sexta-feira, 30 de junho de 2023

O CUPINZEIRO

Bruno Pires, PIAUÍ

BOLSONARO DESIDRATOU MAIS MÉDICOS E PÔS NO LUGAR UM NINHO DE FALCATRUAS

O inventário do fracasso e das irregularidades do governo Bolsonaro na área da saúde

O médico Juan Delgado lembra até hoje do dia 26 de agosto de 2013. Ele era um dos 96 profissionais estrangeiros que haviam desembarcado em Fortaleza para o curso inaugural do Programa Mais Médicos, criado para atender milhões de brasileiros pobres que vivem nos rincões do país. Ao entrarem na Escola de Saúde Pública do Ceará, os médicos, provenientes de Cuba, Bolívia, Portugal e Espanha, enfrentaram um protesto ruidoso dos colegas brasileiros. Foram xingados, vaiados, chamados de “escravos” e, na hora de ir embora, ainda ficaram retidos mais de quarenta minutos no saguão da escola. Um dos médicos brasileiros mais indignados era a pediatra Mayra Pinheiro, que, no governo de Jair Bolsonaro, tornou-se secretária do Ministério da Saúde e ficou conhecida como Capitã Cloroquina, por sua militância em favor do medicamento ineficaz contra a Covid.

O protesto foi um choque para os estrangeiros, sobretudo porque vinham para o Brasil com a missão de trabalhar em regiões nas quais seus colegas brasileiros não se dispunham a se estabelecer. “Aquela manifestação nos deixou muito chateados”, diz Juan Delgado, graduado na Faculdade de Medicina de Santiago de Cuba. “Estávamos chegando para ajudar o povo brasileiro e nos chamaram de escravos.” A recepção furiosa no Ceará não foi um caso isolado. Desde que fora lançado pelo governo de Dilma Rousseff em julho de 2013, o Mais Médicos virara alvo de entidades médicas, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB). As organizações médicas queriam, entre outras demandas, manter uma reserva de mercado e se aliaram a políticos da direita, que, por sua vez, estavam incomodados com a presença maciça de cubanos no programa, pois 70% de seus salários acabavam nos cofres de Havana, nos termos do convênio firmado entre o governo brasileiro e a Organização Pan-­Americana de Saúde.

Apesar da reação contrária, o programa foi um sucesso do ponto de vista da saúde dos brasileiros. No fim do segundo ano, já havia 14 158 médicos distribuídos pelas áreas mais remotas do pelo país. No seu auge, chegou a ter 18 240 profissionais espalhados em mais de 4 mil municípios e vilarejos, assegurando atenção básica a 63 milhões de brasileiros. Até os 34 distritos indígenas da Amazônia, alguns dos quais jamais haviam visto um médico, passaram a ter atendimento. Em mais de mil municípios, o Mais Médicos respondia por 100% da atenção primária em saúde, que fornece prevenção e evita o agravamento de algumas doenças – e, portanto, internações e mortes.

Estudos coordenados pela pesquisadora Leonor Pacheco Santos, da Universidade de Brasília (UnB), examinaram a situação de 1,7 mil municípios brasileiros em que mais de 20% da população vivia em extrema pobreza e em áreas remotas de fronteira. Destas localidades, 1,4 mil tinham o Mais Médicos e 300 não haviam aderido ao programa. As pesquisas mostram que, onde havia o Mais Médicos, cresceu a cobertura de saúde e caiu o número de internações. Nos outros municípios, a situação não permaneceu estável. Agravou-se: a cobertura encolheu e o índice de internações aumentou.

A oposição corporativa e política ao Mais Médicos, no entanto, continuou. Em 2018, Bolsonaro, que apelidara o programa de “Maus Médicos” e chegara a pedir sua suspensão na Justiça, entrou na campanha presidencial prometendo sepultar a iniciativa. “Os cubanos que temos aqui ninguém sabe, na verdade, o que são”, disse, duvidando da qualificação dos profissionais. Ameaçava expulsá-los do país. Quando foi eleito, a Embaixada de Cuba em Brasília antecipou-se e orientou seus médicos a deixar o Brasil. Na época, noticiou-se que cerca de 8,5 mil cubanos deixaram o programa antes mesmo que Bolsonaro tomasse posse – eles respondiam por metade do contingente do Mais Médicos. Depois que foi empossado, Bolsonaro manteve sua oposição ao programa. Disse que “a ideia” do Mais Médicos “era formar núcleos de guerrilha no Brasil”.

Em 1º de agosto de 2019, Bolsonaro e o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta editaram uma medida provisória criando o Médicos pelo Brasil para substituir o programa do PT. Mandetta era muito ligado às entidades médicas, que, de modo geral, aprovaram o novo programa, sobretudo porque era exclusivo para os médicos com registro nos conselhos regionais de medicina do Brasil. Foi o princípio de um desastre que resultou na criação de um ninho de falcatruas, com casos de nepotismo, irregularidades administrativas, denúncias de assédio moral e malversação de verba pública – e prejudicou enormemente o atendimento à saúde dos brasileiros mais pobres.

Tudo começou com a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde, conhecida pela sigla Adaps. Criada em março de 2020 por um decreto presidencial, a agência tinha a missão de colocar o Programa Médicos pelo Brasil em funcionamento e, assim, permitir a extinção do modelo petista. A expectativa de que começasse a funcionar no primeiro ano, refletida na aprovação de um polpudo orçamento de 723 milhões de reais, não se confirmou, e as verbas acabaram sendo remanejadas para outros setores. Mas, com a queda do ministro Luiz Henrique Mandetta em abril de 2020, apenas um mês depois da criação da Adaps, as coisas empacaram já na largada.

O presidente do Conselho Deliberativo da Adaps – o médico Erno Harz­heim, que acumulava o cargo com o de secretário de Atenção Primária à Saúde – correu para montar a direção da nova agência com aliados. Sabia que, diante da saída de Mandetta, todos corriam risco de demissão e achou que era preciso instalar gente de confiança antes de ir embora. Em uma reunião convocada às pressas, Harz­heim aprovou o estatuto da agência, que nem havia sido analisado pela Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, e conseguiu aprovar três nomes para a diretoria da Adaps —Alexandre Pozza, Soraya Andrade e Caroline Martins dos Santos, todos funcionários cedidos pelo Ministério da Saúde. Harzheim perdeu seus dois cargos seis dias mais tarde.

Depois de sua saída, a presidência do Conselho Deliberativo da Adaps foi ocupada pelo novo secretário executivo do Ministério da Saúde: o notório Elcio Franco, o coronel do Exército que ignorou o e-mail da Pfizer oferecendo vacinas contra a Covid e voltou agora ao noticiário, ao ser flagrado num áudio em que sugere a mobilização de 1,5 mil soldados para dar um golpe de Estado e devolver Bolsonaro ao poder. Para auxiliar Elcio Franco, a vice-presidência do Conselho Deliberativo da Adaps coube a Mayra Pinheiro, a Capitã Cloroquina.

A chegada de aliados de Bolsonaro, no entanto, em vez de agilizar a montagem da Adaps para viabilizar o Médicos pelo Brasil, acabou paralisando a agência. Agora sob o comando do general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde não tinha interesse em mobilizar o SUS, o maior sistema público de saúde do mundo, cuja existência o novo ministro nem sequer conhecia, segundo ele mesmo admitiu publicamente. Além disso, os militares de Pazuello queriam controlar a Adaps, indicando amigos e tomando conta da verba. Mas, como os diretores da agência haviam sido eleitos para um mandato de dois anos, os militares não conseguiram abocanhar a agência – e a deixaram na geladeira.

Assim, criou-se o pior cenário. Quando a pandemia chegou ao país, o Médicos pelo Brasil era uma ficção e o programa que ainda existia, o Mais Médicos do PT, estava em processo de desidratação. Naqueles mil municípios em que o programa respondia por 100% da atenção primária, esse tipo de atendimento simplesmente ruiu. Nos vilarejos onde só havia médicos cubanos, os postos de saúde ficaram desertos. “O Mais Médicos poderia ter tido um papel extraordinário na pandemia”, lamenta Hêider Pinto, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que encerrou seu doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com uma tese sobre o Mais Médicos. “Vários países, como Itália e Estados Unidos, criaram mecanismos para facilitar que médicos estrangeiros atuassem na pandemia. A Itália, inclusive, fez uma cooperação para levar os médicos de Cuba.”

A Adaps só passou a receber um mínimo de atenção do Ministério da Saúde com a queda de Pazuello e a chegada de Marcelo Queiroga, em março de 2021. Elcio Franco, o coronel que deu bolo na Pfizer, foi substituído no comando do conselho deliberativo da Adaps pelo ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, que representava o Rio de Janeiro no CFM, um órgão que, naquela altura, já estava sob domínio do bolsonarismo. Um dos integrantes do Conselho Deliberativo da agência, Mauro Junqueira, que representa o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), definiu a paralisia da Adaps em uma reunião em abril passado nos seguintes termos: “O governo que criou [a agência] quis matar no ninho. Não deixou funcionar.” As primeiras atividades administrativas da Adaps começaram então em setembro de 2021, um ano e meio depois de sua criação. O quadro técnico-administrativo só começou a ser selecionado entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, quase dois anos mais tarde. Mas, quando finalmente a agência começou a virar realidade, abriu-se o capítulo das falcatruas.

Legalmente, a Adaps podia escolher livremente os nomes para os cargos de direção e assessoramento. Mas, para simular ares de rigor, adotou um “processo seletivo” para todos os seus contratados, inclusive os gerentes. Na prática, a seleção funcionou como um biombo para disfarçar a nomeação de amigos e familiares. O diretor-presidente da Adaps, Alexandre Pozza, contratou um instituto para fazer a seleção de 109 profissionais. Optou pelo Instituto Euvaldo Lodi (IEL), do Distrito Federal, onde trabalhava sua própria mãe, Ana Helena Pozza Urnau Silva. Nisso, já cometeu uma infração ao violar duas resoluções que proíbem a contratação de empresas que empregam familiares de seus funcionários.

