstra como nos últimos anos abriu-se uma divergência nas entidades representativas do agro no Brasil. De um lado, posicionaram-se associações avessas à pauta ambiental, como a União Democrática Ruralista (UDR), a Aprosoja e ultimamente a própria Confederação da Agricultura e Pecurária do Brasil (CNA). No outro extremo, situam-se entidades mais progressistas, como a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura.

Um levantamento conduzido pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) lança luz sobre como essas clivagens do agro repercutem no Congresso Nacional, apresentando dados muito mais precisos sobre o perfil da atual legislatura em relação à questão ambiental.

Batizado de Farol Verde, o trabalho consistiu em mapear o Índice de Convergência Ambiental (ICAm) de cada parlamentar reeleito para identificar como eles se posicionaram nas votações de 12 matérias de impacto sobre o meio-ambiente na legislatura passada (2019-2022). As proposições selecionadas tratavam de temas como grilagem de terras, regularização fundiária, flexibilização do código florestal, mineração em terras indígenas, liberação de agrotóxicos, licenciamento ambiental, mercado de créditos de carbono, entre outros.

Para medir o Índice, os pesquisadores do IDS compararam os votos de cada parlamentar com os posicionamentos dos líderes da Frente Parlamentar Ambientalista no Congresso. Os resultados sinalizam como será difícil essa agenda nos próximos anos.

De acordo com o levantamento, nada menos que 43% dos novos deputados têm forte divergência com a agenda climática e socioambiental, com o ICAm inferior a 30%. Outros 30% do Plenário têm postura intermediária, mas com viés de baixa (ICAm entre 31% e 49%). O estudo estima que somente 27% dos parlamentares podem ser considerados “verdes”, com índice de convergência superior a 50%, a maioria de partidos de esquerda.

Na votação de hoje do projeto de lei que regula o marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas (PL nº 490/2007), a proposta foi aprovada por 283 votos, diante de 155 contrários e uma abstenção. A pauta ambiental, portanto, perdeu por 64,5% a 35,6%, resultado bastante similar ao previsto pelo Farol Verde do IDS.

Entre os partidos que se posicionaram integralmente contra estiveram apenas PT, Psol, PCdoB e Rede – e até PV, PDT e PSB deram alguns votos para a vitória do marco temporal.

Já nas legendas de centro-direita que integram a base do governo, MDB (73,3%), PSD (73,5%) e União Brasil (96%) votaram maciçamente a favor da proposição, contrariando a orientação do governo Lula e contribuindo de modo decisivo para o resultado final.

Pelo perfil conservador dos congressistas e a fragilidade do governo em manter coesa a sua base, a agenda ambiental continua a correr perigo na atual legislatura.

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LIRA QUER A CABEÇA DE RENAN FILHO

Vera Rosa, O Estado de S. Paulo

Arthur Lira exige do Planalto demissão de filho de Renan Calheiros do Ministério dos Transportes

Presidente da Câmara está inconformado com ataques de Calheiros e impõe derrota a governo

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mandou um duro recado, na noite desta segunda-feira, ao Palácio do Planalto: quer a demissão do ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB). Lira ficou furioso com um tuíte do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que é seu adversário político e pai do ministro. Na postagem, Calheiros escreveu que Lira é “caloteiro”, “desvia dinheiro público” e “bate em mulher”.

Inconformado com os ataques, o presidente da Câmara avisou os articuladores políticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, enquanto Renan Filho não sair, a vida do governo na Câmara ficará ainda mais difícil. Em público, porém, Lira nega a ameaça. “Não pedi a cabeça de ninguém, mas quero respeito”, afirmou. “O problema do senador é psiquiátrico.” As acusações de violência doméstica que pesam contra Lira foram rejeitadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Lula foi informado da situação e, de acordo com auxiliares, encarou o embate como mais uma chantagem. Expoente do Centrão, Lira não se dá bem com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), e não se cansa de repetir que o governo não conta com base aliada sólida para aprovar propostas na Câmara sem o seu empenho.

Embora Lula tenha ignorado o recado do presidente da Câmara, ministros não têm dúvida de que ele precisará entrar pessoalmente em cena para conter a nova crise.

Na noite desta terça-feira, por exemplo, Lira impôs nova derrota ao Planalto, conseguindo aprovar no plenário o projeto do marco temporal das reservas indígenas, que só permite a demarcação de terras até 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição.

