quinta-feira, 31 de agosto de 2023

A CAATINGA VAI VIRAR TERROIR

Lianne Ceará, PIAUÍ

O sonho de um produtor de espumante de caju

Termo francês caro à enologia, terroir define mais do que apenas a terra onde as vinhas foram plantadas: engloba a geologia, o clima, a história e a cultura do local. A rigor, só os bons vinhos têm terroir, embora se reivindique tal privilégio também para bebidas como o uísque. O gerente de produto Vicente Monteiro, um cearense de 43 anos, ambiciona conquistar a distinção para um fruto típico de seu estado: o caju. Monteiro é o fundador do projeto Alquimista da Caatinga, que se dedica à produção de bebidas enraizadas na cultura regional.

Seu primeiro lançamento, em 2020, foi um espumante de caju chamado Cauina. O nome faz referência à cultura indígena: vem de cauim, bebida alcoólica obtida da fermentação de mandioca ou de cereais misturados ao suco de fruta pelos povos tupis-guaranis. A memória histórica se faz presente no rótulo do Cauina, assinado pelo artista Wilson Neto e inspirado em uma gravura de 1558 na qual o frade franciscano e explorador francês André Thevet (1502-90) retratou a colheita do caju feita por indígenas.

A dedicação a cervejas e espumantes representou um desafio pessoal para Monteiro: em sua casa, as bebidas estavam interditadas, por causa do histórico de alcoolismo de seu pai. “Eu tinha aprendido que o álcool era apenas um mal que existia no mundo e que era necessário evitar”, ele conta. “Com as minhas pesquisas, vi que o álcool faz parte de todas as culturas humanas.”

Monteiro chegou a estudar psicologia na Universidade de Fortaleza, mas largou o curso para se dedicar aos estudos etílicos. Quando seu pai morreu, em 2016, Monteiro vendeu o carro para estudar cervejaria na Alemanha. O dinheiro, porém, não foi suficiente. Ele permaneceu no Ceará e investiu na produção de uma cerveja artesanal que incorporava frutas nativas entre os ingredientes.

Em 2019, Monteiro apresentou dois projetos de pesquisa em um edital do Laboratório da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, em Fortaleza. A proposta de criar uma cerveja com mandacaru nativo do litoral cearense não foi aceita, mas a escola aprovou a busca por leveduras (fungos que promovem a fermentação) naturais da Caatinga aptos a serem usados na fabricação de bebidas alcoólicas, pães e outros produtos. Ao longo de sete meses, Monteiro coletou as leveduras com a ajuda de mestres da mata e especialistas do laboratório.

Depois dessa pesquisa, ele montou o projeto Alquimista da Caatinga. Sua ideia original era fermentar o espumante de caju com uma levedura da Caatinga, o que ainda não foi possível. “Não tivemos investimento e tecnologia para isso”, diz. Na produção do Cauina foi preciso usar um outro tipo de levedura, já consagrado na indústria tradicional de vinhos. O Alquimista da Caatinga hoje produz 3,5 mil garrafas por ano desse espumante de caju, que é comercializado em bares e restaurantes de várias regiões do país.

Ofarmacêutico e escritor baiano Rodolfo Teófilo, radicado no Ceará, registrou na Junta Comercial, no final do século XIX, uma bebida que se incorporou à cultura do Nordeste e dá título até mesmo a uma canção de Caetano Veloso: a cajuína. Elaborada com a técnica francesa de pasteurização, a bebida foi registrada para coibir imitações (que, apesar disso, foram feitas). Com adição de gás, a cajuína virou refrigerante e, embora tenha sido criada no Ceará por um baiano, acabou associada ao Piauí.

O Ceará ainda é o maior produtor de castanha-de-caju do Brasil, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Junto da pequena castanha – que é o verdadeiro fruto –, encontra-se o chamado pedúnculo ou pseudofruto (o próprio caju), que costuma ser descartado, mas é de onde se extrai o suco utilizado na produção da cajuína e do Cauina. De acordo com estimativa da Embrapa, o Brasil desperdiça anualmente cerca de 80% do caju, cuja produção total no país chegou a 1,1 milhão de toneladas em 2021.

“Além de estudar sobre a cajucultura, comecei a consumir o caju de fato e figurativamente”, conta Monteiro. De fato, porque, durante a elaboração do espumante, ele passou a comer a polpa fibrosa do pseudofruto, evitando o desperdício. “Lembrei da minha infância, quando a gente comia no café da manhã, e voltei a fazer a mesma coisa.” O tal consumo figurativo se deu pela via musical. “Relembrei canções que citavam o fruto, como o samba Cajueiro Velho, de João Carlos, consagrado na voz de Alcione, e o baião de mesmo nome gravado por Luiz Gonzaga.” O Alquimista da Caatinga está iniciando agora os testes para uma nova bebida feita de outra planta nativa, a jurema.

No futuro, Monteiro quer que seu espumante seja feito com tecnologia 100% nordestina e que cada produtor tenha seu próprio terroir. Ele aspira colocar suas criações “no mais alto lugar de requinte do mundo das bebidas”. “É onde eu acho que as plantas da Caatinga merecem estar”, diz.

Monteiro pontua que, na Índia, uma bebida feita de coco ou caju já tem reconhecimento e indicação geográfica. “E o caju não é nativo da Índia. É nativo do Brasil, mas é a Índia que está dando mais atenção a ele.”

Em 2014, a produção e as práticas associadas à cajuína do Piauí foram oficialmente reconhecidas como patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Mas, para se comprovar o terroir de uma bebida – um atestado de sua singularidade geográfica e cultural –, exige-se bem mais. “A busca desse terroir não é um capricho”, diz Monteiro. Trata-se, para ele, de associar um produto ao povo que o criou e à história desse povo. Reconhecer o terroir é um modo de preservar a memória coletiva do apagamento.

Lianne Ceará

Jornalista e autora de Memórias Interrompidas: testemunhos do sertão que virou mar. Foi estagiária de jornalismo na piauí e também já contribuiu com Universa Uol, G1 Ceará e Diário do Nordeste.

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CONTRADIÇÕES CERCAM BOLSONARO

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Contradições sobre joias cercam Bolsonaro em dia de depoimentos

Avanço de inquérito desmonta versões e expõe ex-presidente a ponto crítico com a PF

Jair Bolsonaro passou dias em treinamento para explicar à Polícia Federal sua lucrativa vocação para o ramo da joalheria. O avanço do inquérito sobre a venda de presentes e as táticas adotadas pelos investigadores fazem com que os depoimentos do caso sejam considerados um ponto crítico para o ex-presidente.

A PF vai ouvir nesta quinta (31) oito suspeitos de envolvimento no esquema das joias. Os depoimentos serão tomados ao mesmo tempo. Como ninguém acredita que investigados e advogados não tenham trocado figurinhas, a medida vale pouco para evitar que eles combinem versões e muito para revelar incoerências.

Bolsonaro e aliados já produziram uma profusão dessas contradições, e aí está o perigo para o ex-presidente. Além de tornar muitas explicações inverossímeis, o vaivém dificulta o trabalho de quem tenta esconder detalhes das falcatruas.

Quando o apetite pelas joias foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em março, o ex-presidente posou de vítima. "Estou sendo acusado de um presente que eu não pedi, nem recebi", declarou. Bolsonaro se referiu ao estojo retido no aeroporto de Guarulhos e omitiu relógios que já haviam sido vendidos.

A certeza da impunidade parece ter aumentado a desfaçatez. "Nada foi extraviado, nada sumiu. Nada foi escondido. Ninguém vendeu nada", disse, semanas depois. Àquela altura, estava em curso a operação para recomprar o Rolex que viajara em segredo no avião presidencial e fora vendido numa transação discreta.

Nenhuma explicação resistiu às provas colhidas pelos policiais. A tendência é que o caminho fique mais estreito com quebras de sigilo e telefones apreendidos. Prova disso é que a defesa do ex-presidente passou a dizer que ele tinha direito de ficar com as joias e de vendê-las.

É algo que se aproxima de uma confissão e depende de uma interpretação muito benevolente das leis e das regras estabelecidas pelo TCU. Resta saber se Bolsonaro estará disposto a testar a generosidade de investigadores e juízes nesse caso.

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NO STF, UM MINISTRO TERRIVELMENTE AMIGO

Maria Hermínia Tavares*, Folha de S. Paulo

Com sua escolha, Lula provocou indignação dentro e fora do PT

Ao indicar para uma vaga do STF (Supremo Tribunal Federal) seu advogado amigo, o presidente Lula criou indignação dentro e fora do PT. Afinal, logo que vestiu a toga, deu cinco votos que o opuseram à maioria da Corte e o alinharam aos ministros patrocinados por Bolsonaro.

Mas, para além do conhecido pragmatismo do cliente, sua escolha leva à cena uma questão maior, que há décadas desafia os progressistas: como acomodar, na agenda classista e redistributiva, a questão ambiental e as demandas por direitos de grupos que não se imaginam parte dessa ou daquela maioria.

O fenômeno tem milhagem. Já em 1977, o cientista político americano Ronald Inglehart (1934-2021) publicou "A Revolução Silenciosa", no qual anunciava significativo câmbio na cultura política dos países desenvolvidos, associado à chegada do que então se passou a designar sociedade pós-industrial.

O conflito político —organizado em termos de crescimento econômico, redistribuição de seus frutos e o papel do Estado nisso tudo— ganhava outras clivagens, advindas dos temas trazidos pelas gerações mais jovens. Assim, Inglehart anunciou a ascensão de uma agenda que chamou de pós-materialista. O conceito incluía muitas coisas díspares: defesa do meio ambiente, direitos das mulheres e outros grupos de gênero (na sociedade e nas famílias), antirracismo, pluralismo cultural e religioso, tolerância com o uso de drogas.

Na visão do autor, a nova cultura política progressista se somaria àquela que tradicionalmente identificava as esquerdas social-democratas e as opunha às forças conservadoras. Faltou combinar com os fatos. Salvo raríssimas exceções, o diálogo entre as duas formas de progressismo —o redistributivo e o ecológico-identitário— foi e continua a ser difícil em toda parte, Brasil incluído.

Aqui é enorme a resistência daquela parcela da sociedade, muito mais conservadora do que bem-informada, a bandeiras que lhes pareçam distantes de suas carências cotidianas, como a da proteção ambiental; que sejam do interesse de minorias, como a defesa dos povos indígenas; ou que preguem o reconhecimento de direitos tido como ameaça a seus valores e crenças morais. Por essa razão, quem dependa de votações majoritárias para fazer carreira política trata de dar as costas a isso tudo.