A seleção dos primeiros 35 ocorreu em dezembro de 2021. O período de inscrição era uma ruína: abriu às 20 horas da quarta-feira e fechou às 23h59 do domingo. Ou seja: os candidatos tiveram apenas dois dias úteis para reunir toda a documentação. Embora os salários fossem bastante atraentes, oscilando entre 11 mil e 22 mil reais, sem contar benefícios extras, o número de inscritos foi ínfimo. Exemplos: para o cargo de “gerente da unidade de recrutamento e seleção” houve apenas quatro inscritos. Para “gerente da unidade de formação, ensino e pesquisa”, foram seis. O cargo que atraiu mais candidatos – o de “gerente da unidade de orçamento, finanças e contabilidade” – chegou a dezenove candidatos. No total, houve apenas 159 inscritos. (Uma comparação: no mesmo ano de 2021, a Polícia Civil do Distrito Federal fez um concurso para agentes e escrivães, com salário de menos de 9,4 mil reais. Atraiu mais de 140 mil inscritos.)

Em consulta a registros públicos e entrevistas com funcionários que passaram pelo crivo da seleção, a piauí constatou que, entre os aprovados, havia amigos dos diretores e dos gerentes, que participavam das bancas avaliadoras. Também foram contratadas pessoas que trabalhavam no próprio IEL, o instituto encarregado de recrutar e selecionar o corpo técnico da agência. Alessandra Campos Castanheira, ex-consultora de negócios do IEL, é fisioterapeuta com MBA em gestão empresarial e passou a comandar o setor de gestão de riscos, normas e projetos da Diretoria da Presidência da Adaps. Neiane da Silva Azevedo Andreato, ex-coordenadora da área de capacitação e consultoria empresarial do IEL, virou gerente de gestão estratégica da Adaps. (Em seu Instagram, ela refere-se à mãe de Alexandre Pozza, o chefe da Adaps, como “minha querida amiga e mentora”.) Apesar de tudo, o instituto diz que não cometeu qualquer irregularidade e tudo transcorreu com normalidade.

O processo de seleção – com a contratação do IEL, a seleção de seus funcionários e as estranhezas sobre prazo exíguo, além do número diminuto de candidatos – resultou numa denúncia de 95 páginas, entregue anonimamente no Ministério da Saúde. O documento afirma que, no rol dos selecionados, há uma lista de amigos de ex e atuais dirigentes da Adaps e chama a atenção para uma coincidência: a contratação de casais, com marido e mulher emplacando em bons cargos. Sérgio Henrique Moreira Cunha ganhou a gerência de recursos humanos e sua mulher, Ketyane Evelin Costa Lima, ficou lotada na presidência.  O gerente jurídico, Thiago Henrique da Silva Machado, marido da coordenadora do núcleo jurídico do Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro, Patrícia dos Santos Marçal, acabou afastado do cargo em razão do conflito de interesses. Eles eram sócios de um escritório de advocacia.

As 95 páginas chegaram ao Ministério da Saúde ainda no governo de Bolsonaro, que repassou a denúncia para o Tribunal de Contas da União. O TCU ainda não a examinou. Em março passado, o governo Lula também recebeu cópia da denúncia. O assunto foi analisado por uma comissão formada por um representante do Ministério da Saúde, outro da Controladoria-Geral da União e um terceiro da Advocacia-Geral da União. Os integrantes da comissão reclamaram que vinham tendo grande dificuldade para acessar informações sobre a seleção, mas, mesmo assim, conseguiram concluir o trabalho no dia 15 de maio. O conteúdo do relatório final não havia sido divulgado até o fechamento desta edição.

À forma polêmica com que os funcionários foram contratados seguiu-­se um ambiente de trabalho tóxico. Em um universo de pouco mais de cem funcionários, a agência foi alvo de 35 denúncias na ouvidoria do SUS, segundo informação da assessoria do Ministério da Saúde. Em conversa com a piauí, três funcionários, que pediram o anonimato para não prejudicar as chances de obter novo emprego em Brasília, deram detalhes dos casos de assédio de que foram vítimas. Um deles foi demitido ao chamar a atenção para o custo excessivo de um projeto de telemedicina. Outro era assediado para desocupar o cargo para o qual fora selecionado e, assim, ceder a vaga a um amigo da diretoria. Um terceiro, lotado na auditoria interna, foi demitido porque seu relatório desagradou à diretoria. Entrou na Justiça e pede indenização de 700 mil reais. O caso está em segredo de Justiça.

Ouvido pela piauí, um funcionário descreve o ambiente que imperava na agência: “A composição do quadro de colaboradores foi pensada para pessoas com alguma ligação familiar, profissional ou de amizade. Muitos aprovados e contratados não tinham currículo para exercer o cargo. Existia perseguição e isolamento quando um chefe ou seu protegido era contrariado. Existiam ameaças, dizendo que ali era CLT e que se a pessoa não estivesse com a atual gestão seria demitida. Falas como ‘Não pode apresentar dados negativos no relatório porque compromete a Adaps’ e ‘Estou dizendo que será assim porque eu sou o chefe’ eram frequentes.” Os casos de assédio moral começaram a ser investigados em um inquérito civil pelo Ministério Público do Trabalho, em Brasília, e as audiências devem começar em breve.

No terreno da proteção aos amigos, apareceu uma suspeita inclusive na gerência de comunicação, chefiada pela jornalista Roberta Teles, profissional conhecida em Brasília. Ela queria um “serviço especializado para concepção de identidade visual da agência” e contratou uma empresa de publicidade que pertence a Ravell Nava, ex-sócio do seu marido. A empresa, Dois Ellis Comunicação, mudou a cor da logomarca da Adaps, que passou de verde para azul, e embolsou 45 mil reais. Teles pediu demissão no dia 13 de abril. Procurada pela piauí para falar da preferência pelo ex-sócio do marido e a natureza do serviço prestado, a jornalista pediu para responder por escrito, mas não enviou suas respostas.

Chama atenção que, depois de toda a letargia na sua implementação, a Adaps fez algumas contratações por dispensa de licitação sob alegação de emergência. Parte dos contratos, no entanto, previa duração de até cinco anos, o que, obviamente, não se enquadra como urgente. O contrato mais caro, de 180 milhões de reais, firmado com a Flash Tecnologia e Pagamentos Ltda, para fornecimento de vale-refeição e vale-alimentação, tem um prazo de 24 meses e pode ser prorrogado por até sessenta meses. A prática é incompatível com a lei de licitações, que prevê um ano co­mo limite para contratos emergenciais, e também com a lei do estatuto jurídico de empresas estatais, que só autoriza até 180 dias. No entanto, no puxadinho privado criado para gerir o Médicos Pelo Brasil, o manual de licitações não previu limite temporal para contratações emergenciais.

Outra suspeita – desta vez, sob exame do Tribunal de Contas da União – investiga se havia servidores cedidos pelo Ministério da Saúde recebendo salário duplo, do próprio ministério e da Adaps, o que é ilegal. “Inadmissível que o cidadão de bem tenha que ver esta ilegalidade e não possa fazer nada”, escreveu, em outubro passado o autor de uma denúncia anônima entregue à ouvidoria do Ministério da Saúde. O denunciante estava preocupado com a imagem de Bolsonaro em pleno período eleitoral. “Nosso presidente não sabe disso, com certeza!!! […] Ao que parece, a agência existe apenas para encher os bolsos de alguns. Ainda acreditando que o governo Bolsonaro não concorda com essa baixaria, desejo que essa situação seja resolvida.”

Não foi. Até o fim do governo Bolsonaro, ninguém mexeu no assunto.

Enquanto a Adaps virava um clube de amigos – formado por meia centena de pessoas que se enredavam em disputas, irregularidades e compadrios –, o Mais Médicos, embora enfraquecido, continuava operando. Em 2020, o primeiro ano da pandemia de Covid, o governo Bolsonaro passou pelo constrangimento político de chamar de volta os cubanos que, mesmo desligados do programa, não haviam regressado ao seu país – entre eles, estava Juan Delgado, chamado de “escravo” ao chegar ao país e que foi escalado para trabalhar no município de Zé Doca, no Maranhão, onde vive desde 2013. Bolsonaro só pôde tomar essa medida graças a uma iniciativa do Congresso Nacional.

Aconteceu o seguinte: na medida provisória que criou o Médicos pelo Brasil, Bolsonaro proibia a contratação dos estrangeiros que faziam parte do programa do PT. O Congresso, no entanto, com receio de deixar enormes parcelas da população pobre sem atendimento, decidiu prever a reincorporação dos cubanos por até dois anos. Por isso, em 2020, o Mais Médicos chegou a reunir um total de 16 539 profissionais, recuperando-se do baque sofrido com a eleição de Bolsonaro.

Ainda assim, o desmazelo com que o programa vinha sendo tratado já havia produzido resultados letais imediatos. Uma reportagem da piauí, publicada na edição de janeiro de 2022, mostrou o efeito da saída dos médicos (cubanos ou não) em municípios pobres e de pequeno porte: o número de mortes evitáveis de crianças de até 5 anos aumentou 40%. Ou seja: o sarampo, a pneumonia e outras doenças tratáveis, voltaram a matar crianças que, se tivessem recebido cuidados simples em postos de saúde com algum médico, poderiam estar vivas. Em alguns municípios, o total de mortes infantis evitáveis chegou a subir quase 60%.

Quando passou a montar seu quadro funcional, a Adaps deveria ter começado a tomar contato com essa realidade dramática para tentar revertê-la. Em vez disso, surgiram as desconfianças de conflitos de interesse na gestão dos recursos financeiros da agência. O presidente da Adaps, Alexandre Pozza, contratou a Maza Invest, de Brasília, para gerir a carteira de aplicações da agência, que chegava a 232 milhões de reais. A suspeita de conflito de interesses apareceu em razão do fato de que Abner Lima de Oliveira, o sócio majoritário da Maza Invest, também é dono de outra empresa, a Quantfort Technology Research and Integration, sediada em Londres, que emprega como diretor um irmão de Pozza, Jose Roberto Cunha Silva Filho. A situação, segundo Mauro Menezes, ex-presidente do Comitê de Ética Pública da Presidência da República, configura conflito de interesses e descumpre o próprio código de ética da Adaps. A piauí procurou a Maza Invest para saber qual a relação entre a brasiliense Maza Invest e a londrina Quantfort, mas a empresa não esclareceu este ponto.