“Aqui é assim: uma no cravo e outra na ferradura para o governo não ficar se achando só porque passou o arcabouço fiscal”, disse o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).

Nos bastidores, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), culpa o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), por ter aberto a porteira para a ofensiva do Centrão que desidratou sua pasta e também a dos Povos Indígenas. A exemplo do marco temporal, a lipoaspiração desses dois ministérios também teve o apoio da bancada ruralista.

Marina avalia que a retirada do Cadastro Ambiental Rural e da Agência Nacional de Águas de sua alçada foi uma retaliação ao veto do Ibama para que a Petrobras perfurasse um poço de petróleo na costa do Amapá. Trata-se do Estado de Randolfe e do senador Davi Alcolumbre.

“Eu não briguei com a Marina. Mas lutaremos até o fim contra essa decisão do Ibama”, admitiu Randolfe.

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MESURAS AO DITADOR

Editorial Folha de S. Paulo

No afã de apoiar autoritarismo da Venezuela, Lula apequena diplomacia brasileira

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deixou vestígios de conduta autoritária ao longo de sua longa trajetória política —mesmo velhos ensaios de controle da imprensa nunca foram levados a cabo. O que mancha sua reputação democrática é o apoio, para o qual arrasta o Estado brasileiro, a regimes ditatoriais de seu horizonte ideológico.

Não chegaram a surpreender, portanto, as mesuras e afagos de Lula ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, que voltou a visitar o Brasil depois de oito anos e participou de um encontro de presidentes da América do Sul.

Nada há de errado, do ponto de vista diplomático, em manter relações com regimes autoritários de qualquer orientação, seja por interesses comerciais ou geopolíticos, seja na negociação por liberdade e direitos humanos.

Nesse sentido, a política de enfrentamento a Maduro, conduzida por Jair Bolsonaro (PL) sob a inspiração do americano Donald Trump, mostrou-se estéril —ou, pior, contribuiu para fortalecer o discurso persecutório do vizinho.

Já Lula foi, na segunda-feira (29), muito além de mostrar a correta disposição ao diálogo. Não satisfeito em proporcionar uma recepção de gala ao visitante, prestou-se a defender o regime chavista.

De acordo com o mandatário brasileiro, a caracterização da Venezuela como uma ditadura não passa de uma "narrativa", que pode perfeitamente ser substituída por outra. O país vizinho sofre centenas de sanções internacionais, segundo a narrativa lulista, "porque outro país não gosta dele".

Há zonas cinzentas entre uma democracia plena e um regime autoritário, mas não pode restar dúvida de que a Venezuela há muito cruzou essa fronteira. Esta Folha considera Maduro um ditador desde agosto de 2017, depois da criação de uma Assembleia Constituinte para enfrentar o Legislativo de maioria oposicionista.

Mas o processo de degradação da democracia venezuelana começou bem antes, sob Hugo Chávez, que esteve no poder de 1999 a 2013, quando morreu. O caudilho aproveitou a popularidade obtida graças à alta dos preços do petróleo para aparelhar as instituições e ampliar os próprios poderes.

Maduro assumiu quando os ventos econômicos já mudavam de direção —e patrocinou uma escalada de atrocidades documentadas pela ONU, incluindo torturas e assassinatos, enquanto o país mergulhava numa crise humanitária comparável aos impactos de guerras.

No afã de defender uma esquerda arcaica, obscurantista e autoritária, Lula não apenas alimenta mentiras descaradas. Também apequena a diplomacia brasileira e relativiza o sofrimento de milhões de cidadãos em um país devastado.

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ESPANHA POLARIZADA

Editorial Folha de S. Paulo

Premiê arrisca antecipar eleição geral para reverter vitória regional da direita

A polarização política é fenômeno que se espraia pelo Ocidente. Na Europa, a ultradireita chegou ao poder na Itália e na Suécia. Agora, a Espanha está em situação que pode gerar desfecho similar —o que é inesperado, dado que o país é um dos bastiões do socialismo continental, ao lado de Portugal.

O conservador Partido Popular (PP) venceu as eleições regionais —municipais, algumas estaduais e em parte para o Parlamento— realizadas no domingo (28). Na prática, a direita tomou o controle de quase todas as regiões do país.

Já o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro-esquerda, ficou em segundo e perdeu o poder em grandes cidades notáveis pelo suporte à esquerda, como Sevilha e Valência.