Assim, a efetividade daqueles direitos abrigados na Carta de 1988 —e imprescindíveis para civilizar o país— só pode vir do poder contramajoritário da Suprema Corte.

Daí que a escolha de seus membros poderá ter terríveis consequências se a amizade e o pragmatismo míope prevalecerem.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

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MARCO TEMPORAL É A "LEI DO ARAME FARPADO" NAS TERRAS INDÍGENAS

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

As lideranças indígenas argumentam que a posse histórica de suas terras não está vinculada ao fato de um povo ter ocupado determinada região em 5 de outubro de 1988

O julgamento do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), deve ser retomado nesta quinta-feira. O marco estabelece que só pode haver demarcação de terras para comunidades indígenas que ocupavam a área no dia da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. O próximo a votar é o ministro Cristiano Zanin, o mais novo da Corte, indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que vem se pautando por posições bastante conservadoras.

O emblemático voto de Zanin não será decisivo, mesmo que vote com os ministros André Mendonça e Nunes Marques a favor do marco temporal, porque a tendência da maioria é acompanhar os votos contrários dos ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Está em jogo é a interpretação do artigo 231 da Constituição, segundo o qual os povos indígenas têm “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

As lideranças indígenas argumentam que a posse histórica de suas terras não está vinculada ao fato de um povo ter ocupado determinada região em 5 de outubro de 1988, porque muitas comunidades são nômades ou foram retiradas de suas terras pela ditadura militar. Aguardam a decisão do Supremo 226 processos sobre terras indígenas ainda não demarcadas.

Segundo o Censo Demográfico 2022, 1.693.535 brasileiros se declaram indígenas, ou seja, 0,83% da população residente no país. No Censo de 2010, segundo o IBGE, eram 896.917 pessoas. Ou seja, a população indígena variou 88,82% em 12 anos. Nesse período, as terras indígenas demarcadas passaram de 501 para 573. Como era de se esperar, a Região Norte concentra 44,48% da população indígena do país, com 753.357 pessoas. A Região Nordeste reúne 31,22% da população indígena, com 528.800. As duas regiões somam 75,71% da população indígena do Brasil.

Duas unidades da Federação concentram 42,51% da população indígena residente no país: o Amazonas, com 490.854 (28,98%) e a Bahia, com 229.103 (13,53%). Mato Grosso do Sul vem em terceiro, com 116.346, seguido de Pernambuco, com 106.634, e de Roraima, com 97.320. Esses cinco estados contabilizam 61,43% da população indígena.

Conceito genocida

A história do genocídio indígena no Brasil foi varrida para debaixo do tapete. Segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em 1500, eram aproximadamente três milhões de habitantes, sendo dois milhões no litoral do país. Em 1650, esse número já havia caído para 700 mil e, em 1957, chegou a 70 mil, a quantidade mais baixa registrada. De lá para cá, graças à atuação de indigenistas, como o marechal Cândido Rondon e os irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas, a população indígena começou a crescer.

Os habitantes de terras indígenas somam apenas 689,2 mil pessoas, sendo 622,1 mil indígenas (90,26%) e 67,1 mil não indígenas (9,74%). Quase metade dessa população (49,12%) está no Norte, onde as terras indígenas tinham 338,5 mil habitantes, sendo 316,5 mil (93,49%) indígenas. Dos 630.041 domicílios ocupados, 137.256 estão dentro de terras indígenas (21,79%) e 492.785 (78,21%), de fora. Um dos problemas é que os povos originários não cercam suas terras, a demarcação é simbólica. É aí que entra o tal arame farpado.

Inventado em 1874, no Texas, por um jovem chamado John Warner Gates, sem o arame farpado não haveria a grande marcha para o Oeste nos Estados Unidos. Segundo o economista norte-americano Tim Harford (50 coisas que mudaram o mundo, Objectiva), essa invenção tornou possível assentar os colonos e apartar o gado das plantações, após a assinatura da Lei da Herdade, pelo presidente Abraham Lincoln. A lei especificava que qualquer cidadão honesto, inclusive mulheres e ex-escravos, podia tomar posse de até 65 hectares de terras no Oeste norte-americano, então um espaço muito pouco explorado economicamente.

Influenciados pelo filósofo inglês John Locke, os fundadores dos Estados Unidos adotaram a tese de que os cidadãos, ao trabalhar a terra, passariam a possuí-las. Esse argumento legitimou o genocídio dos índios norte-americanos, ao ser usado impiedosamente contra eles. Os nativos não teriam direito às suas próprias terras porque não as estavam desenvolvendo. Como os fatos jurídicos são abstratos, para usufruir a posse das terras os colonos precisavam demarcar seus domínios. Seis anos após sua invenção, em 1880, foram produzidos 423 mil quilômetros de arame farpado numa fábrica em Dekalb, o suficiente para dar 10 voltas ao mundo.

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LULA MIRA NO ATIVISMO DO STF POR BASE BOLSONARISTA

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Voto de Zanin se explica por ataque ao ativismo judicial e reconquistas dos evangélicos

 “A gente tem que fazer tudo de bom aqui, sem precisar esperar o paraíso”. A pregação foi feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na sua última “live”. Fica difícil entender o voto do ministro Cristiano Zanin na descriminalização do usuário da maconha sem assisti-la.

Os votos de Zanin não convergem apenas com suas convicções, mas também com a estratégia do presidente da República de recuperar um naco do eleitorado perdido para o bolsonarismo.

O foco na recuperação do eleitorado pentecostal das periferias tem começo e meio. Lula não se limita a disputar o discurso dos pastores. Vale-se de seus aliados evangélicos para o mesmo fim.

Basta ver como a relatora da CPMI dos atos golpistas, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), partiu para cima do deputado Marco Feliciano (PL-SP), de quem se disse admiradora no fervor religioso da adolescência, questionando os propósitos de sua fé.

É cedo para dizer que Lula abandonou os conceitos que lhe permitiram formar um ministério (um pouco) mais diverso do que aqueles que de seus dois primeiros mandatos. Mas parece estar movido pela constatação de que não é no identitarismo que recuperará o eleitor perdido para o bolsonarismo.

O roteiro, mais uma vez, estava na “live” semanal, que está longe de mobilizar uma audiência semelhante àquela do ex-presidente, mas se tornou obrigatória para entender a estratégia do atual inquilino do Palácio do Planalto. É de lá, e não da indignação da esquerda, que se pode mapear aonde Lula vai.

O presidente citou a sanção da lei que recria uma política nacional de valorização do salário mínimo e reajusta a tabela do Imposto de Renda e o envio do projeto de lei da taxação das offshores e da medida provisória da taxação dos fundos exclusivos.

Se a turma que puxa o tapete do ministro Fernando Haddad ainda não percebeu, ele e o presidente falam exatamente a mesma coisa. É com a pauta do “rico no IR e pobre no Orçamento” que Lula pretende redirecionar o chamariz da periferia evangélica dos costumes para a renda.

Felipe Nunes, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e diretor da Quaest, cada vez mais ouvido no Palácio do Planalto, não tem dúvidas de que Lula precisa se desviar da pauta dos costumes para não cair na cilada bolsonarista que quase custou sua eleição.

Lula não se imiscui com a CPMI dos atos golpistas, mas são os escândalos lá amplificados que pavimentam a estratégia lulista de mudar o canal. Nunes vê uma avenida aberta para Lula conquistar, pelo bolso, o eleitor de oposição abatido pelas joias, especialmente a mulher evangélica, numa tentativa de devolver o bolsonarismo ao seu núcleo duro e estreito.

É a oportunidade que se apresenta para o presidente dividir o eleitorado do ex e reconquistar aquele eleitor que um dia foi seu. Como se ouve hoje no Planalto, Zanin se insurgiu contra o “beque recreativo” da classe média, mas confortou a mãe da periferia, no medo que, em 2018, pavimentou o bolsonarismo.

Por esta pegada, pode-se até inferir o voto de Zanin no marco temporal das terras indígenas mas não a escolha do próximo ministro do Supremo. A ministra Rosa Weber só deixará o tribunal no dia 28 de setembro. Na escolha de Zanin, muito mais previsível, passaram-se 50 dias desde a saída do antecessor, Ricardo Lewandowski, até a publicação no “Diário Oficial”. Não será mais rápido desta vez.

O que os votos de Zanin neste e noutros temas permitem é antecipar o conflito contratado com a próxima presidência do Supremo Tribunal Federal.

O ministro Luís Roberto Barroso, como se sabe, vê nos poderes contramajoritários da Corte um meio de empurrar a história, especialmente em temas como drogas e aborto, em que o Brasil se mantém atrasado não apenas em relação aos ricos e desenvolvidos, mas na comparação com os vizinhos.

Quanto mais Barroso for bem-sucedido em seu intento, pior para Lula. As cortes superiores foram tão determinantes para a posse do presidente que, para uma fatia importante do bolsonarismo - e além dele - os dois Poderes até se confundem.

Na equiparação da homofobia e transfobia ao crime de injúria racial, vê-se a reprise da linha que marca os votos de Zanin, a devolução ao Congresso do poder de legislar.

Seria ingenuidade imaginar que este será o desejo do Executivo quando a pauta do STF se debruçar, por exemplo, sobre alguma contenda orçamentária com o Congresso, mas naquilo que hoje interessa a Lula, que é a corrosão da base bolsonarista, o mote é intransponível.

A pegada lulista invade, inclusive, a Esplanada. Ao oferecer o ministério do empreendedorismo ao Republicanos, ligado à Igreja Universal, Lula não se limita a preservar o espaço de um aliado, exageradamente contemplado, como o PSB, em Portos e Aeroportos.

O presidente sinaliza que pretende arrematar a conquista da periferia cooptando uma das maiores denominações pentecostais para a tarefa. A julgar pela proposta remuneratória das empresas de aplicativos, equivalente a um terço do que pedem os entregadores, só rezando.

E se, por fim, Lula pretende reduzir a excessiva interferência do Judiciário na vida do país, ainda resta por conhecer sua estratégia para mitigar o desmedido conservadorismo no Legislativo, pista de decolagem do ativismo judicial.