A mecânica pela qual a Maza Invest foi selecionada também chamou a atenção. Na véspera do Natal, em 24 de dezembro de 2021, Pozza mandou uma carta-convite para seis empresas, entre elas, a Maza Invest, que, no entanto, nunca havia gerido um fundo de investimento, segundo consulta pública na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Pozza deu três dias úteis para que as empresas apresentassem uma cotação de preços. Uma semana depois, em 31 de dezembro, uma diretora da Adaps assinou um termo de referência para a contratação de uma gestora, sem informar o volume de recursos que seriam geridos. É um detalhe curioso porque empresas de grande porte tendem a participar apenas de licitações que envolvem valores robustos. No dia 3 de janeiro de 2022, Pozza assinou o aviso de licitação – que, ao contrário da prática mais usual de transparência, não foi publicado na imprensa, nem divulgado na internet. O aviso, que dava quatro dias para o envio das propostas, ficou colado numa parede da repartição, dificultando o surgimento de mais concorrentes. No dia 10 de janeiro, a Adaps abriu as propostas. Havia apenas quatro empresas na disputa – duas de Goiás, uma do Rio de Janeiro e a Maza Invest, de Brasília, que saiu vencedora e foi contratada no dia seguinte.

Em nota, a Maza defende sua posição: “O suposto conflito de interesses, fruto de ilação trazida não prospera. A Maza Invest logrou êxito em processo licitatório pela modalidade de menor preço, estando o contrato em pleno e fiel cumprimento, com resultados visíveis à Administração, e assim permanecerá até o seu término. Se o sócio Abner Lima de Oliveira é detentor de sociedade empresária em jurisdição distinta, no exterior, e com regras jurisdicionais próprias, a Maza Invest não possui qualquer interferência nesta temática.” A Maza Invest só registrou o fundo de investimento da Adaps junto à CVM  e à Receita Federal no dia 24 de março passado.  Escolheu o banco btg Pactual como administrador do fundo. Neste mesmo dia, o conselho deliberativo da Adaps, agora presidido por um indicado do governo Lula, afastou os três diretores da agência para apuração de eventuais irregularidades.

Uma das primeiras medidas tomadas pelos diretores interinos da Adaps foi transferir os investimentos do BTG para o Banco do Brasil.

Com a aproximação da eleição presidencial e o risco iminente de que Bolsonaro poderia perder o pleito, a diretoria da Adaps começou a tomar providências de última hora – nenhuma delas, no entanto, no sentido de aprimorar o atendimento de saúde. Em outubro, no mês da eleição, Alexandre Pozza firmou um acordo de cooperação técnica com a Organização de Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), no valor de 12 milhões de reais. O acordo visava estabelecer “cooperação técnica, científica e cultural”, bem como o “intercâmbio de conhecimentos”.

Na prática, o convênio serviu para dar abrigo aos amigos que, com o fim do governo de Bolsonaro, perderiam seus cargos comissionados em diversos órgãos. Desta vez, os militares também foram contemplados. Em dezembro, a OEI selecionou 23 pessoas para trabalhar como consultores na Adaps por prazos que iam de quatro meses a um ano. Entre os contratados, estava Robson Santos da Silva, o coronel do Exército cuja inoperância no comando da Secretaria Especial de Saúde Indígena está no epicentro da tragédia humanitária dos yanomamis e é objeto de um inquérito civil. Mariana Naime também virou consultora. Ela trabalhou com o ex-preso Anderson Torres no Ministério da Justiça e é casada com o atual preso Jorge Eduardo Naime Barreto, ex-comandante do Departamento de Operações da Polícia Militar em Brasília, suspeito de envolvimento na intentona golpista do 8 de janeiro. Teve lugar ainda para duas funcionárias do Ministério da Saúde, Patrícia Marçal e Lana Aguiar Lima, que ajudaram Raphael Câmara Parente a fazer a cartilha sobre o aborto – que listava os casos em que a prática era permitida, mas usava uma retórica criminalizadora, como dizer que “todo o aborto é crime”.

Procurada pela piauí, a OEI informou, por e-mail, que contratou consultores seguindo critérios de seleção e termo de referência definidos pela Adaps, e que estava rescindindo alguns contratos de consultores. “Não cabe à OEI o controle das ações individuais de eventuais especialistas contratados em projetos da Organização”, disse a entidade, que acrescentou: “A OEI não compactua com práticas indevidas, seja de nepotismo ou de qualquer outra que atente contra o Estado Democrático de Direito.”

Outro negócio de última hora foi selado com o advogado Edvaldo Nilo de Almeida, contratado para mover uma ação judicial contra a União. Em que pese ser abastecida pelos cofres da União e ter um departamento jurídico, a Adaps recorreu ao advogado para tentar obter imunidade tributária na Justiça. Nilo de Almeida é especialista no assunto, já ganhou várias ações da mesma natureza e desfila com desenvoltura pelo meio político. Nas eleições de 2022, foi um dos maiores doadores individuais, abastecendo o caixa de campanha de dezoito deputados e um senador. Quem mais recebeu foi o deputado baiano Elmar Nascimento, líder do União Brasil, contemplado com 150 mil reais.

Contratado no dia 23 de dezembro do ano passado, Nilo de Almeida agiu com rapidez, já que sua remuneração varia conforme o tempo – quanto mais rápida a vitória, maior o percentual que receberá. Assim, protocolou uma ação judicial no dia 12 de janeiro e, no dia 6 de fevereiro, já tinha em mãos uma liminar autorizando a Adaps a suspender o pagamento de tributos. Se vencer ainda neste ano, um relatório da Adaps estima que embolsará 7 milhões de reais em honorários. A piauí perguntou à Adaps se a contratação de um advogado externo era inevitável e quis saber se a agência havia pedido isenção tributária pelo meio mais comum, solicitando a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas). A agência não respondeu. Nilo de Almeida, por sua vez, diz que não seria possível obter o Cebas e que o cálculo de 7 milhões é irreal. O contrato está sob exame da junta jurídica criada para avaliar atos da diretoria da Adaps. “O contrato é legítimo e legal, uma vez que eu fiz essas ações em praticamente todos os serviços sociais autônomos, porque eu criei a tese lá em 2005”, disse o advogado.

O governo Bolsonaro se encerrou no dia 31 de dezembro de 2022 tendo preenchido apenas 4 823 vagas do seu programa Médicos pelo Brasil. Havia mais de mil vagas do programa não preenchidas. É um número muito inferior ao obtido pelo Mais Médicos em seus primeiros anos. Esse resultado pífio é o retrato de uma severa incompetência administrativa e, também, dos efeitos nefastos de uma gestão que se orienta mais por preconceitos ideológicos do que pela saúde dos brasileiros mais pobres. “Foi uma gestão subserviente e refém dos piores interesses privados, que não fez o que precisava ser feito, com o custo irreparável do sofrimento e morte de milhares de brasileiros”, critica Hêider Pinto, da UFBA.

A situação só não ficou ainda mais catastrófica porque o Mais Médicos, apesar de tudo, continuou operando em paralelo. O professor Davide Rasella, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, fez um estudo sobre o impacto que o fim hipotético do Mais Médicos poderia produzir. O estudo, publicado na revista médica BMC Medicine, concluiu que sem os cuidados básicos prestados pelo programa o número de mortes evitáveis de adultos e crianças em todo o país teria subido num patamar entre 27,7 mil e 48,5 mil.

A tragédia é que a desidratação do Mais Médicos ao longo de quatro anos, por si só, teve – e terá, no longo prazo – efeitos dramáticos. Por exemplo: no ano passado, o governo Bolsonaro deixou de preencher um total de 5 mil vagas – 4 mil do Mais Médicos e 1 mil do Médicos Pelo Brasil. A pesquisadora Leonor Pacheco Santos, da UnB, disse à piauí que é possível projetar, com base nas estatísticas do professor Davide Rasella, uma avaliação segundo a qual mais de 22 mil mortes deixariam de ocorrer até 2030 caso esses 5 mil médicos estivessem trabalhando desde o ano passado. A falta de assistência hoje cobrará seu preço lá na frente. Quanto ao Médicos pelo Brasil, os dados são tão escassos e divergentes, que os especialistas não conseguem medir seu impacto. “Isso torna impossível avaliar se o processo de implantação do Médicos Pelo Brasil foi adequado”, diz Leonor Santos.

Para a senadora Zenaide Maia (PSD-RN), relatora da medida provisória sobre o Mais Médicos que tramita no Congresso, o programa de Bolsonaro “falhou totalmente”. Ela comenta: “Se viram algo que precisava ser refeito no Mais Médicos, deveriam ter feito uma medida provisória para aperfeiçoar o programa que já existe e é exitoso.” A senadora ficou inconformada ao saber, numa audiência pública sobre o assunto, que há 6 129 equipes de saúde da família no Brasil sem médicos (toda equipe deveria ter um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e um agente comunitário de saúde). O Ministério da Saúde calcula que, em razão dessa falta de médicos, 38,5 milhões de consultas deixaram de acontecer em um ano. A senadora também lamentou que 686 municípios brasileiros ficaram com vagas de médicos em aberto no âmbito do Médicos pelo Brasil.

Agora, segundo Nésio Fernandes, secretário de Atenção Primária à Saúde, o governo Lula não vai desmobilizar o Médicos pelo Brasil, para não aumentar a desassistência. Mas já relançou o Mais Médicos em março e, no mês seguinte, abriu mais 6 mil vagas, incluindo 1 mil para a Amazônia Legal, a região com a menor cobertura de saúde do país. No segundo semestre, o governo planeja abrir mais 10 mil vagas e introduzir algumas novidades – no campo dos benefícios e da qualificação – para tornar o programa mais atraente aos médicos brasileiros. De início, as vagas serão oferecidas aos brasileiros formados no Brasil ou com diplomas validados no país. Depois, será a vez dos brasileiros formados no exterior e, por fim, dos estrangeiros, incluindo aqueles que não revalidaram seu diploma no Brasil.

O desastre do governo Bolsonaro, contudo, não sensibilizou as entidades médicas, cujo corporativismo parece bem contemplado. Em uma auditoria do programa, o Tribunal de Contas da União refere-se exatamente a esse aspecto ao observar, em tom de crítica, que o Médicos pelo Brasil estava mais preocupado com os médicos do que com os pacientes. “Os objetivos definidos na formulação do Programa Médicos pelo Brasil […] não contemplavam diretamente o cidadão-usuário, abrangendo apenas a cobertura e o trabalho dos médicos que integram o programa”, diz um trecho do acórdão do tcu. Em outro parágrafo, chega a dizer que o programa careceu da “indicação clara de quem será seu público-­alvo beneficiário”.