A ascensão do PP se deu a partir de coalizões com o Vox, partido neófito de ultradireita. Em comparação com 2019, a queda do PSOE foi ínfima, de 29% para 28% dos votos. Mas o PP passou de 23% para 31%, enquanto o Vox conseguiu duplicar sua votação geral, de 3,5% para 7%.

O resultado foi tão surpreendente que Pedro Sánchez, premiê espanhol do PSOE, antecipou as eleições gerais que seriam realizadas em novembro para 23 de julho.

Sánchez quer evitar desgaste de imagem e pressionar o eleitorado de esquerda a ir às urnas (foi fraco o comparecimento no pleito regional) para impedir uma escalada da direita radical no âmbito federal.

O movimento é arriscado, dado que os problemas que levaram ao fortalecimento da oposição não têm solução fácil nem rápida.

No poder desde 2019, após eleições que também foram antecipadas, Sánchez realizou acordos controversos com grupos separatistas catalães e nacionalistas bascos —até com candidatos condenados por terrorismo. A questão territorial é tão delicada no país que une eleitores de esquerda e direita contra o divisionismo.

Ademais, o PSOE firmou aliança com o Unidas Podemos, coligação de ultraesquerda que promoveu pautas de costumes polêmicas, em temas como aborto e direitos de transgêneros. Parte dos votos no Vox foi resposta a isso.

A situação espanhola reflete a polarização política, observada também, guardadas as proporções, no cenário brasileiro: ações rumo a determinado objetivo ideológico geram reações do campo oposto.

Vota-se menos pelo desejado e mais contra o que se considera inaceitável, o que pode favorecer solavancos na alternância de poder.

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DESCALABROS PERDOADOS PELA PEC DA ANISTIA ENVERGONHAM CLASSE POLÍTICA

Editorial O Globo

Deputados e senadores insistem em levar adiante proposta que anula as sanções impostas pela Justiça Eleitoral

Descalabros dos partidos políticos nos últimos anos estão mais perto de ser chancelados pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que perdoa todo tipo de farra das legendas com o dinheiro do contribuinte. A PEC da Anistia avança no Congresso depois de ter sido aprovada por ampla maioria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Uma análise do GLOBO em processos de prestação de contas à Justiça Eleitoral mostra que tipo de inconsistência será perdoada se o texto passar em plenário.

A extravagância mais bizarra foi o reembolso de R$ 61 mil do então PSL (hoje parte do União Brasil) a um político que abasteceu o mesmo carro com gasolina e diesel. O caso aconteceu em 2018, mas faz parte das análises mais recentes (o TSE leva em média cinco anos para julgar as contas dos partidos). Também em 2018, o Democracia Cristã (DC) declarou ter gastado R$ 64 mil com combustível, sem comprovar que a despesa tinha ligação com a atividade partidária, como determina a lei. O abastecimento foi feito no posto que tem como sócio o presidente do partido, José Maria Eymael. O DC disse ao GLOBO que o posto pratica preços de mercado e negou vantagem escusa. Não havia outro posto para abastecer que não o do democrata-cristão Eymael?

Noutro caso sob investigação do Ministério Público Eleitoral, o DEM declarou ter gastado quase R$ 1 milhão fretando aviões. Alegou que foram despesas da campanha de Rodrigo Maia à presidência da Câmara. O valor chamou a atenção por ser maior que o pago em 2022 pelos presidenciáveis Soraya Thronicke (R$ 875 mil) e Ciro Gomes (R$ 822 mil) com aluguel de aeronaves.

Situação também comum é usar o dinheiro público em despesas que nada têm a ver com a atividade partidária. O PROS (incorporado posteriormente ao Solidariedade) foi condenado a devolver R$ 134 mil usados na compra de 3,7 toneladas de carne para churrasco. De tão escandaloso o episódio, os parlamentares cogitam vetar a anistia para casos assim. Outras irregularidades graves acaso seriam toleráveis?

A miríade de incongruências revela a urgência de moralizar os gastos dos partidos com dinheiro do contribuinte. Lamentavelmente os parlamentares — de quase todas as legendas e correntes ideológicas — seguem apoiando a maior anistia da História recente aos malfeitos partidários. Além das fraudes e pedaladas nas prestações de contas, ela abrange descumprimento das cotas para mulheres e negros nas eleições. As multas, nos casos comprovados de mau uso das verbas dos fundos eleitoral e partidário, têm efeito pedagógico para coibir práticas nefastas. O “liberou geral” promovido pela oportunista PEC da Anistia é, ao contrário, um incentivo para que os recursos públicos destinados com fartura aos partidos escorram pelo ralo.