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DESONERAÇÃO DA FOLHA: O TEMPORÁRIO QUE VIROU PERMANENTE

Bruno Carazza, Valor Econômico

Pauta-bomba aprovada na Câmara coloca Haddad e Lula diante do dilema de corrigir erro de Dilma

Políticos raramente reconhecem suas falhas. Embora ainda hoje se cobre um mea culpa da cúpula do Partido dos Trabalhadores pelos escândalos de corrupção do Mensalão e do Petrolão, há um erro que Lula, Dilma e até Haddad admitem.

Em março de 2021, no seu primeiro discurso após a anulação dos processos contra ele na Operação Lava Jato, em resposta a um questionamento da repórter Cristiane Agostine, do Valor, sobre os temores do mercado sobre uma eventual volta ao poder, Lula questionou:

“Qual é o demônio? O demônio é a safadeza daqueles empresários que o Guido Mantega quando ministro da Fazenda liberou R$ 540 bilhões de desoneração e que não foi repassado para o povo trabalhador.”

Alguns anos antes, numa entrevista à TV suíça RTS, a ex-presidente Dilma Rousseff reconheceu aquele que teria sido o maior erro da sua gestão: “Eu cometi sim um erro. Eu fiz uma grande desoneração tributária, eu reduzi brutalmente os impostos. [...] De uma certa forma eu acreditei numa avaliação de que se a gente reduzisse os impostos, os empresários investiriam mais e aí a situação ficaria melhor”.

No famoso artigo que escreveu para a revista piauí em junho de 2017 (“Vivi na pele o que aprendi nos livros”), o agora ministro da Fazenda Fernando Haddad indicou que uma das causas para a grande recessão econômica iniciada em 2015 foi uma “agenda equivocada” adotada no primeiro mandato de Dilma Rousseff que tinha na desoneração da folha de pagamentos um elemento central.

O Congresso Nacional acaba de prorrogar até 31/12/2027 a desoneração da folha de pagamentos para 17 setores da economia. Trata-se de mais um capítulo na longa história desse benefício tributário que tem início em agosto de 2011, com a presidente Dilma Rousseff e seu ministro da Fazenda Guido Mantega.

A ideia era beneficiar alguns setores que estavam tendo dificuldades após a grave crise financeira de 2008, como tecnologia da informação, equipamentos de comunicação, vestuário, calçados, móveis, couro e peles. Em linhas gerais, o governo concedia um alívio tributário em troca da promessa da manutenção de empregos.

A medida provisória que institui a desoneração da folha de pagamentos originalmente previa que o programa seria temporário, socorrendo as empresas apenas no período de agosto de 2011 a dezembro de 2012.

Ainda na tramitação da medida, os parlamentares expandiram os setores beneficiados e alargou sua duração para o final de 2014.

Até o final de seu primeiro mandato, Dilma editou mais seis medidas provisórias estendendo a desoneração a dezenas de outros setores. Numa delas, chegou a tornar a desoneração da folha de pagamentos um benefício permanente.

Logo após a reeleição, a presidente petista nomeou o economista Joaquim Levy para o posto que foi de Guido Mantega durante mais de oito anos. Preocupado com o custo fiscal, que na época girava em torno de R$ 25 bilhões por ano aos cofres públicos, e com os escassos resultados em termos de geração de emprego, Levy cogitou encerrar aquilo que ele chamou de “brincadeira grosseira” em 2015. O máximo que conseguiu foi reduzir o número de setores contemplados e elevar a alíquota de contribuição.

Após o impeachment, Michel Temer e a equipe de Henrique Meirelles bem que tentaram a reoneração da folha de pagamentos, mas deputados e senadores deixaram a medida caducar. Depois de muita negociação, concordou-se em estabelecer uma nova data-limite: 31/12/2020.

Quando o fim se aproximava, já em plena pandemia, novamente os congressistas jogaram o encerramento pra frente: 31/12/2021.

No apagar das luzes de 2021, porém, Jair Bolsonaro sancionou mais uma vez a extensão do benefício, agora para 31 de dezembro do presente exercício de 2023.

Com a decisão de hoje, o Congresso decide prorrogar a vigência dessa benesse aos setores contemplados até 31/12/2027.

O economista Milton Friedman, um dos mais notórios defensores do liberalismo, costumava dizer que “não existe nada mais permanente do que um programa governamental temporário”. A saga da desoneração comprova a tese do professor da Universidade de Chicago.

Segundo os cálculos da Receita Federal, o benefício tributário relacionado à folha de salários custa R$ 9,4 bilhões por ano, quantia elevada para quem pretende zerar o déficit fiscal em 2024.

Se a liberalidade na instituição da desoneração foi um erro reconhecido por Lula e Haddad, estará nas mãos deles agora a decisão de vetar ou não a pauta-bomba aprovada hoje na Câmara.

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DESAFIO ARRECADATÓRIO É MAIOR DO QUE SE ESPERAVA

Lu Aiko Otta, Valor Econômico

Pacote tributário que estará na PLOA é maior do que vinha sendo ventilado até agora

É de R$ 168 bilhões o tamanho do pacote tributário que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deverá encaminhar amanhã ao Congresso Nacional, junto com o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2024 elaborado pelo Ministério do Planejamento. Ficou maior do que o que vinha sendo ventilado até agora, algo como R$ 130 bilhões.

O conjunto de medidas foi formatado para criar condições de zerar o déficit no ano que vem, explicou a ministra do Planejamento, Simone Tebet, em reunião na Comissão Mista de Orçamento nesta quarta-feira.

Assim, aumentou o desafio para Haddad e sua equipe demonstrarem a factibilidade das medidas. Tal como ocorreu em janeiro, quando foi lançado outro pacote de ajuste fiscal pelo lado das receitas, é de se esperar que haja muitos questionamentos sobre os resultados das medidas anunciadas.

No entanto, o pensamento da equipe econômica segue o mesmo de sempre: há compromisso com o déficit zero e medidas serão adotadas para cumpri-lo. Se não forem essas que estarão sobre a mesa, outras virão. Tebet repetiu esse raciocínio na comissão, ao dizer que Haddad tem muitas cartas na manga.

Boa parte desse ganho de R$ 168 bilhões depende de medidas que passarão pelo crivo do Congresso Nacional. A retomada do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), aprovada há pouco no Senado, é uma delas. 

A regulamentação a respeito da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) referente ao impacto de incentivos tributários estaduais na base de arrecadação federal é outra medida com a qual o governo conta para chegar ao valor proposto.

Outro bloco grande é esperado com novas rodadas de acordos entre Fisco e contribuintes.

Há também um conjunto de medidas que devem enfrentar resistências no Legislativo: a cobrança do Imposto de Renda sobre fundos exclusivos e fundos offshore, o fim do mecanismo de Juros sobre o Capital Próprio (JCP). Também se esperam resultados da regulamentação das apostas eletrônicas.

No Congresso Nacional, essas medidas são entendidas como complementos do arcabouço fiscal.

Não é de interesse do Legislativo, que aprovou a nova regra fiscal, vê-la naufragar na estreia. No entanto, são crescentes os recados do Parlamento sobre a necessidade de avaliar a qualidade dos gastos e fazer, por exemplo, a reforma administrativa. Essa ideia foi defendida esta semana pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em evento ocorrido esta semana.

Também o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tem alertado que o mercado se tornou mais exigente com a política fiscal no mundo inteiro. Assim, é preciso melhorar o dever de casa. Fazendo, por exemplo, a reforma administrativa.

Outro recado de Campos Neto vai na direção das medidas propostas por Haddad. Ele tem dito que algumas medidas corroem a base tributária, ou seja, o imposto é cobrado e diminui a própria base de arrecadação.

Na direção oposta dos que defendem olhar também para o lado dos gastos, a ala política do governo acha que a solução é não zerar o déficit, e sim acomodar um saldo negativo nas contas públicas, algo como 0,5% e 0,75% do Produto Interno Bruto (PIB).

Os dados do PLOA e o pacote de arrecadação têm pela frente um grande desafio de conquistar credibilidade. A pressão por medidas pelo lado das despesas vai crescer. Na mesma proporção, aumentará o descontentamento da ala política do governo.

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JANELA EXTERNA SEGUE ABERTA AO BRASIL

Christopher Garman*, Valor Econômico

Ao reformar sua estrutura tributária agora, o Brasil pode atrair mais investimentos do que se o fizesse em outro momento

O Brasil nunca perde a oportunidade de perder uma oportunidade, diz a frase atribuída ao falecido economista e diplomata Roberto Campos. Mesmo que esse diagnóstico tenha se disseminado no início deste terceiro mandato de Lula, há indícios de que o Brasil talvez não desperdice por inteiro a janela de oportunidade que o país encontra no cenário externo atual.

A visão mais pessimista é compreensível. Lula assumiu diante de extrema boa vontade dos investidores estrangeiros. Mas o presidente deu sinais de que poderia desperdiçar este bom humor, aumentando gastos no início do mandato e criticando ferozmente a política monetária do Banco Central.

Embora a equipe econômica tenha revertido boa parte desse mal-estar com a aprovação do arcabouço fiscal e o avanço da reforma tributária - ajudados pela melhora nos dados de inflação e crescimento - o setor privado ainda se mostra muito cético. Externamente, a China está desacelerando, enquanto os EUA podem manter os juros elevados por mais tempo. Internamente, há descrença sobre a capacidade do governo em zerar o déficit primário em 2024, e aumentar as receitas em mais de R$ 100 bilhões diante de um Congresso arredio a novos tributos será desafiador.

Ainda que pertinentes, essas preocupações sobre a conjuntura talvez subestimem o quanto alguns fatores estruturais podem ajudar o Brasil - e, ao mesmo tempo, como parte da agenda do atual governo (em especial a reforma do IVA e o plano ambiental) pode ajudar o país a aproveitá-la.

É importante reconhecer que o mundo passa por uma intensa transformação geopolítica. A vitória de Joe Biden deixou claro que o embate entre os EUA e a China tem raízes muito mais profundas que a política tarifária imposta por Donald Trump. Os países se entendem como ameaças mútuas, e buscam reduzir a interdependência entre suas economias. A crise na Ucrânia exacerbou esse tensionamento.

Esses choques estão gerando uma lenta, mas muito relevante, realocação de capitais. Multinacionais norte-americanas e europeias estão reavaliando suas cadeias globais de suprimentos para reduzir a dependência da China. Investimentos diretos externos naquele país, por exemplo, caíram 5,6% entre janeiro e maio deste ano ante 2022, apesar do fim das restrições da covid-19. Parte disso é resultado de uma economia que não está se recuperando -, mas pesou também a busca das empresas por reduzir sua exposição à China e investir em países mais amigáveis ou próximos (levando aos termos “friend-shoring” ou “near-shoring”). O fluxo de investimentos financeiros mostra dados semelhantes.