Com isso, o ânimo que as entidades médicas tiveram para criticar o Mais Médicos e protestar contra colegas cubanos e de outros países não se fez presente diante da inoperância da Adaps e do Médicos pelo Brasil. E não era por desconhecimento. O CFM e a AMB tinham representantes no Conselho Deliberativo da Adaps. “Não acho que houve demora entre a lei que criou a Adaps e o efetivo início do trabalho dos médicos”, diz Alceu Pimentel, conselheiro suplente do CFM na Adaps. “Tudo isso demandou uma série de medidas para a organização do ponto de vista da criação da instituição, do ponto de vista administrativo, do ponto de vista do estatuto. Hoje o Mais Médicos tem 5 mil médicos trabalhando e tem um cadastro de 15 mil que podem ser contratados a qualquer momento.” Sobre as suspeitas de irregularidades, Pimentel disse desconhecê-las. O conselheiro titular da CFM na agência, Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, não foi localizado. O presidente do CFM, José Hiran Gallo, não respondeu aos contatos da revista.

A posição das entidades médicas sempre priorizou os interesses corporativos. A presença de cubanos não as incomodava do ponto de vista da ideologia, mas por razões mercadológicas. Queriam manter controle do mercado, evitando a presença de estrangeiros – qualquer estrangeiro. O programa de Bolsonaro agradou porque devolvia às corporações médicas o controle do mercado ao proibir a atuação de estrangeiros e, melhor ainda, até de brasileiros formados no exterior sem diploma validado no Brasil. “Isso devolveu às entidades médicas o controle da quantidade de profissionais que existem no Brasil”, diz o professor Hêider Pinto. “A lei que criou o Mais Médicos dava um poder inédito ao Ministério da Saúde para autorizar o exercício da medicina em condições especiais. Eles desfizeram essa grande mudança na regulação da medicina no Brasil.”

Em março, o clima esquentou na Adaps, com o afastamento da direção a pedido do governo Lula. No mês seguinte, esquentou ainda mais, quando o conselho deliberativo considerou que o mandato dos afastados estava encerrado. O então presidente, Alexandre Pozza, reagiu à medida, alegando que seu mandato de dois anos ainda não terminara, mas o assunto virou uma batalha nos tribunais: ele recorreu à Justiça, conseguiu uma liminar para voltar ao cargo, mas tornou a deixá-lo dias depois, quando a liminar foi revogada. Com isso, veio um ciclo de demissões dos amigos e parentes, conduzido pelos diretores interinos. Até o fechamento desta edição, Pozza ainda tentava uma nova liminar na Justiça, alegando ser alvo de “apuração política inquisitorial”. Nem ele, nem as outras duas diretoras, Soraya Andrade e Caroline Martins dos Santos, quiseram dar entrevista. O plano de realizar uma nova eleição para a diretoria da Adaps não havia sido colocado em prática até o fechamento desta edição. Um dos nomes cotados para dirigir a agência é o médico Mozart Sales, um dos idealizadores do Mais Médicos.

Durante os dez anos de existência do Programa Mais Médicos, entre a construção e o desmonte, nunca surgiu um “núcleo de guerrilha” formado por cubanos no Brasil.

Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_201 com o título “O cupinzeiro”.

Visualização de dados feita por Andre Spritzer.

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INELEGÍVEL, MEDO DE BOLSONARO AGORA É PASSAR UMA TEMPORADA NA CADEIA

Andrei Meireles, OS DIVERGENTES

A ministra Cármen Lúcia carimbou nessa sexta-feira (30) a inelegibilidade de Jair Bolsonaro durante 8 anos. Como era previsível, o placar final foi uma goleada de 5 a 2 contra o ex-presidente da República.  Ser barrado das próximas eleições é o menor problema de Bolsonaro, que não esconde o medo de que nas próximas rodadas possa ser condenado pelo STF a passar um bom período na cadeia.

Com base nos precedentes de Lula e Michel Temer, a previsão do coronel do Exército Jean Lawand Júnior de que a punição seria cumprida no presídio da Papuda não deve se confirmar. O mais provável é que seja em algum quartel da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros. O que não falta são motivos para a condenação na penca de inquéritos sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Já condenado pelo STF por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, Fernando Collor deve ir antes pra cadeia.

A expectativa entre os investigadores é que a situação de Bolsonaro ficará ainda mais complicada quando revelados os novos conteúdos encontrados no celular do tenente-coronel Mauro Cid, o faz tudo do ex-presidente da República. Assim como na investigação do FBI sobre a participação do ex-presidente Donald Trump no ataque ao Capitólio, avaliado como o inquérito capaz de barrar uma nova candidatura dele à Casa Branca, o tendão de Aquiles de Bolsonaro é o que a PF apura sobre a tentativa de golpe de Estado para melar a eleição de Lula.

Mas outros inquéritos, como o das milícias digitais, podem resultar em punição a todo o clã Bolsonaro. Aliás, essa possibilidade é um pesadelo de Bolsonaro desde que ele assumiu o governo, com a revelação das rachadinhas operadas pelo sargento Fabrício Queiroz. Dedicou boa parte de sua gestão à costura de uma rede de proteção para a sua família e amigos próximos. Foi, assim, que detonou o ex-ministro Sérgio Moro, interveio na PF, entregou o poder ao Centrão e travou brigas no Judiciário.

Ao perder a reeleição, mesmo com um escandaloso uso da máquina pública, e não conseguir apoio no Alto Comando do Exército pra virar a mesa, sua situação se complicou. A baderna de seus seguidores nos ataques às sedes dos Três Poderes da República tornou sua condição insustentável. A punição do TSE, bola cantada há meses, é só o início do calvário que vai enfrentar no Supremo Tribunal Federal.

Segundo bolsonaristas, o dilema de Bolsonaro que gostaria de seguir batendo em ministros do STF é que se usar essa tática que tanto sucesso fez no passado entre seus devotos seguidores pode complicar a sua já precaríssima situação na Justiça. É o velho ditado: se ficar, o bicho come; se correr, o bicho pega.

A conferir.

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BOLSONARO COMEÇA A COLHER O QUE PLANTOU

César Felício, Valor Econômico

Ao transformar o Poder Judiciário em seu grande inimigo, Bolsonaro partiu para o tudo ou nada

O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entra em sua reta final, com os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, Kassio Nunes Marques e Alexandre de Moraes. A dúvida está no penúltimo voto, o de Nunes Marques, em relação ao qual se projetam dois cenários: pedido de vista ou rejeição da inelegibilidade do político do PL. Nenhuma das duas opções muda o desfecho quase certo: o líder da extrema-direita deve ficar fora das eleições de 2026 e não se pode descartar que tenha problemas para concorrer em 2030.

A lei das inelegibilidades tem brecha. Diz o texto legal: “São inelegíveis os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes”.

A jurisprudência atual é firme no entendimento que “oito anos seguintes” significa durante oito anos corridos. Isso libera quem for condenado agora para disputar 2030. A eleição do ano passado foi em 6 de outubro e a de 2030 será no dia 2 daquele mês. Mas este entendimento tem pontos de vulnerabilidade.

“Esta norma produz consequências diferentes para pessoas em situação semelhante”, disse a procuradora Silvana Batini, professora de direito eleitoral na FGV do Rio. Tudo depende do calendário. “É uma loteria”, admite o advogado e ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) José Eduardo Alckmin. Quando semelhante aleatoriedade entra na equação é evidente que há uma falha no sistema. Cabe ao TSE a arbitragem. A composição da Corte está sempre mudando e “ninguém se sente refém da construção da jurisprudência anterior”, opinou outro experimentado advogado de causas naquela Corte.

Os dois primeiros dias de julgamento deram a entender que a polêmica levantada pela defesa de Bolsonaro sobre a inclusão no processo da “minuta do golpe” encontrada em janeiro na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres poderia ter sido evitada sem prejuízo da causa.

O processo fica em pé sem ela, como demonstram as argumentações do relator Benedito Gonçalves e dos ministros Floriano Marques e André Tavares. Comprou a tese da defesa apenas Raul Araújo.

Não seria preciso a minuta para configurar a ameaça à normalidade eleitoral e o abuso de poder político que representou a reunião do então presidente com embaixadores em 18 de julho do ano passado. Em resumo sumário, os ministros constataram que Bolsonaro disseminou em reunião para a comunidade internacional mentiras sobre o sistema de votação para desacreditar uma derrota eleitoral que se avizinhava e criar ambiente para um golpe. Fez isso usando a estrutura de cargo e a TV pública.

É possível se chegar a essa conclusão com o que se conhecia até 11 de janeiro de 2023, véspera do encontro da minuta que descreveu um roteiro para anular as eleições em um golpe mascarado de roupagem jurídica.

Seu uso no julgamento reabre discussão de 2017, quando o TSE entendeu que não era admissível no processo que julgava a cassação da chapa Dilma-Temer a inclusão das revelações das delações no âmbito da Lava-Jato, que indicavam recursos ilícitos na eleição de 2014. O tribunal concluiu que essa produção de provas depois de encerrada a instrução era alheia ao objeto original da proposição feita pelo PSDB. Para Alckmin, advogado da parte perdedora na ocasião, isso é mudança de jurisprudência. “Estão aceitando fatos que se revelaram depois da inicial proposta, que é essencialmente o que defendíamos”. Para Gustavo Bonini Guedes, que defendeu Temer, uma coisa nada tem a ver com a outra. “Não havia na ocasião nexo temporal e ligação com os fatos, agora há”, comentou.

É pauta de seis anos atrás, trazida à tona por Bolsonaro agora para se vitimizar, alegando que a Justiça está julgando o processo pela capa. Foi o que restou a ele argumentar.

Em seu voto, Benedito Gonçalves apontou a “convergência discursiva entre a apresentação feita aos embaixadores e a minuta revelada”. O próprio ministro, entretanto, relativizou o achado em várias ocasiões. Reconheceu que não há como afirmar que Bolsonaro tenha tido conhecimento do texto e que não é possível concluir que foi preparado um golpe de Estado. Disse ainda que “não constitui objeto da presente ação apurar a autoria da minuta e sua repercussão criminal, tampouco investigar a orquestração concreta de um golpe”. Sendo assim, seria realmente indispensável tratar da minuta na ação? Nas palavras do próprio Gonçalves: “A minuta está longe de ser o ponto central dessa ação. É apenas uma imagem, quase uma parábola”.