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RECEPÇÃO DE LULA A MADURO FOI VEXATÓRIA

Editorial O Globo

Ditador venezuelano foi tratado pelo presidente brasileiro como se fosse um “amigo de fé” democrata

É conhecido o apego do presidente Luiz Inácio Lula da Silva às “ditaduras amigas” do PT — especialmente, Cuba, Nicarágua e Venezuela —, mas passou muito do tom a recepção efusiva ao ditador venezuelano, Nicolás Maduro, recebido por Lula no Palácio do Planalto com todas as honras de chefe de Estado na véspera da reunião com presidentes da América do Sul.

Num discurso recheado de incoerência e exagero, Lula se referiu ao encontro com Maduro como “momento histórico”. Aproveitou para dizer que o Brasil recuperou o direito de fazer relações internacionais “com seriedade”. Criticou os Estados Unidos pelo embargo econômico “pior do que uma guerra” e, numa ofensa às famílias das vítimas da ditadura, chamou de “narrativas” a constatação de que a Venezuela não vive sob regime democrático. Os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, condenaram as declarações de Lula.

Em que planeta vive ele? Ao contrário do que diz, os ataques à democracia na Venezuela estão longe de ser fantasia. São fatos comprovados por organizações internacionais e locais que tentam resistir à asfixia imposta pelo governo autocrata. Lula parece não querer enxergar o óbvio: o regime chavista, que se perpetua no poder há duas décadas e meia manipulando regras eleitorais e manietando as instituições, é marcado por violação de direitos humanos, censura à imprensa, perseguição a opositores, submissão de Judiciário e Legislativo ao Executivo e práticas perversas que não fazem parte do cotidiano de Estados democráticos.

Pode ser considerado democrático um país que mantém 300 presos políticos e cala qualquer oposição? Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, além de prender jornalistas, políticos, sindicalistas e cidadãos que não seguem à risca a cartilha chavista, o governo Maduro obstrui sistematicamente o trabalho da Assembleia Nacional. A mão de ferro não esconde as crises econômica, social e humanitária que assolam o país. A Human Rights Watch estima que 7 milhões de venezuelanos emigraram. No Brasil, o êxodo pressiona Roraima, estado que recebe contingentes cada vez maiores da população fustigada pelo desemprego e pela miséria.

Lula foi eleito para seu terceiro mandato sob a bandeira da defesa da democracia. Reuniu uma frente ampla num momento em que as instituições republicanas eram ameaçadas pela conspiração golpista que eclodiria no 8 de Janeiro. É no mínimo contraditório que celebre com desenvoltura um regime oposto a tudo que pregou aos eleitores.

Não está errado o presidente brasileiro buscar integração com as nações da América do Sul. O isolamento durante o governo Jair Bolsonaro, regional e mundial, era um equívoco. Também é compreensível o gesto de reaproximação com a Venezuela, cujo governo estava afastado do Brasil desde 2016. Faz sentido o Brasil manter relações com Maduro e até mediar uma eventual transição venezuelana de volta à democracia. Nada disso destoaria da tradição da política externa brasileira.

Mas nenhum outro líder que participou do encontro no Itamaraty foi tão bajulado quanto Maduro. Uma coisa é o governo brasileiro se oferecer como negociador para uma transição à democracia. Outra, bem diferente, é estender tapete vermelho a um ditador, chamá-lo de democrata contra todas as evidências e tratá-lo como “amigo de fé, irmão camarada”. É vexatório.

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IMPROVISOS E INDEFINIÇÕES NO CAMINHO DO CARRO POPULAR

Editorial Valor Econômico

Incrível que um governo que diz pretender colocar a agenda verde no centro de seu planejamento tente ressuscitar uma má ideia em circunstâncias tão inoportunas

O programa de incentivo ao carro popular foi ajeitado às pressas, sabe-se lá com que finalidade, e parece ter nascido morto. Ele foi concebido sem que se definam contrapartidas de receitas para a redução de impostos, que também não foram definidos - os mais cotados são IPI e PIS-Cofins, mas o IOF no crédito pode ser incluído. Mesmo com os descontos nos preços, os automóveis populares, ainda que passem a custar um pouco abaixo dos R$ 60 mil, continuarão inacessíveis. Eles seguirão três condicionantes, o que torna impossível estimar seu custo a priori. A conta dos especialistas varia de R$ 2 bilhões a R$ 8 bilhões, enquanto a do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fala em menos de R$ 1 bilhão. Os detalhes do plano, anunciado na semana passada, serão divulgados em 15 dias, mais um caso de uma ideia (ruim) anunciada, correndo depois atrás do dinheiro, que não se sabe se existe.