Subestima-se o ganho potencial de simplificar o sistema tributário no momento da realocação de capitais globais

Paralelamente, as empresas chinesas têm buscado reforçar laços com países do chamado Sul Global e reduzir sua dependência dos EUA e da Europa. Não por acaso a China jogou tão pesado para expandir o grupo dos Brics.

Logo, será cada vez mais importante examinar como os países serão impactados por esse movimento - e para onde serão realocados esses investimentos. Há vencedores óbvios, incluindo o México, pelo acesso aos EUA por meio do USMCA. Embora fora do topo da lista, o Brasil também pode ganhar em termos relativos. A preocupação alimentar e energética impulsionada pela crise na Ucrânia e pelo tensionamento da China coloca o país - grande produtor nessas áreas - em posição vantajosa. Não por acaso, o interesse europeu pela ratificação do acordo com o Mercosul cresceu.

Duas investidas chamam a atenção na agenda atual do governo, que podem elevar a competitividade do país por esses investimentos: a reforma tributária (PEC 45) e a agenda ambiental, na qual o governo Lula vai focar cada vez mais.

A primeira, que unifica impostos e cria um IVA dual nacional, tem sido objeto de intenso debate. De um lado, economistas apontam ganhos de produtividade associados à simplificação de uma legislação arcaica e cheia de ineficiências. De outro, empresários reclamam que a longa transição poderá aumentar a complexidade tributária, assim como a carga do setor de serviços. Logo, os ganhos estarão concentrados no médio e longo prazos, com custos no curto.

Mas esse debate subestima o ganho potencial de simplificar o sistema tributário exatamente no momento de uma realocação de capitais globais. Não é incomum que os conselhos de empresas multinacionais discutam intensamente como reduzir riscos diante desses novos choques políticos. Isso sugere que, ao reformar sua estrutura tributária agora, o Brasil pode atrair mais investimentos do que se o fizesse em outro momento. A sinalização futura pesa em momentos como este.

O mesmo pode ser dito sobre a pauta ambiental, que deve ganhar corpo em breve. O governo está prestes a anunciar um amplo plano de transição ecológica, cujo carro-chefe será a regulamentação do mercado de carbono. A pauta será prioridade da política externa nacional nos próximos dois anos. O governo não só planeja colocá-la como prioridade quando o país sediar a reunião do G-20 (2024), mas também vislumbra um coroamento dessa agenda ao sediar a COP30 em Belém (2025).

Já em vantagem competitiva por ter 56% de sua matriz energética de fontes renováveis (em um mundo onde o setor privado será cada vez mais pressionado a reduzir suas emissões), o Brasil ganhará também com essa agenda ambiental, ao se tornar mais atrativo a investimentos nessa realocação de capitais globais.

Evidentemente, há riscos adiante. A trajetória de expansão de gastos do governo gera um dilema importante para a política econômica, e a necessidade de buscar receitas para financiar essas despesas pode minar a confiança do setor privado. E há sempre o risco de Lula reagir mal a possíveis dificuldades econômicas e políticas. Mas essas oportunidades vindas de fora podem ser um atenuante importante.

*Christopher Garman é diretor executivo para as Américas do Eurasia Group.

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PETRÓLEO, ESTATAIS E O DÉFICIT DE LULA

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Baixa do petróleo e dos dividendos de estatais causa buraco nas contas do governo Lula

Receita federal cai mais rápido; preço de petróleo e dividendos de estatais fazem estrago

A arrecadação do governo diminui cada vez mais rápido, soube-se nesta quarta-feira (30) com a divulgação dos números das contas federais. Quanto mais diminuir, mais difícil será atingir a meta de déficit primário zero de 2024, que tem causado um sururu entre a maior parte dos ministros de Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad (Fazenda).

Se a receita continuar a baixar, maior a disputa política: ou se vai gastar menos no "Novo PAC" ou déficit e dívida serão ainda maiores.

Petróleo, Petrobras e dividendos pagos por estatais têm muito a ver com o estrago. Menos concessões de serviços à iniciativa privada também.

A maior parte da baixa da arrecadação não se deve à diminuição da receita de impostos. A perda vem da conta de "receitas não administradas pela Receita Federal": dividendos (parte dos lucros) de estatais, receitas de exploração de recursos naturais ou de concessões (pagamento de direitos de exploração de um serviço público, isto é, privatização de serviços). Mesmo que a economia volte a crescer e as empresas a pagar mais impostos, pode ser que essas outras receitas não cresçam, é fácil perceber.

A receita total do governo federal caiu 2,19%, em termos reais (na comparação dos 12 meses somados até julho de 2023 com os somados até julho de 2022). Descontadas as transferências de receita obrigatória para estados e municípios (receita líquida), a baixa foi de 3,24%.

A receita total em 12 meses caiu do equivalente a 23,33% do PIB em dezembro de 2022 para 22,15% do PIB. A receita líquida, aquela que de fato fica à disposição do governo federal, caiu de 18,74% para 17,78% do PIB (baixa de 0,94% do PIB, ora uns R$ 97 bilhões).

Notem: o governo precisa aumentar sua receita em algo perto de 1,1% do PIB de 2023 para 2024 a fim de atingir a meta de déficit primário zero (receitas e despesas, afora juros, equilibradas).

A baixa na receita de impostos foi de 0,4% do PIB.

A queda da receita com dividendos de estatais foi de 0,22% do PIB (0,12% do PIB da Petrobras, 0,09% do BNDES). A redução do preço do petróleo e da parcela do lucro distribuído pelas estatais fez o estrago.

No caso de "receitas de exploração de recursos naturais", a baixa foi de 0,21% do PIB. É o dinheiro recolhido da exploração de recursos minerais (royalties, participações, Contribuição Financeira pela Exploração Mineral). O grosso dessas receitas vem de petróleo, gás e minério de ferro.

A receita de concessões caiu muito. É sempre muito variável. Depende, claro, do volume de concessões de serviços à iniciativa privada. A baixa foi de 0,37% do PIB.

A perda de arrecadação com a baixa do preço do petróleo e seus efeitos secundários deve ter sido ainda maior, pois também diminuiu o faturamento e lucro das empresas do setor, a começar pela Petrobras, que assim tendem a pagar menos impostos.

O Brasil se tornou um país petroleiro e deve sê-lo ainda mais nos próximos anos. A receita petrolífera e suas variações vão pesar cada vez mais nas contas dos governos, não apenas o federal. Criar gastos permanentes e/ou altos com base nas receitas muito voláteis do petróleo tende a dar em besteira. Outro motivo para prestar atenção a esses números: muita gente no governo Lula quer diminuir o pagamento de dividendos das empresas públicas ("estatais"). A conta já começou a chegar, de leve, mas vai ser bem mais alta. De resto, se a lucratividade dessas empresas diminui, também cai a distribuição de dividendos.

Mais ainda: não é possível contar como receita de concessões ao setor privado como fonte regular de arrecadação, claro. Mas mais concessões aumentam a taxa de investimento na economia e rendem uns trocados grossos para o governo.

Parte do petismo governista deveria pensar nesses números.

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CAMINHO PARA O DÉFICIT ZERO

Míriam Leitão, O Globo

A equipe econômica promete que irá perseguir a meta neutra do mesmo jeito que o BC busca a meta de inflação

O Orçamento chegará hoje ao Congresso com o déficit zero, inúmeros debates e críticas. O mercado desconfia, parte do PT discorda, a oposição coloca obstáculos. Mas o que se diz na área econômica é que este é um compromisso real que será perseguido com a mesma tenacidade com que o Banco Central persegue a meta de inflação. “Não há criatividade aqui, todas as previsões de receitas são reais, todos os números são técnicos. Não estamos fazendo suposição, não tem nada sendo inflado aqui”, afirma uma fonte da área econômica. A ideia de flexibilizar a meta não tem qualquer aceitação no Ministério da Fazenda.

O Orçamento chega com R$ 170 bilhões de receita nova, a maioria de projetos ainda não aprovados no Congresso. Na conversa com técnicos do governo, eles explicam ponto a ponto. Dividem as fontes dessa nova receita em três tipos. A primeira seria “recomposição da base fiscal com correção das distorções”. Nessa conta entra o Carf, que foi aprovado ontem. O estoque de litígio nesse conselho é de R$ 1,1 trilhão.

— Tradicionalmente, numa conta conservadora, 10% se reverte em arrecadação da União. Então, a gente está fazendo um ajuste nesse padrão para algo em torno de 5%. Com o Carf voltando a ser funcional, calculamos R$ 54,7 bilhões em 2024 — me explicou um técnico.

Neste grupo está também o caso dos benefícios do ICMS sendo estendidos a impostos federais, que erodiu a base de cálculo do IRPJ e da CSLL. O governo já ganhou o debate no Supremo e essa base será recomposta. A correção do problema permitirá arrecadar R$ 3,5 bilhões a mais no ano que vem.

O segundo bloco de medidas é o que eles chamam no governo de “isonomia tributária e enfrentamento de abuso”. Basicamente é cobrar mais impostos dos mais ricos. Aqui entra a taxação dos fundos exclusivos. Atinge 50 mil CPFs com um patrimônio de centenas de bilhões investidos em fundos fechados que não pagam imposto da mesma forma que os fundos abertos, os da classe média. Nesse caso houve muito diálogo entre a área econômica do governo e os bancos e investidores.

— Não estamos copiando a Venezuela, estamos adotando o mesmo modelo dos Estados Unidos e da Europa. E isso foi conversado com a Faria Lima, eles entendem a nossa agenda, a gente não foi negociar para ceder, mas para que eles entendessem. É para dar o mesmo tratamento — disse um dos economistas do governo.

A dos fundos fechados permitirá uma arrecadação, no cálculo do governo, de R$ 13,3 bilhões em 2024 porque haverá taxação sobre o estoque e sobre o fluxo. O imposto vai recair sobre os rendimentos a cada seis meses, e sobre o total acumulado. O imposto sobre os fundos offshore é muito parecido, mas o tratamento será diferente. Haverá um aumento da alíquota dependendo do tamanho do investimento porque o governo quer que esse capital volte a ser aplicado no Brasil, e não em paraíso fiscal. Quando maior o ganho de rendimento maior a tributação. Nesses fundos offshore, eles acham que arrecadam R$ 7,2 bilhões no próximo ano.