Floriano Marques foi além em seu voto e disse que não apenas a minuta como as “lives” realizadas por Bolsonaro em 2021 e também citadas por Gonçalves na contextualização da culpa do ex-presidente são “marginais para a análise dos fatos, objeto desde sempre dessa ação”. Tavares sequer mencionou a questão em seu voto.

A firula jurídica pode embasar algum recurso de Bolsonaro ao Supremo, com modestas chances de êxito. Ao transformar ao longo de seu mandato o Poder Judiciário em seu grande inimigo, Bolsonaro partiu para o tudo ou nada. Deu nada e ele agora paga o preço.

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O VILÃO DO FILME

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

Bolsonaro será condenado pela ‘fotografia na parede’ e pelo ‘filme’ em que ele é o grande vilão

O ex-presidente Jair Bolsonaro, como bem definiu o relator, ministro Benedito Gonçalves, não está sendo julgado pelo TSE por uma “fotografia na parede” (a reunião com os embaixadores) e sim por um “filme”, a tentativa de golpe de Estado que desembocou no quebra-quebra do Planalto, do Congresso e do Supremo em 8 de janeiro. Esse filme não acaba hoje, mas terá um capítulo histórico: a condenação de Bolsonaro a oito anos de inelegibilidade.

Já são 3 votos a favor e 1 contra a condenação e faltam os dos ministros do Supremo Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Nunes Marques. Como o bolsonarista Nunes Marques é a única incógnita, o destino do ex-presidente está selado: ou por 6 a 1 ou por 5 a 2, ele vai perder e ficar fora das eleições presidenciais de 2026 e municipais de 2024 e 2028.

O voto dissidente, do ministro Raul Araújo, foi na linha do advogado de Bolsonaro, como se tudo tivesse sido “normal” e “legítimo”. Ele discordou da “juntada” da minuta do golpe encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres à ação e minimizou o quanto pôde a reunião de Bolsonaro com embaixadores – “um ato solene” –, o uso do Palácio da Alvorada, os ataques ao sistema eleitoral e ao TSE e os efeitos eleitorais de tudo isso.

Segundo Araújo, se todos têm direito à “liberdade de expressão” e a reunião não alterou o resultado da eleição, qual o problema? Espantoso! O presidente da República tem o direito de usar cargo, palácio, recursos, funcionários e TV pública para fazer campanha eleitoral e vender o Brasil ao mundo como uma republiqueta de bananas, onde as instituições não valem nada e as eleições são fraudadas?

Já os ministros Floriano de Azevedo Marques Neto e André Ramos Tavares, indicados pelo presidente Lula, apoiaram o relator, derrubando, um a um, os argumentos tanto da defesa de Bolsonaro quanto de Araújo. Sobre a “liberdade de expressão”, Floriano comparou: um professor pode até achar que a Terra é plana, mas não tem o direito de ensinar isso a seus alunos.

Assim como o advogado de Bolsonaro, Tarcísio Vieira de Carvalho, o ministro Araújo apenas confirmou o que os não terraplanistas já sabiam, pelo enredo, falas públicas, indícios, manifestações, minutas, mensagens de celular e cooptação de militares: o ex-presidente é indefensável.

O relator classificou Bolsonaro como “integral e pessoalmente responsável pela concepção intelectual” da fatídica reunião com embaixadores. Mas não é “só” isso: ele é alvo de 15 outras ações e o grande responsável pela armação de um golpe de Estado que deu errado. Ou seja, é o grande vilão desse filme.

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PIRUETAS NO TSE

Bernardo Mello Franco, O Globo

Ministro abusou de eufemismos para tentar salvar Bolsonaro no TSE

No afã de absolver ex-presidente, Raul Araújo chamou ataques à democracia de "excessos verbais"

Ao votar contra a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, o ministro Raul Araújo lançou um argumento curioso. Disse que o capitão mentiu sobre o sistema eleitoral, mas alegou que isso não seria grave o suficiente para justificar uma punição.

Araújo caprichou nos eufemismos ao descrever a conduta do ex-presidente. Classificou suas acusações falsas como meros “excessos verbais”. Segundo o ministro, “nem todo o discurso veiculou afirmações inverídicas”. Isso equivale a dizer que uma autoridade pode mentir à vontade, desde que tempere as lorotas com pitadas de verdade.

Em outra pirueta retórica, Araújo afirmou não ver “relação de pertinência” entre o ataque de Bolsonaro às urnas e a minuta de golpe apreendida com seu ex-ministro da Justiça. Faltou explicar por que ele concordou, em fevereiro, com a inclusão do documento no processo. O TSE aprovou a medida por unanimidade.

É falso afirmar que Bolsonaro cometeu “excessos” numa reunião corriqueira com embaixadores. Seu discurso fez parte de uma campanha sistemática para desacreditar o sistema eleitoral. O objetivo era radicalizar o eleitorado e criar ambiente para um golpe.

A tática passava pela incitação de um estado de “paranoia coletiva”, como definiu o ministro Benedito Gonçalves. A expressão ajuda a entender os fanáticos que se fantasiaram de patriotas para invadir e depredar prédios públicos em Brasília.

Ao defender a absolvição de Bolsonaro, Araújo citou oito vezes o princípio da “intervenção mínima”. Disse que a Justiça só deve interferir no processo eleitoral em casos extremos.

O argumento lembrou uma frase célebre de Gilmar Mendes na época do julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE. Depois de liderar a manobra que descartou pilhas de provas de corrupção e caixa dois, o supremo ministro disse que a Justiça Eleitoral “não existe para cassar mandatos”.

Na sessão de ontem, coube ao ministro Floriano Marques desmontar os sofismas de Araújo. Ele lembrou que o TSE já declarou a inelegibilidade de centenas de políticos por crimes “de impacto e gravidade muito menores”.

O ministro acrescentou que a eventual absolvição de Bolsonaro teria consequências perigosas. “Admitido esse comportamento, daí em diante tudo se torna possível. E desastroso”, advertiu.

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BOLSONARO JÁ ERA; FUX, O NOVO HEITOR

Reinaldo Azevedo, Folha de S. Paulo

Bolsonaro inelegível; 'fiat lux, fiat lex'! E ainda: Fux, a 'Ilíada' e a bobagem

Raul Araújo funda nova escola do direito penal: a do crime ineficaz

Enquanto escrevo, o ex-candidato a ditador Jair Bolsonaro —pertenço ao ar livre do Estado democrático e de Direito (faço questão do conectivo)— caminha para a inelegibilidade, em julgamento em curso no TSE, por 3 votos a 1. É razoável supor um placar de cinco a dois contra o biltre (sem vênias aqui). Basta um "4 a 3" para que se cumpra a determinação constitucional, expressa no artigo 85, segundo a qual o mandatário comete um crime quando atenta contra o livre exercício dos Poderes da República. "Fiat lux, fiat lex". Faça-se a luz por meio do cumprimento da lei.

"Ah, rábula Azevedo! Tal dispositivo diz respeito a crimes de responsabilidade". Este amador —que, afinal, é aquele que ama— das leis e da Constituição sabe disso ao menos. Ocorre que aprendeu com os profissionais, os bons, que o ordenamento jurídico não é um salame que se come em fatias. A interpretação sistemática da norma nos diz que "o todo sem a parte não é todo, a parte sem o todo não é parte", como escreveu um poeta baiano.

O abuso de poder político e o uso indevido dos meios de comunicação, perpetrados pelo dito-cujo, são as transgressões atinentes à Justiça Eleitoral. A questão de fundo é saber quais valores gerais foram agredidos em seara específica, a saber: a reunião com embaixadores naquele de 18 de julho do ano passado, no Palácio da Alvorada. Empregou meios que só o mandatário poderia mobilizar, com um desiderato inequívoco: vulnerar as regras do jogo e os juízes que certificam a sua higidez, inculcando em seguidores e desavisados a desconfiança no sistema por meio de mentiras e suposições infundadas.

Bolsonaro tem um bom defensor, Tarcísio Vieira, mas não tem defesa, e o doutor sabe disso. Sua tese afronta os fatos, o sentido das palavras e a vontade então expressa do seu cliente. Sem contestar a prerrogativa que tem o advogado de propor uma leitura alternativa dos eventos que levaram seu cliente ao banco dos réus, observo que a tese do pregador exige do ouvinte o contrário do que pedia outro Vieira, o padre, em seus sermões: teríamos de concorrer para o seu sucesso com a ignorância, não com o entendimento.

Abstenho-me de listar aqui, porque estão em toda parte, as mentiras contadas pelo então presidente naquela reunião e o esforço inequívoco de obstar a eleição a um mês e meio de sua realização. Mas Vieira, não o padre, conquistou o coração, não sei se a razão, do ministro Raul Araújo. Este não contestou as condutas típicas do réu. Limitou-se, ao votar pela absolvição, a apontar a ineficácia de seus crimes, em contraste com a eficiência da Justiça Eleitoral. Com tal tese, pode-se fundar uma escola do direito: só os criminosos bem-sucedidos são passíveis de punição.

Assim, um golpista sempre se daria bem. Se bem-sucedido, tomaria o poder e puniria os democratas; se malsucedido, teria garantida a impunidade em razão de sua incompetência. Seria um pequeno passo para a jurisprudência, mas um grande salto para a barbárie. Vou me dedicar a outros votos de Araújo no STJ, sua corte de origem. Será a primeira vez a fazer juízo tão singular?

E já que aqui se fala de leis e de Justiça, comento o voto do ministro Luiz Fux, do STF, contra o juiz de garantias. Afirmou que os proponentes de tal avanço civilizatório (opinião do escriba) são como os gregos, acoitados no cavalo às portas de Troia, prontos a invadir a fortaleza do Judiciário por meio de uma trapaça. Disse: "Diferentemente dos troianos, que foram sacrificados, nós temos o dever de cumprir o juramento que fizemos de defender o nosso Judiciário porque a nossa derrota significa a vitória da impunidade".

Evoca, como se lê, um "nós". Ministros da corte, pois, que dele divergirem pertenceriam a um "eles" —os destruidores da ordem. Fala como sindicalista de corporação. Alexandre de Moraes, evocando a figura mais fascinante da "Ilíada", fez um chiste: "Eu só queria fazer um elogio ao ministro Fux pelo voto e dizer à Sua Excelência que, diferentemente do príncipe Heitor, que não conseguiu defender Troia, o ministro Fux conseguiu defender o Poder Judiciário". Riu discretamente. E ouviu: "Muito obrigado, ministro Alexandre!"