Em princípio, dentro da agenda passadista de Lula, havia a impressão de que se tratava de incentivar o carro popular a curto e médio prazos, aumentando as vendas hoje deprimidas da indústria automobilística e, com isso, as de toda sua enorme cadeia de fornecedores e de serviços. Se fosse isso já seria um grande equívoco, mas pelo visto, o erro será de curta duração. No dia em que Lula anunciou seu plano, Haddad mencionou que algumas medidas teriam de ficar para o ano que vem, por motivos óbvios, ou seja, porque o ministro da Fazenda corre contra o tempo para arrumar mais recursos e, assim, manter de pé o arcabouço fiscal recém aprovado pela Câmara, que depende sobretudo de aumento da arrecadação.

No dia seguinte, em entrevista à GloboNews, Fernando Haddad disse que o programa do carro popular terá duração de uns “três ou quatro meses”, enquanto representantes da indústria contavam com pelo menos um ano, prazo no qual acrescentariam vendas de 200 mil a 300 mil veículos. As intenções do governo tornaram-se ainda mais obscuras e incongruentes quando o ministro disse que o pouco tempo do incentivo era uma resposta imediata para desafogar os lotados pátios das montadoras, ou dar fluxo a estoques excessivos. É um mistério por que o Planalto está preocupado com o excesso de estoques apenas das montadoras quando sabe que outros setores da economia estão com o mesmo problema.

Haddad mencionou o crédito restritivo e os juros altos para explicar que, com a queda do custo do dinheiro e a retomada da economia, que ele estima para já, a redução de impostos não seria mais necessária. Ainda que assim fosse, há mais pontos nebulosos. Os descontos, como foi divulgado, variarão de 1,5% a 10,96%, uma gradação que depende do grau de nacionalização do veículo, de sua eficiência energética e do preço. No entanto, nenhum dos carros que poderiam ser considerados de “entrada” no mercado, mesmo com o abatimento máximo, custaria menos de R$ 61,4 mil (Folha de S. Paulo, 26 de maio).

É possível que sejam então fabricados novos carros, ainda mais simples, que ganharão o incentivo da redução de impostos. Então isso nada teria a ver com os estoques existentes, e daria um empurrão de um trimestre na produção, ou um pouco mais, para ser interrompido em seguida. As montadoras, no entanto, por várias razões, desembarcaram do carro popular há um bom tempo. Várias argumentaram que ele não era lucrativo, ou que suas margens de ganho eram bastante reduzidas. Concentraram-se em modelos mais caros.

Entre o auge do carro popular, em 2013, quando foram vendidos 3,57 milhões de veículos (total, não apenas dos modelos mais simples) e agora há um milhão de veículos a menos de vendas. Embaladas pelo avanço da demanda puxada pelos populares, as montadoras elevaram sua capacidade de produção para 4,5 milhões de unidades. A ociosidade hoje ronda os 50%, fábricas já vêm sendo fechadas e as indústrias tentam se adequar ao mercado que, para complicar um problema já complexo, está em completa transformação no mundo todo, com a chegada do carro elétrico, direção autônoma etc. Não foi à toa que, seja qual for o programa que finalmente sairá, as montadoras não se comprometeram com a manutenção dos empregos.

Entre o período de pico e o fim do carro popular, a economia mudou. Houve a maior recessão em quase 100 anos, perda significativa de renda da população, alta do desemprego e um aumento do endividamento das famílias, que ainda não parou de crescer. As chances de que a tentativa de impulsionar artificialmente a demanda dê errado são enormes. Além disso, o mundo caminha em outra direção, de revolucionar a mobilidade urbana, incentivando a redução do uso de transporte individual e ampliando a dos coletivos, eletrificados, com maior tecnologia, e, principalmente, minimizando ou, de preferência, dispensando o uso de combustíveis fósseis.