Há também ainda uma medida que vai hoje junto com o Orçamento: o fim da dedutibilidade dos juros sobre capital próprio. A empresa antes deduzia do imposto a pagar os juros que pagava ao acionista que investisse capital na empresa. O que se diz na Fazenda é que sobre os impostos dos fundos exclusivos e dos offshore o debate já amadureceu. Sobre o fim do JCP, ainda há controvérsia. Há casos de empresas que abusam desse expediente para reduzir o IRPJ e há casos de instituições financeiras que precisam ter um elevado capital para cumprir os requisitos de Basileia. Por isso, o tema irá por projeto de lei, sem urgência. A previsão aqui é de receita de R$ 10 bilhões.

O terceiro bloco de medidas será para resolver o imenso contencioso tributário que existe. Não é o do Carf, nem será Refis. Será aberta uma frente de transações com os contribuintes para a solução de litígios. É impressionante o total de contencioso em debate com a Receita ou com a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. São quase R$ 2 trilhões. O que se diz na Fazenda é que é preciso encontrar maneira mais eficiente de solução dessas controvérsias. Nesse conjunto, a previsão é de R$ 43 bilhões de receita nova no ano que vem.

O que se conclui de conversas técnicas na área econômica é que, pelo menos, tudo foi analisado detalhada e concretamente. Com base nisso estão convencidos de que é possível chegar ao déficit zero.

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A ECONOMIA BRASILEIRA NA ERA DA INCERTEZA

Cláudio Frischtak*, O Globo

Precisamos não insistir em políticas que geram má alocação de capital e desperdício de recursos públicos

O título deste artigo foi inspirado num livro de John K. Galbraith, economista e autor prolífico que morreu em 2006, aos 97 anos. A tese central de Galbraith — um liberal progressista e democrata — pode ser assim resumida: as grandes certezas do pensamento econômico dos séculos XIX e XX foram abaladas pela Grande Depressão (no caso do capitalismo) e pelo insucesso do que se convencionou denominar de socialismo real.

Galbraith morreu antes do teste mais recente do capitalismo: a Grande Recessão, deflagrada ao final de 2008. Se vivo estivesse, veria esse episódio e a reemergência do populismo reivindicando a importância de o Estado atenuar ciclos e corrigir a desigualdade, teses que hoje vêm retornando com força ao debate. Nas economias desenvolvidas, discute-se como reverter a tendência ao baixo crescimento, a “estagnação secular”, num contexto de concentração de riqueza e oportunidades limitadas de educação e mobilidade. Para as economias emergentes, cunhou-se outra expressão: a “armadilha da renda média”, a dificuldade de países que superaram o subdesenvolvimento sustentarem o dinamismo. É possível enxergar similaridades: a transição demográfica dificulta o crescimento de ambos os grupos de países; a crise climática ameaça todos; e o populismo com traços autoritários deixou de ser monopólio dos países em desenvolvimento. Mas há também diferenças marcantes.

Aqui, os níveis de produtividade são ainda muito baixos, por estarmos longe de explorar e extrair crescimento de novas e não tão novas tecnologias, seja pela limitada integração à economia global, seja por grandes deficiências em infraestrutura e capital humano. Será possível superar a armadilha da renda média? Como chegar a mais crescimento com menor desigualdade?

O caminho do crescimento com inclusão se alicerça numa proposição simples: enquanto sociedade, precisamos aprender com os erros do passado, e não insistir em políticas que geram má alocação de capital e desperdício de recursos públicos. Pois estas não nos retirarão da armadilha da renda média e, pior, levarão o país a um longo período de estagnação. Para muitos, a renda encolherá, e as novas gerações terão menos oportunidades de ascensão e níveis mais baixos de bem-estar.

Políticas públicas devem se alicerçar em “evidências”, no que comprovadamente deu certo, no que foi capaz de impulsionar os ganhos de produtividade com maior igualdade de oportunidades. Um ambiente que induz a inovação e adoção de novas tecnologias com a efetiva abertura da economia, a modernização da infraestrutura e um compromisso de educação de qualidade para todos e maior cuidado do capital natural do país poderão, no conjunto, ser a diferença entre estagnação e um PIB per capita que cresceria em bases anuais próximo a 1,5%, centrado nos ganhos de produtividade. Em 2050, o país estaria 50% mais rico. Escapar da armadilha da renda média necessitaria de políticas que impulsionassem esses ganhos acima de 4% ao ano (foram de apenas 0,8% ao ano nas últimas três décadas).

Mais além das propostas que temem escapar do museu das ideias ruins, a maior dificuldade de avançar com essa agenda é de natureza política: a captura das instituições pelos interesses particulares entranhados no Estado, que resistem a sua modernização; e o poder dos incumbentes de defender politicamente seus mercados. Reformar o Estado deveria ser a prioridade maior, pois não há salvação fora do bom governo. Precisamos ser mais bem governados, com mais transparência e integridade. Garantir menores barreiras à entrada e maior dinamismo nos mercados e na economia. E romper o ciclo da reprodução da pobreza, da desigualdade e da destruição do capital natural.

É altamente provável que venhamos a observar nos próximos anos um tensionamento crescente da sociedade. Demandas não atendidas criam um campo fértil para demagogos populistas, espíritos autoritários e propostas salvacionistas. É a essência da incerteza, mas não necessita ser nosso destino. Talvez o primeiro passo seja encarar com sobriedade o futuro e assumir a ética da responsabilidade com a nossa e com as próximas gerações.

*Claúdio Frischtak é economista

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HADDAD ESTÁ CORRETO SOBRE A META FISCAL

Felipe Salto, O Estado de S. Paulo

Os defensores da mudança da meta de resultado primário querem mergulhar fundo na lassidão fiscal

Interrompo a sequência de artigos sobre a reforma tributária para retornar na próxima quinzena. É hora de falar da meta fiscal de 2024. A confusão iniciada no Congresso em torno desse tema é preocupante e deve ser neutralizada. O ministro Fernando Haddad está correto em reafirmar o compromisso de zerar o déficit público no ano que vem. No arcabouço fiscal, o rompimento da meta de resultado primário (receitas menos despesas sem contar os juros da dívida pública) é parte da regra do jogo. Há sanções previstas.

Desde 1999, o Brasil adota um sistema de metas anuais para o déficit ou superávit primário. Ficou conhecida como a terceira perna do chamado tripé macroeconômico, à época: taxa de câmbio flutuante, metas à inflação e responsabilidade fiscal. Resultado: uma década de controle da dívida pública. Em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal formalizou o procedimento, ao prever a fixação de metas anuais na Lei de Diretrizes Orçamentárias, a LDO.

Naquela lógica, para ter claro, descumprir a meta anual seria crime de responsabilidade, já que não havia sanção explícita ou qualquer tipo de gatilho ou de plano B no regramento vigente. Vale dizer, em todas as ocasiões em que o risco de descumprimento se mostrou elevado, os diferentes governos mandaram propostas de alteração da LDO para o Congresso, modificando a meta original. Em outros casos, lançou-se mão de expedientes criativos, sobre os quais já escrevia neste jornal em 30 de novembro de 2009, em parceria com o ex-ministro Maílson da Nóbrega.

O teto de gastos, por sua vez, inserido na Constituição em 2016, também funcionava assim. Fosse maculada, essa regra constitucional, mais forte do que a meta de resultado primário, resultaria em crime de responsabilidade. Essa rigidez acabou desembocando numa porção de emendas à Constituição, de modo a contornar a regra que, como se vê, fora mal desenhada.

Na lógica do novo arcabouço fiscal, já aprovado pelo Congresso Nacional, tem-se uma mescla das regras anteriores. Por isso, elogiei desde o início: boa inovação. A saber, o arcabouço tem dois pilares: um limite para os gastos, corrigido por 70% da variação passada da receita; e uma regra de resultado primário, com metas anuais fixadas na LDO.

A diferença em relação ao regime anterior (meta de primário e teto de gastos) é que, sob o arcabouço, o rompimento da meta de primário dispara duas sanções automáticas: 1) a redução do fator de 70% para 50%, dois anos à frente, restringindo a taxa de crescimento das despesas primárias; e 2) a aplicação de gatilhos para conter o aumento do gasto, conforme artigo 167-A da Constituição federal, já no ano seguinte ao da não observância da meta. Criou-se, portanto, um cordão umbilical entre os dois eixos.

Essa flexibilidade é desejável, a priori, de acordo com a própria literatura acadêmica disponível a esse respeito. Contudo, cabe explicar que a meta de resultado primário não pode ser simplesmente descumprida. Nada disso. Primeiro, o governo só está autorizado a usar dessa prerrogativa quando comprovar ter promovido todo o corte de gastos (contingenciamento) possível. Segundo, o rompimento, como expliquei, conduz à maior limitação do gasto à frente. É uma nova lógica a ser testada, essência do arcabouço. O mecanismo é arguto, pois evita fórmulas draconianas e impraticáveis, capazes apenas de animar os mercados por algum (pouco) tempo.

Vamo-nos entender, o balão de ensaio sobre a mudança na meta fiscal não tem outro objetivo senão aumentar as possibilidades para gastar além do necessário e do possível. O tema surgiu de modo atabalhoado e, pior, no seio da discussão das diretrizes orçamentárias pelo Congresso. Como jabuti não sobe em árvore, é evidente que a meta dos incautos é, na verdade, estimular as forças gastadoras de sempre a avançarem sobre o governo, para que abandone seu recémnascido programa fiscal.

Não há qualquer sentido em mudar a meta de 2024, sobretudo neste momento, se o próprio arcabouço já contempla a hipótese do não cumprimento. Não atingir a meta fiscal, como bem disse o secretário de Política Econômica Guilherme Mello, não significa romper com o arcabouço. Se as medidas de aumento de receitas pretendidas pelo governo não prosperarem, por inépcia do Congresso (é bom que se diga), é muito provável que o déficit primário estoure a banda de 0,25% do PIB (a meta é igual a zero, mas há um limite inferior dessa magnitude) e, neste caso, as sanções do arcabouço terão de ser ativadas. Nossa projeção, na Warren Rena, aliás, é de um déficit de 0,9% do PIB para 2024. E daí? Cumpra-se a regra. Mudar não passa de uma arapuca engendrada pelos gastões.

Afinal, qual seria a razão para jogar a toalha agora? O risco de romper a meta? Ora, mas romper a meta equivaleria a endurecer a política fiscal, dentro dos parâmetros do arcabouço, cumprindo-o de cabo a rabo. É uma falácia, portanto, cujo objetivo é turbinar as veleidades expansionistas.