Esse "troiano" não entendeu a "Ilíada", a ironia nem o juiz de garantias. 

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O BANDIDO PERDERÁ NO FIM

Ruy Castro, Folha de S. Paulo

Mas, se os Poderes tivessem feito seu papel, Bolsonaro custaria muito menos dinheiro ao Brasil

O julgamento da inelegibilidade de Bolsonaro é só a primeira das séries a que vamos assistir, não pela Netflix, mas pela TV Justiça. Em todas, o bandido perde no fim e, em algumas, puxará cadeia, com direito, por deferência do carcereiro, a ração diária de pão com leite condensado. O que isso nos custará aos cofres é irrelevante e não se compara ao que poderia ter sido poupado se os Poderes tivessem cumprido seu papel quando solicitados. Exemplos?

Durante seu império de quatro anos, Bolsonaro foi alvo de 158 pedidos de impeachment —o referente à reunião com os embaixadores foi apenas o 145°—, 66 dos quais sob Rodrigo Maia na presidência da Câmara e 92 sob Arthur Lira. Todos foram arquivados, desconsiderados ou postos em "análise", a qual nunca foi feita e agora é desnecessária. Já o relatório da CPI da Covid, que custou seis meses de audiências e acusou Bolsonaro de crimes contra a administração pública, a paz pública e a saúde pública foi dirigido ao procurador-geral da República, Augusto Aras, a quem competia avaliar as acusações. Mas Aras o mandou para uma gaveta na PGR reservada ao parto de ratos.

Diz-se que Bolsonaro tem 600 processos contra ele, além de 16 acusações tão graves quanto esta em curso. E sabe-se agora que o Judiciário o advertiu 31 vezes por seus ataques ao sistema eleitoral. Não seria mais econômico tê-lo barrado na quinta, 12ª ou 21ª advertência?

Imagine o quanto as ações contra Bolsonaro já nos custaram em clipes, papel timbrado, carga de impressora, leitura de atas, busca em compêndios, serões nos tribunais, horas extras remuneradas e lavagem de togas. Só porque o deixaram ir longe demais.

E não vai parar. Condenado nas várias instâncias, Bolsonaro recorrerá em cada uma ao Supremo. Perderá em todas, mas continuará a dar baita despesa e a ocupar o tempo que o Brasil deveria estar destinando a consertar seu estrago.

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ALIADOS E RIVAIS NATURAIS

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Sistema de votação levou à hipervalorização das emendas parlamentares

Mesmo sabendo ser irrealista, defendo mudança para as listas proporcionais fechadas

Há poucos sistemas de votação que dão mais poder ao eleitor do que o voto proporcional em lista aberta adotado no Brasil. É um arranjo que também facilita a eleição de deputados temáticos, como o representante da causa ambiental, gay ou de alguma denominação religiosa, que é algo de que países com outros sistemas se ressentem. O voto distrital, por exemplo, tende a produzir legisladores mais parecidos uns com os outros e mais próximos do perfil do eleitor mediano.

É claro que há também outros efeitos. Um dos mais intrigantes é que transforma correligionários em aliados e rivais ao mesmo tempo. Com efeito, os candidatos a deputado ou vereador por uma mesma legenda são aliados naturais porque o número de parlamentares que o partido fará é calculado a partir da soma dos votos que todos os seus postulantes obtiveram. Mas eles também são rivais naturais, porque, para ficar com a vaga, o candidato precisa ter mais votos que seus colegas.

O resultado líquido é que os candidatos precisam falar diretamente ao coração do eleitor. E o melhor jeito de alguém que já é parlamentar cativar o eleitor é levar benefícios para a região que lhe serve de base.

Depois que o STF proibiu as doações de empresas, o financiamento das campanhas ficou quase que restrito aos fundos eleitoral e partidário. Legisladores, porém, têm sobre seus correligionários sem mandato a vantagem de contar também com as emendas parlamentares. Isso explica a centralidade que as diversas modalidades de emendas, que vão das individuais ao famigerado orçamento secreto, ganharam no jogo político. Um dos efeitos deletérios é que esse estado de coisas acabou desequilibrando demais o relacionamento entre os Poderes em desfavor do Executivo.

Embora reconheça virtudes na lista aberta, penso que os danos colaterais já superam os benefícios. Mesmo sabendo que é irrealista, defendo uma mudança para as listas fechadas.

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AS RÉGUAS DE MADURO E ORTEGA

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Por que Lula usa réguas diferentes para tratar Ortega e Maduro

Reconhecer 'problema na Nicarágua' é a prova de que o presidente sabe o que é uma autocracia

Ninguém tinha perguntado nada sobre Daniel Ortega, mas Lula avisou que teria uma conversa com o ditador. "Nós temos um problema na Nicarágua", sentenciou, assim mesmo, na primeira pessoa do plural.

Lula aproveitou Ortega como válvula de escape. O presidente dava uma entrevista à Rádio Gaúcha e exagerava na generosidade para defender Nicolás Maduro. Negou que a Venezuela fosse um regime autoritário, com a desculpa de que há eleições no país, e emendou que "o conceito de democracia é relativo".

Reconhecer que há um "problema na Nicarágua" é a prova de que Lula sabe a diferença entre autocracia e democracia. Ortega disputa eleições, mas reduziu as amarras do poder presidencial e criou um sistema de perseguição a adversários políticos.

Lula ajusta a retórica, mas ainda usa tons pastéis ao falar da Nicarágua. Na entrevista, ele se limitou ao que chamou de "problemas com a Igreja", em referência à prisão do bispo católico Rolando Álvarez pelo regime de Ortega no ano passado.

O governo ensaia demarcar uma diferença no tratamento do país. Além do passo tímido de Lula, o Brasil apoiou uma declaração da OEA que manifestou preocupação com os relatos de repressão na Nicarágua.

Lula se recusa a fazer algo parecido com Maduro, até porque há diferenças grandes entre os casos. Ortega fechou o regime de forma abrupta, inaugurou uma perseguição radical e está distante, enquanto o processo na Venezuela se consolidou ao longo de décadas, num país que compartilha interesses com o Brasil.

Nada disso faz com que o déficit democrático de Maduro mereça salvo-conduto. Lula abusou desse artifício quando comparou a oposição venezuelana a Bolsonaro e os golpistas de Brasília ("gente que não quer aceitar o resultado"), ignorando barreiras à competição eleitoral no país.

Está mais do que claro que Lula jamais lançará Maduro ao mar —e nem deveria fazer isso. Também não deveria fingir, só para acomodar um aliado, que os requisitos da democracia são itens de adesão voluntária.

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DEMOCRACIA NÃO É RELATIVA

Vera Magalhães, O Globo

Eleito para assegurar a vigência da democracia no Brasil, Lula erra ao enaltecer Maduro e fazer vista grossa ao que acontece na Venezuela

É lamentável que, no curso de um julgamento histórico, que deverá tornar Jair Bolsonaro inelegível pelos graves ataques perpetrados por ele contra o Estado democrático de direito no Brasil, Lula, eleito com a promessa de defendê-lo, diga em alto e bom som que a democracia é algo relativo. Não é, presidente. Nem aqui nem na Venezuela.

Não é democrático um regime que muda as regras do jogo no Judiciário e no Legislativo para se manter. Não é democrático um regime que mantém presos políticos e persegue opositores. Não é democrático um regime que aparelha as Forças Armadas e cria aparatos paramilitares para se impor. Não é democrático um regime que sufoca a imprensa e persegue jornalistas.

Hugo Chávez e Nicolas Maduro cometeram todos esses ataques à democracia ao longo dos muitos anos em que o chavismo comanda a Venezuela.

A necessária retomada de relações diplomáticas e comerciais com o país vizinho não precisa vir acompanhado dessa sabujice quase semanal que Lula resolveu praticar com Maduro. Absolutamente nada justifica passar pano para autocrata, seja ele de direita ou de esquerda.

Não há um ínfimo interesse legítimo do Brasil que recomende essa dissociação do presidente da República entre o que acontece na Venezuela e os recentes e graves ataques que a democracia enfrentou aqui mesmo, sob Jair Bolsonaro.

Se as instituições brasileiras fossem mais tíbias, e se Bolsonaro contasse com o aparato subserviente que Chávez e Maduro tiveram a seu dispor, o destino do Brasil poderia ter sido estar hoje sob um regime semelhante ao praticado em Caracas.

Porque Bolsonaro flertou com o aparelhamento das polícias e das Forças Armadas, atacou a imprensa impiedosamente, tentou submeter e desacreditar o Judiciário e aliciar o Legislativo à base de Orçamento secreto. As eleições passaram a ser tratadas pelo presidente como ilegítimas, quando os fatos demonstravam a higidez do nosso sistema.

Isso é o oposto da Venezuela, que tem eleições, sim, mas eivadas de suspeitas de fraudes e não acreditadas pelas organizações internacionais. Não é a quantidade de vezes que um autocrata renova sua permanência no cargo que dita que o país é uma democracia. A alternância de poder com paridade de armas é um pressuposto absoluto da democracia, e relativizar também isso é um desserviço lamentável a uma luta que o Brasil trava nesse exato momento.

O julgamento do TSE tem trazido de volta à nossa memória, sempre desafiada por uma sucessão de fatos ainda mais aterradores que os anteriores, a gravidade extrema do que Bolsonaro foi capaz de fazer para tentar melar as eleições e se manter no poder.

O que ele faria se fosse reeleito depois de jogar com abusos flagrantes de poder político e econômico? Um bom mostruário do que ele tentaria é fornecido pela Venezuela do chapa de Lula, bem como pela Hungria e pela Polônia. O ditador ser de direita ou de esquerda não o faz menos repulsivo.

Muitos dos que votaram em Lula o fizeram para assegurar a vigência das liberdades, dos direitos civis, do meio ambiente e da democracia como valor absoluto, e não por concordar com o viés ideológico do petista. Ele se engana de forma crucial se acredita que conta com aval da maioria em sua reverência, reiterada de forma inexplicável e contraproducente, a Maduro ou a um desgastado Alberto Fernandes, que não é autocrata, mas não é modelo de governança para a maioria da população brasileira.

No momento em que o Brasil está prestes a se livrar da ameaça golpista de Bolsonaro, é triste ver o presidente eleito para assegurar a plenitude da democracia tão duramente conquistada dizer que esse é um valor cambiante. Que o TSE, nesta sexta-feira, demonstre ao Brasil que não se brinca com isso.