Parece incrível que um governo que lançou um programa que se apoia no aumento de receitas e que diz pretender colocar a agenda verde no centro de seu planejamento seja capaz de ressuscitar uma má ideia e, ainda mais, em circunstâncias tão inoportunas.

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terça-feira, 30 de maio de 2023

A DIFÍCIL TAREFA DE PREVER O FUTURO

Evandro Milet, OS DIVERGENTES

Não é fácil prever o futuro em tecnologia. Quando uma novidade tecnológica aparece imaginamos um desfecho para quando for disseminado na sociedade, mas o que acontece é muitas vezes diferente do que se previa.

Em meados da década de 1990, quando a internet começou a se popularizar, havia a ideia de que ela não deveria ser comercial, suportando anúncios, por exemplo. Deveria ser mantida com a vocação original de uma rede de pesquisas. Aconteceu aí a primeira surpresa dos caminhos imprevisíveis para onde a evolução da rede nos leva.

Nessa época, o avanço da tecnologia gerava previsões de que poderíamos ter centenas de canais de TV, cada uma especializada em um nicho de interesse. A dúvida era se haveria empresas para desenvolver tanto conteúdo. Não se imaginava que isso aconteceria não só na TV, mas também muito na internet, e que o conteúdo seria desenvolvido não só por empresas produtoras, mas pelo público. O público que diante de uma TV era passivo passou a interagir com esse novo meio de maneiras surpreendentes.

Cada tecnologia gera novos negócios e muitas empresas vão ficando pelo caminho sem conseguir antecipar as mudanças. A recusa da Blockbuster em comprar a Netflix, antes do boom do streaming, por apenas 50 milhões de dólares em 2000 é um exemplo histórico disso.

Há alguns poucos anos era possível até imaginar mapas no celular, mas não o Street View da Google, com imagens caminháveis de todas as ruas e nem o Waze, com avisos de engarrafamentos e tempos precisos para os trajetos a qualquer instante, atualizados pelos usuários. Serviços ainda por cima gratuitos, pelo menos aparentemente. Não dava para imaginar o mundo da publicidade migrando para a rede. Nem o mundo de Youtubers, influencers e Tiktokers.

Era possível prever a disseminação da comunicação em rede, mas a proliferação de robôs, fake news, deepfakes e todo o impacto na política e nos relacionamentos familiares e pessoais não estava no programa. As novas tecnologias não provocam apenas consequências óbvias, mas também criam novos serviços e novos hábitos sociais. Hoje mantemos grupos de zap com amigos de infância, brigamos por política na família e com amigos e somos roubados em golpes.

No Fórum Econômico Mundial em 2016, especialistas previram que em 2025, 10% da frota de veículos nos Estados Unidos seriam autônomos. Não vai ser. De vez em quando aparece um protótipo de carro autônomo atropelando alguém. Vai acontecer, mas vai demorar mais.

Naquela época também tomou velocidade o que seria a economia de compartilhamento. Uber seria um inocente serviço de compartilhamento de caronas e virou um negócio. O tema “sharing economy”, que previa compartilharmos tudo, desapareceu, tudo virou plataforma lucrativa.

A inteligência artificial começou se esgueirando pelos algoritmos que manipulam nossas vontades e vendem nossos dados, sem aparecer explicitamente, até a explosão do ChatGPT que colocou a ferramenta à disposição de todos e em todos os ambientes e aplicativos. Deverá ser algo tão explosivo quanto o surgimento da própria internet, ou mais.

As previsões apontavam para a substituição dos trabalhos repetitivos pela IA que, sem cerimônia, invadiu logo os trabalhos criativos, antes até de eliminar os repetitivos. Designers, roteiristas, redatores, publicitários, arquitetos, advogados e professores estão se dando conta que, ou colocam a IA como parceira fundamental ou estão fora do mercado. Até o Google, que reinava soberano há 20 anos, estremece. Universidades que foram atropeladas pela pandemia com a demanda por ensino remoto ou híbrido são novamente confrontadas com trabalhos, provas e aulas onde a IA subverte os procedimentos de costume.

O futurismo se alimenta de pequenos sinais, muita informação e muita especulação, mas não é fácil prever o que vai acontecer quando uma tecnologia aparece. Esperamos que seja sempre para o bem, mas nem isso temos certeza, está parecendo que não.

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