Os defensores da mudança da meta de resultado primário querem mergulhar fundo na lassidão fiscal. É preciso zelar pelo recém-nascido arcabouço e fulminar essa esparrela tosca sobre a meta de 2024. Haddad e sua equipe estão corretos. Todo meu apoio a eles.

*Economista-Chefe da Warren Rena, foi secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo

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BRICS: PERIGO DE ATAXIA HEREDITÁRIA

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*, Democracia Política

Nesses últimos 50 anos, o medo, e não o ódio, manteve o mundo longe de um terceiro e  grande conflito militar . O período do pós guerra foi  marcado, essencialmente,  por uma   divisão ideológica   entre países  liberais capitalistas, do Ocidente , liderados pelos Estados Unidos (EUA);   e     países de regime comunista, do Leste, capitaneados pela União Soviética (URSS), sob a hegemonia da  Rússia. Todos  alimentaram-se de  discursos de paz e democracia, condições que permitiram a reorganização do mundo. Nas entrelinhas,   produziam-se, contudo,  novas e sofisticadas armas  e introduziam-se estratégias militares inovadoras, que ganharam o apelido de  " Guerra nas  Estrelas".

No período, a  energia atômica tornou-se popular nos campos energético e da medicina, e  desenvolveram-se  tecnologias espaciais. Com elas, a construção de foguetes e de ogivas  nucleares de longo alcance . Era a chamada "corrida armamentista", implementada  com o apoio de grandes empresas . As ameaças viriam agora  do céu. Santo Deus!... Desse cenário iriam surgir novas lideranças políticas, que   ignoravam totalmente a morte de 60 milhões de cidadãos, soldados e civis, mulheres, velhos  e crianças,  durante a segunda guerra: "É apenas uma estatística", ponderava Josef Stalin, líder da União Soviética (1927-1953).

Aumentou o  temor  de mais uma guerra , agora alavancada por uma sofisticada escalada de inovação armamentista , com alto poder de destruição .  Coube à  ONU - Organização das Nações Unidas e, alternativamente,  a expansão do  comercio mundial, controlado pela OMC - Organização Mundial do Comércio (ex-GATT), amenizar as pressões  no mundo conduzidas sob a influência  de países historicamente belicosos .  Rússia e EUA  cultivavam e cultuavam os novos  artefatos de destruição em massa., mantendo uma disputa aberta pela hegemonia no Planeta.  Tudo acontecia, contudo,  a nível de discurso, acrescido de algumas sabotagens a um e outro. Foi a chamada  "Guerra Fria". Acreditava-se que o  crescimento da capacidade armamentista  servia para  dissuadir às ameaças contenciosas . 

O modelo  empoderava indivíduos empreendedores e líderes políticos mais ousados,   sem compromissos com o passado. Desde 1976, com a morte de Mao Tsé Tung, a China,  teve esvaziados os vínculos ortodoxos  com o regime comunista. A seguir, em 1991, a URSS se desagregou. Os EUA passaram a capitanear as relações econômicas e sociais no mundo, com a ajuda do Grupo dos Sete (G7) , constituído pelos  países mais industrializados  e de regimes democráticos: - EUA, Inglaterra, Canadá, França, Japão, Alemanha e Itália.    Até por serem excluídas do G7,  emergiram  no cenário novas  lideranças , que  passaram a defender uma nova ordem internacional . 

Emergiu então  um modelo  global de intercâmbio e de blocos regionais para administrar os desequilíbrios . O  crescimento das populações, a má distribuição de renda e de  alimentos , os desperdícios , os serviços básicos insuficientes e as chantagens contra a humanidade (elevação dos preços do petróleo), geraram endividamentos e déficits contábeis  que  faziam empacar o sonho do desenvolvimento nos países emergentes,  até que, em 2009,  o BRICS aflorou , reunindo  Brasil(B), Rússia(R), Índia(I)e China(C), agregando-se, depois, à sigla um "S", ao incorporar a África do Sul. Seria um bloco que defendia uma  reação explícita à continuidade neocolonial  no mundo,  propagando  uma ação comum para conseguir  "paridade" de interesses e  frustrações, voltados para  corrigir o equilíbrio  geopolítico.

A semana passada (23 e 24 de 2023), foi realizada, em Johanesburgo, na África,  a 15a reunião de cúpula (presidentes) do BRICS ,  sem o Putin, acusado no Ocidente de sequestrar 200 crianças ucranianas. Mas no encontro foram incorporadas, perifericamente, à organização  a Arábia Saudita, o Irã, a Argentina, os Emirados, Egito e a Etiópia, formando um espécie de G11 .  As  promessas retóricas de multipolaridade e multiculturalidade atraiu cerca de 80 países,  pedindo o ingresso o BRICS. Atropela-se , de certa forma,  a Organização das Nações Unidas,  que congrega 193 países, o Banco Mundial (com o Banco do BRICS), a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, e os bancos de compensação de valores. São instituições que operam  em rede no mundo à busca desse equilíbrio geopolítico. Vozes do BRICS, entendem diferente. Trata-se de uma acumulação de poder nas mãos de grandes corporações e fundos de investimento,  que impõem  a submissão dos povos à uma pedagogia colonial remanescente. 

Daí que a ideia de um  BRICS constituído por  países de "economia emergentes" surge sedutora, embora  alguns  membros precisem abandonar os históricos beligerantes, e repensar seus ordenamentos , por não praticarem exatamente a democracia e nem militarem efetivamente na proteção  dos direitos dos pobres,  da igualdade étnica, de gênero e das minorias ,   tipicidades  de uma ordem especificamente democrática. 

Dentro do Grupo, justamente os fundadores líderes  do BRICS - Rússia e China - obstruem e reprimem em seus países a liberdade de expressão, oprimindo as individualidades ,  além de não refletirem  a  vontade popular majoritária.   A democracia nesses países  tem mais relativismo do  que o anunciado pelo presidente brasileiro. O conceito praticado abriga as conveniências de quem está no Poder  ou dos  grupos corporativos e ideológicos  aos quais   está  vinculado . Os  traços de intolerância  social e política são claros. A impressão é a de que os países líderes no bloco,  pretenderiam   tornarem-se hegemônicos  em uma nova ordem mundial sob a gestão do BRICS. Além do empoderamento financeiro (China) e bélico (Rússia), a proposta em discussão  é desmontar o  sistema de transações e pagamentos correntes, criando uma moeda própria dentro de uma nova ordem . A maioria da reservas  internacionais, inclusive dos membros do BRICS,  amparam-se no dólar  norte-americano, por ambiguamente confiarem na sua estabilidade  política e no seu  PIB.

Surgem dúvidas. Seriam absorvidos pelo bloco do BRICS os elevados déficits no balanço de pagamentos dos membros,  os seguidos calotes dos argentinos ,  ou aqueles gerados pelos fortes gastos  da Rússia com as guerras ? O Egito está praticamente quebrado.  O Brasil tem um enorme déficit  em conta corrente. As economias chinesa e russa estão oscilando para baixo. A invasão da Ucrânia teria legitimidade dentro do BRICS, já que os novos membros não tem compromissos  com a OTAN- Organização do Tratado do Atlântico Norte?  São muitas as perguntas . Quem e o que será a referência garantidora das transações comerciais e monetárias dentro do bloco? O euro é desqualificado dentro do bloco. Alternativas já foram pensadas com  o marco alemão, o yen japonês, inclusive com o  ouro. Não vingaram.  

Nesse cenário de insegurança , é difícil encontrar alguém, a curto prazo, com lastro econômico e credibilidade política para  assumir a garantia dos pagamentos internacionais com a suposta e nova moeda. As reservas do Brasil, os ativos do BNDES e do Fundo Amazônico  estão no bolo. Ninguém fala sobre isso. O pretenso  desmonte de instituições internacionais pode trazer complicações não só para o grupo , mas para o mundo inteiro: uma desarrumação geral. Então, não apenas o regime democrático está sob ameaça . Alguns  membros do BRICS mantém conflitos históricos com a vizinhança  - Arábia e Irã, Índia e China e até Rússia e China. A organização poderá, portanto, levar  tudo a uma espécie de "ataxia hereditária - doença do sistema nervoso e cerebral  . 

* Jornalista e professor

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LAICO INTOLERANTE

Editorial Folha de S. Paulo

Veto francês à túnica árabe em escolas atenta contra liberdade individual

Um dos movimentos capitais da marcha civilizatória foi a separação entre Estado e igreja. O divórcio foi bom para o poder público, que ficou livre de dogmas para fazer leis baseadas na razão, e para as próprias religiões, que não precisavam mais temer a opressão exercida por uma fé dominante.

Os maiores beneficiários, contudo, foram os cidadãos, que ganharam autonomia para decidir se querem ou não seguir uma crença e, em caso afirmativo, escolher qual.

Não há país que tenha implementado essa cisão de forma mais decidida do que a França, que desde a revolução de 1789, e especialmente a partir de 1905, vem cultivando com zelo a secularização. Talvez até com excesso de zelo.

O ministro da Educação francês, Gabriel Attal, anunciou que as escolas do país não permitirão mais que alunas usem a abaya (túnica árabe) em suas dependências. Pelo novo entendimento da pasta, esse adereço viola a Lei da Laicidade de 2004, que já vetara o hijab (véu islâmico) e outros "símbolos ostensivos" de religiosidade.

A França faz muito bem em proibir crucifixos nas paredes de prédios oficiais (exceto museus) e melhor ainda em impedir professores de utilizá-los. Os mestres, afinal, são representantes do Estado quando estão em sala de aula e devem, portanto, incorporar valores republicanos como a laicidade.

Esse raciocínio, porém, não se aplica aos alunos. Diferentemente dos professores, que escolheram trabalhar para o poder público, os pupilos estão na escola porque a lei assim exige.

Nessas condições, privá-los de portar símbolos que eles entendem ser importantes para suas identidades individuais parece um fardo excessivo. No limite, a laicidade está se contrapondo a liberdades individuais, que também fazem parte do pacote republicano.

Cabe lembrar ainda que a abaya não é propriamente um ícone religioso —ao menos não como o crucifixo para os católicos, a estrela de David para os judeus ou o turbante para os sikhs.

A túnica está entre o religioso —o Alcorão exige que mulheres se vistam "com modéstia", mas não especifica como— e o étnico, já que o traje é típico no norte da África e na Península Arábica, mas não em outras terras muçulmanas.