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"ADEUS, LÊNIN", A SÁTIRA SE APLICA A CUBA, NICARÁGUA E VENEZUELA

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

É preciso aguardar as conclusões do Foro de São Paulo para saber se o encontro será um “aggiornamento” ou um “déjà vu” político.

Em 1989, pouco antes da queda do muro de Berlim, a sra. Kerner (Katrin Sab) entra em coma e, assim, permanece durante o processo de unificação da Alemanha. Vivia no regime comunista da antiga República Democrática Alemã (RDA), o lado oriental, e acorda na ordem democrática e capitalista da antiga Alemanha Ocidental.

Berlim Oriental é outra cidade, muito diferente, o que preocupa seu filho, Alexander (Daniel Brühl), que temia o impacto das mudanças na saúde da veterana militante do Partido Socialista Unificado Alemão (PSUA), comunista. Isso faz com que procure esconder de sua mãe as mudanças em curso. Porém, quando ela sai do coma, as coisas se complicam.

O filme Adeus, Lênin, o líder comunista da Revolução Russa de 1917, é uma comédia dramática alemã de 2003, dirigido por Wolfgang Becker, que fez muito sucesso nos cinemas e, ainda hoje, merece ser visto. Becker usa como plano de fundo personagens reais como Erich Honecker, líder comunista que governou a RDA de 1971 a 1989; Mikhail Gorbatchov, protagonista da perestroika a partir de 1985 e da autodissolução da antiga União Soviética (URSS), em 1991; e Helmut Kohl, chanceler da Alemanha reunificada. O anti-herói é o primeiro astronauta alemão, Sigmund Jähn, um dos tripulantes da espaçonave soviética Soyuz 31, que se tornara motorista de táxi depois da reunificação — ou seja, um símbolo da derrocada do “socialismo real” no Leste Europeu.

Em 1989, Alexander é um jovem de Berlim Oriental que vive com a mãe, a irmã e uma sobrinha, após seu pai abandonar a família e fugir para o Ocidente. Christiane era uma professora dedicada à construção do “homem novo” e se considerava casada com o socialismo. Por essa razão, sofre um ataque cardíaco quando seu filho é preso num protesto contra o regime comunista. Passa oito meses em coma e, quando acorda, o mundo era outro.

Como outra parada cardíaca lhe seria fatal, o sentimento de culpa faz com o filho crie um mundo paralelo, cenográfico, no qual velhas embalagens de alimentos são exumadas e vídeos caseiros são produzidos para reviver as glórias do antigo regime. Wolfgang Becker faz a crítica aos que ficam prisioneiros do passado, mas, ao mesmo tempo, enaltece a lealdade do filho que tenta, a todo custo, evitar novos sofrimentos da mãe.

O apadrinhamento do Foro de São Paulo, que se reúne em Brasília até domingo, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lembra um pouco o jovem Alexander de Adeus, Lênin. Esse paralelo não tem nada a ver com a narrativa da extrema direita, que demoniza a esquerda e chama todo mundo de comunista.

A reunião não ocorria há três anos, é legitima e pode ter um papel positivo na política latino-americana, dependendo de suas conclusões. Com delegações da sociedade civil e de governos de 23 países da América Latina esperados em Brasília, o evento começou ontem no Hotel San Marco, no Setor Hoteleiro Sul.

O problema é que a política de boa vizinhança adotada por Lula em relação aos países do continente também representa o endosso aos regimes autoritários de Cuba e da Nicarágua, além da Venezuela, de Nícolas Maduro, que Lula classificou como uma “democracia relativa”, ontem, durante entrevista à Rádio Gaúcha. O presidente atravessou a rua para escorregar numa casca de banana. Esse conceito de democracia relativa foi utilizado pelo presidente Ernesto Geisel, quando tentou institucionalizar o regime militar por meio de uma abertura lenta, gradual e segura, durante a qual sofreu derrotas eleitorais desastrosas para o regime. Mas endossou a repressão à oposição.

Déjà vu político

Lula deu a declaração ao ser questionado sobre o motivo de setores da esquerda insistirem em defender o regime de Maduro. Em maio, havia defendido o presidente venezuelano e seu “bolivariano”, com o argumento de que as acusações sobre a Venezuela ser uma ditadura fariam parte de uma “narrativa”. A declaração repercutiu mal dentro do próprio encontro de presidentes e foi rebatida pelos do Uruguai, Lacalle Pou (um conservador) e do Chile, Gabriel Boric (um socialista).

“A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil. O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Gosto de democracia porque me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez”, disse Lula, para espanto generalizado.

A frase é duplamente infeliz, porque revela, aí sim, uma narrativa falsa em relação à realidade política do regime de Maduro, que se mantém no poder por meio de fraudes eleitorais, e uma visão instrumental da democracia, como via de acesso ao poder pessoal, em vez de um valor universal para a sociedade.

É preciso aguardar as conclusões do Foro de São Paulo para saber se o encontro será um “aggiornamento” ou um “déjà vu” politico. O galicismo tem tudo a ver com a situação, porque descreve a sensação desencadeada por um fato presente, que se parece estranhamente com uma situação específica já presenciada: li este livro? Vi este filme?

O cérebro possui a memória imediata, que a gente logo esquece; a de curto prazo, que dura horas ou dias; e a de longo prazo, que dura até anos. O déjà vu ocorre quando os fatos que estão acontecendo são armazenados diretamente na memória de longo ou médio prazo, sem passar pela imediata, o que nos dá a sensação de já terem ocorrido.

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CENSO TRAZ URGÊNCIA

Flávia Oliveira, O Globo

Censo impõe agenda que país já deveria estar seguindo

Novo desenho da sociedade brasileira demandará novas políticas

Havemos censo. E todas as delícias e dores que dele advêm. A mais atropelada operação censitária já efetuada no país deu em 203 milhões de brasileiras e brasileiros, abaixo do esperado por especialistas, mas em linha com tendências demográficas já diagnosticadas. No caminho do Censo 2022, não uma, mas várias pedras: de Paulo Guedes a pandemia, de corte orçamentário a eleição presidencial, de Copa do Mundo a festas de fim de ano, de férias de verão a carnaval e Páscoa. O esforço de apuração terminou em maio, e anteontem o IBGE apresentou os primeiros resultados.

Não é de hoje que a natalidade vem diminuindo e a longevidade aumentando no Brasil. Demógrafos antecipavam aos quatro ventos que, a partir dos anos 2040, o número de habitantes do país cairia em termos absolutos. Pena que as autoridades nem sequer começaram a se preparar — o que tampouco surpreende. Atravessado pela mais grave crise sanitária em um século, pela diminuição perceptível no tamanho das famílias e pela conjuntura econômica adversa, o Censo 2022 sugere que o encolhimento da população pode se adiantar em uma década.

— Não vi surpresa nem nos 203 milhões de habitantes nem na diminuição da população de algumas capitais. Tudo estava no radar. A pandemia acelerou, mas não mudou o rumo das coisas — dispara Ana Amélia Camarano, uma das mais respeitadas demógrafas do país, há décadas no Ipea.

O Censo impõe urgência a uma agenda que o Brasil já deveria estar seguindo. E mais ainda cidades como o Rio de Janeiro. Há 20 anos, a capital fluminense foi premiada com o primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano municipal pelo PNUD, agência da ONU. A publicação, em dez capítulos tornados série de cadernos especiais no GLOBO, já anunciava o envelhecimento da população, a redução no tamanho das famílias, o aumento na demanda por residências unipessoais, o medo da violência, a precariedade das condições habitacionais.

No Censo 2022, o Rio figura entre as nove capitais que perderam habitantes entre 2010 e 2022. O município perdeu quase 110 mil moradores. Também encolheram Belo Horizonte e Vitória, no Sudeste; Salvador, Recife, Fortaleza e Natal, no Nordeste; Belém, no Norte; Porto Alegre, no Sul. No Estado do Rio, a população avançou modestos 0,03% ao ano, fração de uma já baixa taxa nacional (0,52%). Em 2010, éramos 15,9 milhões; hoje, 16,1 milhões. São Gonçalo, Niterói, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Mesquita, Nilópolis, Paracambi, todas na Região Metropolitana, Petrópolis, na Serra, e Barra Mansa, no Sul, estão entre municípios que encolheram. Das 20 cidades médias (mais de 100 mil habitantes) que mais perderam população, seis ficam no Estado do Rio.

O Rio vasculha escombros de uma conjuntura nefasta que combinou crise fiscal aguda, esvaziamento econômico intenso, empobrecimento galopante, insegurança crônica. A pandemia tornou tudo mais grave. No estado, a Covid-19 matou, até a semana passada, 77.291 pessoas, ou 448 óbitos por 100 mil habitantes. Perderam a vida 2,75% dos que contraíram a doença. Tanto a taxa de mortalidade (335 por 100 mil) quanto a letalidade (1,9%) são muito superiores à do Brasil, que oficialmente perdeu quase 704 mil para a doença. Na capital, o total de óbitos, desde 2020, passa de 38 mil. No primeiro ano da pandemia, ainda sem vacinação, 8,7% das pessoas que pegaram Covid-19 morreram. Uma barbaridade.

— Devemos a queda no número de habitantes à Covid-19, às doenças da pobreza, mas também às más condições econômicas e à violência. O valor do aluguel e a carestia, diante da renda precarizada pelo trabalho informal, expulsam a população da metrópole — diz Tainá de Paula, arquiteta e urbanista, secretária municipal de Meio Ambiente.

O presidente do IBGE, Cimar Azeredo, enfileira os mesmos motivos para explicar o êxodo detectado pelo Censo 2022. Muita gente que migrou para municípios menores ou cidades de origem durante a pandemia não voltou. O mercado de trabalho, sublinha, também se transformou, e outras regiões tornaram-se mais prósperas, caso da cadeia do agronegócio no Centro-Oeste.

Tudo posto, significa que o novo desenho da sociedade brasileira demandará novas políticas em habitação, trabalho, transporte, saúde, previdência e assistência social, educação. As crianças, em número cada vez menor, precisarão de formação exemplar; os adultos, de mais qualificação; os idosos, de oportunidades de trabalho e cuidados. As cidades terão de ser mais generosas; o transporte, eficiente e breve; as autoridades, competentes.