Ao investir contra a abaya, o Estado francês volta a legislar sobre vestimentas, o que soa como um retrocesso a períodos bem pouco iluministas da história.

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O QUARTEL E A URNA

Editorial Folha de S. Paulo

Proposta para conter politização de militares é menos ambiciosa, mas correta

A República brasileira traz em seu DNA a indelével marca do militarismo. Nasceu de um golpe, contra a monarquia em 1889, e foi pontuada ao longo de sua história por revoltas, interferências e pressões do poder fardado sobre o civil.

Boa parte disso partiu do fato de que os políticos usualmente só querem saber de militares quando desejam promover rupturas —e assim foi até o tenebroso 1964.

Os anos de reclusão da caserna após a ditadura trouxeram profissionalismo, mas a ascensão de Jair Bolsonaro (PL) em 2018 demonstrou que nem toda a mentalidade dos quartéis fora aperfeiçoada.

Mau militar, o capitão reformado foi apadrinhado por setores do Exército que buscavam maior protagonismo na política e cercado por generais da reserva que pretendiam ao fim controlar suas ações.

O resultado é conhecido. Quando a cúpula resistiu às intentonas golpistas e negacionistas do presidente, sobrevieram tensões institucionais como a demissão dos comandantes das três Forças e do ministro da Defesa em 2021.

Já naqueles turbulentos anos uma receita foi prescrita para o problema, na forma de uma proposta de emenda constitucional vetando militares da ativa em cargos no Executivo —situação que chegou ao paroxismo com o desastroso general Eduardo Pazuello à frente do manejo da pandemia de Covid-19.

Com a volta de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder, em meio ao desgaste agudo de imagem das Forças devido à presença de militares nas conspiratas bolsonaristas e a vexames como o da traficância de joias, o tema ganhou nova força.

Petistas mais adeptos do revanchismo advogaram a implosão do artigo 142 da Constituição, que rege as Forças e motiva interpretações delirantes de golpistas. O partido também pretendeu remover atribuições como as operações de Garantia da Lei e da Ordem, aliás uma prerrogativa presidencial.

O moderado ministro José Múcio (Defesa) interveio e foi gestada a minuta de uma nova PEC, que vedaria a fardados na ativa o posto de ministro e a possibilidade de candidatura a cargo eletivo.

A intenção meritória foi desidratada no seu primeiro dia de vida pública, após esta Folha ter revelado o teor da proposta. O senador Jaques Wagner (PT-BA), ex-titular da Defesa, reuniu-se com Múcio e outros ministros e anunciou que o governo apresentará um texto cobrindo apenas a limitação eleitoral, a valer a partir de 2026.

Ao que tudo indica, o governo não tem força política para levar adiante mudanças mais ambiciosas. Ainda assim, a medida aventada representa avanço relevante. Hoje, militares derrotados nas urnas podem levar de volta seu proselitismo político aos quartéis.

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quarta-feira, 30 de agosto de 2023

E SE FOSSE OUTRO PRESIDENTE ?

Vera Magalhães, O Globo

Tendência a se passar pano para anacronismos e posturas nada progressistas de Lula não vem de hoje

E se fosse outro presidente, e não Lula, que reduzisse de 2 (18% do total) para 1 (9%) o número de mulheres integrantes da mais alta Corte de Justiça do país?

E se fosse outro presidente a usar a nomeação de uma mulher para outro tribunal superior, menos estratégico nas questões de Estado e de grande repercussão política, como forma de atenuar o desgaste pela não nomeação de uma mulher para o Supremo Tribunal Federal (STF)?

E se fosse outro o chefe do Executivo que ignora a lísta tríplice da Procuradoria-Geral da República, encabeçada por uma mulher, para escolher, fora da lista, outro homem?

E se fosse outro o presidente que designasse um ministro para o STF e ele, ato contínuo, passasse a exarar votos alinhados com o pensamento mais conservador da sociedade brasileira?

O que aconteceria se qualquer presidente cogitasse trocar uma mulher, técnica de carreira de um banco público, para contemplar o Centrão de Arthur Lira e, para não ficar tão feio, pedisse ao partido que escolhesse uma mulher e, pela falta de alguma candidata com currículo compatível com as atribuições, ascendesse ao posto de mais cotada uma ex-deputada ligada ao principal opositor do mesmo presidente?

Qual seria a reação do PT e dos movimentos sociais progressistas a cada uma dessas decisões de um presidente da República? Não se trata de ponderações hipotéticas. Todas elas refletem decisões já anunciadas, ou em franca maturação, por Lula.

Ao dar de ombros para todas as ponderações para que designasse uma mulher, preferencialmente uma mulher negra, para a cadeira que hoje cabe à presidente do STF, Rosa Weber, o presidente demonstra desapreço pela regra republicana de que deve haver equidade de gênero em postos de poder.

Essa noção é a que permeia regras como as cotas para candidaturas femininas, seguidamente dribladas pelos partidos e, quando não cumpridas, varridas para debaixo do tapete por meio de anistias.

Para Lula, mais vale ter alguém para quem ele possa telefonar do que garantir que as mulheres, que representam a maioria da população brasileira e do eleitorado, se vejam minimamente representadas no tribunal que, conforme a História recente do Brasil é pródiga em confirmar, tem sido ator fundamental nas grandes decisões.

Chega a ser cinismo a conversa mole de que tudo bem reduzir à metade a já amplamente minoritária presença feminina no STF, uma vez que o presidente assinou ontem a indicação da advogada Daniela Teixeira para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ganha um Rolex do Bolsonaro quem souber, de cabeça, sem Google ou ChatGPT, dizer o nome de cinco ministros do STJ ou citar duas decisões de impacto nacional que a Corte tenha tomado nos últimos dois anos.

Ademais, o STJ já tem um número bem maior de ministros, então não chega a ser alvissareira a quantidade levemente superior de mulheres na Corte. Serão 7 de 33, ou 21%, percentual ainda bem aquém das cotas mínimas que se estabelecem em qualquer política afirmativa de equidade, os paradigmáticos 30%.

A tendência a passar pano para anacronismos e posturas nada progressistas de Lula não vem de hoje. Mas o fato de o Brasil ter enfrentado o trauma de Bolsonaro a reforçou como nunca.

Os diferentes arranjos cogitados na reforma ministerial para incluir no governo duas siglas bolsonaristas nunca seriam aceitos se não partissem de Lula. Nomes como o jurista Silvio Almeida, um portento do Direito brasileiro, em boa hora designado para os Direitos Humanos, passaram a figurar em listas de troca com uma dose de desrespeito que acaba por colocar em perspectiva a real intenção de sua nomeação inicial.

É importante que haja na sociedade o vigor civil para apontar em Lula idiossincrasias que seriam apontadas com dedo em riste noutros governantes, mesmo que de esquerda ou de centro. Importante para que ele mesmo reveja alguns desses atos tão contraditórios com sua promessa de campanha.

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FRANÇA NA OTCA CONSILIDARÁ INTERNACIONALIZAÇÃO DA AMAZÔNIA

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

A Guiana Francesa se manteve isolada, mas agora sofre com os imigrantes ilegais: garimpeiros brasileiros e peruanos, traficantes colombianos e refugiados haitianos

As mudanças climáticas exigem respostas mais positivas do que a disputa comercial entre os Estados Unidos e a China e a guerra da Ucrânia, que opõe a Rússia invasora aos países do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o grande bloco militar do Ocidente ainda hegemônico no mundo, que colocaram a sustentabilidade em terceiro plano na geopolítica mundial. A necessidade de cooperação entre as nações para conter o aquecimento global e transitar da economia do carbono para a economia verde, pautada pela energia limpa e renovável e a preservação da floresta, já “internacionalizou a Amazônia”, que passou a ser uma preocupação mundial, independentemente das suas fronteiras nacionais.

O desmatamento da Amazônia durante o governo Bolsonaro, cujo impacto no aquecimento global foi enorme, por causa das queimadas e derrubadas de árvores, foi um catalisador dessa internacionalização. Zerar o desmatamento é a forma mais eficiente e barata de reduzir o aquecimento global e ganhar tempo para a conversão à economia verde. Os países da União Europeia são os mais empenhados nesse processo. Não por acaso, na segunda-feira, o presidente Emmanuel Macron reivindicou que a França passe a integrar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), formada por oito países: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, República da Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.

“Declaro solenemente que a França é candidata a participar da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica e a desempenhar um papel pleno nela, com uma representação associando estreitamente a Guiana Francesa”, disse Macron. Na COP27, no Egito, quando fez dobradinha com Lula, então recém-eleito, com duras críticas ao ainda presidente Bolsonaro, o presidente francês já havia declarado, com muita ênfase, que a França se considera “uma potência amazônica”, por causa da Guiana Francesa. A antiga colônia francesa se tornou um departamento em vez de conquistar a independência, como o Suriname, a antiga Guiana Holandesa, e a Guiana, ex-colônia inglesa.

Quando Macron se refere à França como uma “potência amazônica”, obviamente não se refere à economia local, mantida por subsídios e importações. Restringe-se às plantações de arroz e mandioca, além da pesca e da silvicultura. A principal fonte de renda da Guiana Francesa é o centro espacial de Kourou. As grandes reservas de madeiras tropicais, que alimentavam uma indústria de exportação em expansão, e a exploração do ouro, com forte presença de brasileiros no garimpo ilegal, são atividades predatórias da Amazônia. A região ultramarina francesa abriga 1,1% da superfície amazônica.

Isolamento

Macron não participou da Cúpula da Amazônia, neste mês, em Belém, que reuniu líderes dos países da OTCA, apesar de ter sido convidado. Na segunda-feira, disse que gostaria de ter ido “para ser o único chefe de Estado europeu, ao lado de embaixadores europeus, para explicar como financiamos a Amazônia”. O pleito francês deve entrar na pauta da reunião dos chanceleres dos países membros da OTCA, marcada para novembro, em Brasília. Não é uma decisão fácil de ser tomada. Os oito países consideram que já cobrem o território da Amazônia. Mesmo a participação da França como observadora enfrenta resistência de algumas nações.

Em 2019, ao presidir a reunião do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), Macron traduziu a visão dos países mais ricos do mundo sobre a região: “A Amazônia é nosso bem comum. Estamos todos envolvidos, e a França está provavelmente mais do que outros que estarão nessa mesa (do G7), porque nós somos amazonenses. A Guiana Francesa está na Amazônia”.

Situada na costa setentrional da América do Sul, como o Suriname e a República da Guiana, a Guiana Francesa parece mais um território caribenho do que sul-americano. Está isolada do resto do continente pela floresta amazônica, pois é essencialmente povoada na faixa atlântica. O idioma francês e o dialeto créole, também presentes nas Antilhas, não são falados nos demais países sul-americanos.

A Guiana Francesa se manteve isolada, mas agora sofre com os imigrantes ilegais, principalmente garimpeiros brasileiros e peruanos, traficantes colombianos e refugiados haitianos. O Brasil sempre deu mais importância estratégica à cooperação com a Guiana do que a própria França. A Ponte Binacional Franco-Brasileira liga as cidades de Oiapoque, no Amapá, e Saint-Georges-de-l’Oyapock, na Guiana Francesa. Com duas torres de 83 metros de altura e um comprimento de 378 metros, é uma ponte estaiada, com duas faixas de rodagem e uma calçada para pedestres. Por ela, neste mês, saiu o primeiro carregamento de soja do Amapá para a França.

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O CENTRÃO NA LUTA DE CLASSE

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Lula mantém queda de braço com centrão por agenda econômica

Presidente compra novo constrangimento público com o grupo para destravar medidas de redistribuição

Lula lançou o Congresso contra a parede para destravar uma pauta que ele trata como prioridade. O presidente reforçou uma plataforma de redistribuição de renda, defendeu propostas que ampliam a taxação dos mais ricos e disse que deputados e senadores "não votam a favor dos interesses da maioria do povo".

"Eu espero que o Congresso Nacional, de forma madura, ao invés de proteger os mais ricos, proteja os mais pobres", disse o petista nesta terça (29). "Vamos fazer esse debate para a sociedade perceber quem é que está do lado de quem."

O alvo de Lula é o mesmo centrão que está prestes a entrar no governo. Apesar do acordo, o petista recebeu todos os sinais de que a turma que dá as cartas no Congresso está ansiosa para extrair benefícios da parceria, mas não vai se converter a todos os itens da agenda do presidente.

O petista viu o centrão apoiar propostas que contavam com a boa vontade de operadores econômicos, mas trata essa aliança como adversária de uma política redistributiva que ele levantou na campanha e pretende imprimir como marca do mandato.

Lula fez as contas para que o reajuste do salário mínimo e a ampliação da isenção do Imposto de Renda coincidissem com o envio ao Congresso de propostas para taxar aplicações fora do país e os rendimentos dos chamados super-ricos. A ideia era mostrar que a agenda econômica do governo pode superar uma fase de ajustes e alcançar o que os petistas descrevem como justiça social.

O presidente sabe que o centrão não votaria contra medidas populares como o aumento do salário mínimo, mas esses parlamentares têm resistências nada discretas à tributação dos mais ricos. Sem poder suficiente para fazê-los mudar de ideia, Lula usa a arma do constrangimento público e recorre à conhecida cartilha da disputa de classes.

Ao pressionar os parlamentares, o presidente reconhece que governo e centrão devem viver uma queda de braço permanente. A flutuação da popularidade de Lula pode favorecer um ou outro lado da briga.

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CONTRA O ILUMINISMO

Deirdre Nansen McCloskey*, Folha de S. Paulo

O Iluminismo da Razão foi um hobby de pouquíssimas pessoas

O liberalismo não é apenas raciocínio; e o raciocínio pode levar ao fascismo

Você ouvirá falar que o mundo moderno surgiu do Iluminismo, no século 18.

Por exemplo: o meu querido amigo, o grande historiador econômico Joel Mokyr, diz isso, afirmando que a economia moderna emergiu do lado científico do Iluminismo. Ele fala de um "Iluminismo industrial"....

O grande estudioso moderno do Iluminismo de forma mais geral, Jonathan Israel, atribui o liberalismo político ao que ele chama de Iluminismo Radical, especialmente do antiteísta Spinoza.

Entretanto, ambos estão enganados.

Estamos todos muito felizes por termos tido um Iluminismo. Tornarmo-nos céticos quanto à infalibilidade da Bíblia, e aprender que existem mais elementos do que terra, ar, fogo e água, nos tornou mais racionais sobre algumas coisas; sobre algumas coisas, mas não sobre todas elas, você notará —como a política.

Mesmo assim, é bom ter pessoas inteligentes investigando premissas até então inquestionáveis.

Mas não foi esse lado francês e racional das novas ideias o que mais importou. Foi o novo lado escocês da liberdade. O que Adam Smith chamou de "o sistema óbvio e simples de liberdade natural" foi muito mais importante na construção do mundo moderno do que a mera convicção de que agora somos racionais e antes não éramos.

Por um lado, a convicção é falsa. Sempre houve pessoas, de Buda a Galileu, dispostas a tentar corajosamente usar seus corações e cérebros contra as convenções.

Estudiosos e pensadores livres, para o bem ou para o mal, são comuns à sociedade humana, caso contrário, nada muda.

Por outro lado, o Iluminismo da Razão foi um hobby de pouquíssimas pessoas, como Spinoza, em Amsterdã, ou Thomas Jefferson, na Virgínia. Não foi um movimento de massa para se tornar racional. Veja, novamente, Bolsonaro ou Maduro.

Por outro lado, foi o passatempo particular de tiranos como Frederico, o Grande, que tocava flauta muito bem, e Catarina, a Grande, que encheu sua corte de matemáticos.

Esse mesmo Thomas Jefferson tinha escravos. Ele certamente era esclarecido e falava um bocado sobre liberalismo. Falava.

Não, o que tornou o mundo moderno, permitindo que o filho de um fabricante de selas para montarias como Immanuel Kant reorientasse a filosofia ocidental, foi o liberalismo.

O liberalismo, decididamente, não é apenas raciocínio. O raciocínio pode levar ao fascismo. O raciocínio deve decorrer da convicção de que todos merecem o que Kant chamou de "autonomia", autogoverno.

Adultismo.

*Economista, é professora emérita de economia e história na Universidade de Illinois, em Chicago

Tradução de Luiz Roberto Gonçalves

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NA TRANSMISSÃO DE BOATOS POLÍTICOS, CONFIANÇA É TUDO

Wilson Gomes*, Folha de S. Paulo 

Na transmissão de boatos políticos, confiança é tudo

Escolha qualquer tema que tenha sido objeto de ondas de fake news e teorias da conspiração e você encontrará multidões de crentes em sua veracidade. Principalmente naquele instante em que estão saindo quentinhas do forno em que são fabricadas. Quantos não acreditaram em fake news sobre microchips nas vacinas, boatos sobre a inexistência do vírus, rumores com alegações e exemplos de fraude nas urnas, boatos sobre cancelamento de eleições, teorias da conspiração sobre resultados antecipados, falsas informações sobre mudanças na Constituição ou sobre competências das Forças Armadas no equilíbrio dos Três Poderes?

Tenho amigos que ainda acreditam, com diversos graus de convicção, em alguns desses boatos, embora demonstrem forte ceticismo em relação a qualquer uma das últimas dez denúncias e acusações envolvendo, por exemplo, o clã dos Bolsonaros, não importa se venham do jornalismo, da polícia ou do Judiciário.

Perguntei-me como tal coisa era possível, há duas semanas, e apresentei a explicação mais frequente na pesquisa sobre boatos, inclusive os estudos que mais diretamente tratam de fake news: temos uma forte tendência a considerar plausíveis quaisquer boatos, notícias ou informações cujos conteúdos se alinhem ao que já julgamos saber e crer. E, ao contrário, quanto mais divergentes das nossas certezas forem as informações, mais portas lhes serão fechadas. Começamos com uma dose considerável de ceticismo e descrença, mas facilmente chegamos ao ponto de nem sequer aceitar sermos expostos ao conteúdo de determinadas fontes, uma vez que já damos como certo que mentem e distorcem contra nós.

Sim, fontes importam. Na verdade, o que importa mesmo é o juízo que se faz sobre a credibilidade das fontes, que tende a ser integralmente transferida para as coisas que elas contam. Assim, se quero que um boato seja bem-sucedido, um ótimo recurso é atribuí-lo a uma fonte confiável, dotada de autoridade e/ou bem posicionada na economia da informação. Ou, alternativamente, fazer com que o elo mais próximo do ouvinte na cadeia de transmissão seja alguém em que ele confie.

A tia do zap é uma fonte decisiva, pois, se nela confio, reduzo o ceticismo e a desconfiança habituais e dou atenção e credibilidade ao que está sendo dito. Mas credibilidade é um capital social, depende do reconhecimento dos outros, e não é necessariamente sinônimo de autoridade constituída, especialização ou profissionalismo. A credibilidade pode vir do afeto e da identificação. Baixo a guarda em virtude da afeição e da confiança recíprocas, do reconhecimento da boa-fé e do discernimento dos meus líderes morais e intelectuais, da admissão de que a pessoa que escuto está do mesmo lado que eu.

É isso que leva alguém a confiar mais no amigo que lhe repassa o boato do que no jornalismo, na agência de checagem ou no TSE que o desmentem. É que nestes ele não crê, certo de que estão numa maracutaia contra o seu lado, de que têm uma agenda oculta e hostil aos seus interesses. Por isso é que, nas inundações de fake news, a tia do zap pode gozar de mais credibilidade e por mais gente do que o editor do jornal mais respeitado país.

Eis por que todo grupo que se dedica a usar boatos falsos como meio de propaganda precisa, ao mesmo tempo, trabalhar em duas frentes. De um lado, cuidar de construir cadeias de transmissão na forma de verdadeiras comunidades de pessoas que, mais que compartilhar conteúdos, compartilhem uma visão. A produção e a disseminação em fluxo contínuo de fake news com o mesmo tema e inclinação são antes de tudo meio de construir e radicalizar redes ou comunidades de crentes na mesma fé política. Para isso foram utilizadas as mídias sociais, que funcionaram como centro logístico para embalar e despachar fake news para todo o país, além de servirem como meios para construir comunidades de crentes nos mesmos boatos. Não é apenas criar um boato e então procurar alguém para disseminá-lo; a rede de transmissores deve estar preparada e ajustada.

A parte complementar do processo consiste em um enorme investimento na destruição da confiança nas fontes habituais de conhecimento e informação —o jornalismo, intelectuais, a Suprema Corte, a universidade, a ciência— que possam rivalizar em credibilidade como fonte de informação. Fake news, em suma, não apenas geram a rede de confiança necessária para a própria reprodução; também trabalham para reduzir os anticorpos produzidos pelo organismo social que poderiam impedir ou dificultar a sua transmissão.

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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