E o censo demográfico não pode mais demorar tanto, porque o país tem de sair da zona de sombra sobre seus filhos e filhas. Daqui a dois anos, a contagem populacional confirmará as linhas traçadas pelo Censo 2022, até que venha a pesquisa de 2030. Que não sejam desprezadas, como na década passada.

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TERCEIRIZAÇÃO: FENÔMENO DA MODERNA ECONOMIA

Almir Pazzianotto Pinto*, O Estado de S. Paulo

Ao se colocar contra a terceirização, o senador Paulo Paim, representando o Partido dos Trabalhadores, assume a vanguarda do atraso

Não há lei perfeita e acabada. Boas ou más, todas se submetem ao desgaste do tempo. É o caso da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ultrapassada pela ação invencível de tecnologias modernas.

Algumas omissões eram inevitáveis. Na época da elaboração da CLT (início dos anos 40), a produção compartilhada, ou terceirização, era ignorada pela economia. Verticalizadas e concentradoras, as indústrias supriam suas necessidades com utilização de mão de obra interna, tanto em atividades urbanas como nos serviços rurais.

O fenômeno da produção compartilhada cresce na economia por volta dos anos 70. Escrito por Peter Drucker, o livro Administração em Tempos Turbulentos dedica capítulo ao tema Produção Partilhada: Integração Internacional. Thomas Friedman analisa a terceirização no livro O Mundo é Plano – Uma Breve História do Século XXI.

Terceirizar é expressão nova na Língua Portuguesa. Não a registram as duas primeiras edições do Dicionário Aurélio e o Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva. Aparece no Michaelis, edição de 1998, com o significado de “delegar, a trabalhadores não pertencentes ao quadro de funcionários de uma empresa, funções exercidas anteriormente por empregados dessa mesma empresa”. Está na primeira edição do Dicionário Houaiss, de 2001.

As primeiras prestadoras de serviços foram organizadas nos anos 70. Recrutavam empregados para serviços de vigilância, limpeza e conservação. Convenceram grandes empresas de que era mais simples e menos oneroso transferir determinadas atividades a firmas especializadas em fornecer mão de obra, deixando os serviços essenciais a cargo de empregados próprios.

Na mesma década, o aumento de assaltos a bancos deu origem ao serviço do vigilante armado, logo regulamentado pela Lei n.º 7.102/1983, que dispõe sobre “segurança para estabelecimentos financeiros, estabelece normas para a constituição e funcionamento das empresas particulares que exploram serviços de vigilância e de transporte de valores”. Considere-se, porém, que desde 1965 a Lei n.º 4.886 regulava as atividades dos representantes comerciais autônomos, pessoas físicas, sem relação de emprego, contratadas para intermediar a realização de negócios externos.

Frequentes violações da legislação trabalhista por prestadoras de serviços ecoaram na Justiça do Trabalho na forma de centenas de reclamações trabalhistas. O acúmulo de processos induziu o Tribunal Superior do Trabalho (TST) a tentar solução radical. Para isso, editou o Enunciado n.º 256/1986, com a seguinte redação: “Salvo nos casos de trabalho temporário e serviços de vigilância, previstos nas Leis n.º 6.010, de 3/1/1974, e n.º 7.102, de 20/6/1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador de serviços”.

A rígida decisão sucumbiu diante dos fatos. A terceirização ganhava terreno como instrumento de racionalização do sistema produtivo, redução de custos e aumento da produtividade. Passados poucos anos, o TST reexaminou a posição adotada em 1986. Finalmente, em 17 de dezembro de 1993, aprovou o Enunciado n.º 331, destinado a permitir a terceirização de limpeza e conservação, “bem como de serviços especializados, ligados à atividademeio do tomador, desde que inexistentes a pessoalidade e a subordinação direta”.

Para compor posições divergentes, o tribunal adotou solução nebulosa: aceitava-se a terceirização de limpeza e conservação e de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, excluindo-se a terceirização daquilo que seria a atividade-fim. Permaneceu, porém, sem resposta conclusiva a pergunta: o que é atividade-fim?

Examinando o artigo 981 do Código Civil, chega-se à inevitável conclusão de que a atividade-fim da sociedade é gerar lucro, para dividi-lo entre os associados. Dito de outra maneira, o fim visado em qualquer espécie de negócio é ganhar dinheiro. Se não lucrar, estará condenado ao desaparecimento.

A reforma trabalhista pôs termo à estéril discussão. Permitiu a transmissão de quaisquer dos diversos aspectos do empreendimento econômico a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços, desde que tenha capacidade econômica compatível com o trabalho contratado.

A terceirização não é invenção nacional. Farta literatura estrangeira trata do assunto de maneira positiva, como requisito essencial da moderna atividade produtiva. A antieconômica integração vertical cedeu lugar à ramificação horizontal entre empresas do mesmo grupo, ou empresas independentes.

No Senado Federal tramitam dois projetos, ambos de iniciativa do senador Paulo Paim (PT-RS), destinados a vedar o direito de terceirizar. Aprová-los significará irremediável retrocesso, com o desmonte do sistema industrial fortemente terceirizado, e desestímulo a investimentos geradores de empregos. Ao se colocar contra a terceirização, o senador Paulo Paim, representando o Partido dos Trabalhadores, assume a vanguarda do atraso.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do TST

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LULA 3 DEFINE SUAS METAS ECONÔMICAS

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Depois de muito ruído tolo, Lula 3 define metas econômicas razoáveis

Governo tem metas fiscais e de inflação; balanço do primeiro semestre é positivo

A meta de inflação que o Banco Central deve acertar ficou em 3% para 2024, 2025, 2026 e a perder de vista, pois houve a tão falada mudança do sistema, de cumprimento de metas no dito ano calendário para um horizonte flexível.

A manutenção da meta foi uma decisão razoável de Lula 3. A alteração da data de cumprimento da meta não vai fazer lá diferença, se alguma. A ironia é que, com essa mudança, o Banco Central passa a ter mais autonomia, atributo detestado por grande parte do petismo.

Ter deixado a meta em 3% deve redundar em alguma redução de expectativas de inflação e de taxas de juros de prazo mais longo, afora no caso de outras mudanças importantes no cenário econômico doméstico e internacional.

É um benefício grátis. Vinha sendo prejuízo desde que parte do governo Lula 3 e o comando petista passaram a defender o aumento da meta, imaginando assim, de modo tristemente tolo, que as taxas de juros poderiam cair (subiram, como era previsível).

Quanto à mudança do sistema de metas, o efeito deve ser mínimo. No entanto, ainda falta conhecer o decreto presidencial que vai regulamentá-lo. Daí ainda pode sair alguma besteira, como fixar uma data muito distante para que o BC acerte a meta. De qualquer modo, na prática, é provável que o BC acabe decidindo esse prazo. Um BC ruim pode empurrar a coisa com a barriga de modo irresponsável ou tentar cumprir sua missão a ferro e a fogo, tanto faz a data determinada por um decreto.

Dentro do universo mais razoável, não deve haver novidade maior porque o BC costuma trabalhar com horizontes flexíveis. Em algumas administrações, como nesta de agora, a diretoria do BC anunciou até de modo explícito que o acerto da meta será postergado, por motivos sensatos. Em caso de choques de preços (energia, secas e guerras ou outras crises mundiais), não é de bom senso submeter a economia a uma paulada de juros a fim de cumprir a meta em prazo exíguo. No mínimo, causa variação excessiva de PIB, entre outros problemas. Como é fácil verificar, é o que tem feito o BC pelo menos desde meados de 2022.

Não está claro também se, como e quando o presidente do BC terá de escrever a carta de "mea culpa" sobre um eventual descumprimento da meta de inflação. De qualquer modo, não se dava muita bola para tal exposição de motivos. Presta-se mais atenção ao que o BC diz em seu relatório trimestral de inflação, de modo mais profundo, ou na ata das reuniões em que se decide a Selic, de passagem.

Ainda assim, seria conveniente criar maneiras para responsabilizar as direções dos BCs, aqui e no mundo inteiro. Essas pessoas têm enorme poder e na prática quase não respondem pelos seus atos (quanto a decisões de política monetária, melhor dizendo).

Com a decisão do Conselho Monetário Nacional, completam-se as diretrizes maiores de política macroeconômica de Lula 3: há metas de saldo (déficit ou superávit) das contas públicas, limites de crescimento de gasto, metas de inflação. Falta saber como o governo vai lidar com tais objetivos, direta ou indiretamente.

Isto é, como vai fazer o aumento da carga tributária necessário para que sua política de gastos e dívida funcione, se vai mexer em outras taxas de juros (BNDES, por exemplo), se vai ter política comercial diferente (abertura e acordos), o que vai fazer das estatais ou de concessões de obras e serviços para o setor privado.

Quanto a diretrizes, o primeiro semestre de Lula 3 foi melhor do que se previa, dada a bobajada que se ouviu desde novembro, e embora a meta fiscal seja muito difícil de cumprir, com riscos feios de aumento de dívida. Ainda assim, até agora Fernando Haddad conseguiu colocar certa ordem na casa.

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A SOBERBA DO PENSAMENTO ECONÔMICO

José Eli da Veiga, Valor Econômico

A “economia positiva” deixou de lado muitos dos difíceis aspectos morais, que afetam o comportamento humano

Engenharia e ética são as duas dimensões essenciais do pensamento econômico. Têm sido inócuas as tentativas de isolar apenas a mais instrumental, com a ingênua pretensão de purificá-lo. Têm sido até mais precárias que as inventadas nos 150 anos que separaram a obra clássica de Adam Smith (1776) da de Lionel Robbins (1932).

Claro, são duas tradições bem mais antigas. A que inclui a ética remonta a Aristóteles, para quem a finalidade do Estado deveria ser a promoção comum de uma boa qualidade de vida. E lhe foi contemporânea a exclusivamente logística proposta por Kautilya, conselheiro e ministro do avô do célebre Ashoka.

Desde meados do século passado, só diminuiu o peso relativo do componente ético. A metodologia da chamada “economia positiva” não apenas se esquivou de posturas normativas como também acabou por deixar de lado muitos dos difíceis aspectos morais, que afetam o comportamento humano.

Ao examinar as proporções das duas ênfases em publicações acadêmicas sobre economia, salta aos olhos a aversão à dimensão ética e o descaso pela influência de considerações deontológicas no tocante a condutas individuais e sociais. Um crescente e empobrecedor distanciamento.

Ao mesmo tempo, por mais importantes que sejam os problemas suscitados por motivações e realizações sociais, é impossível negar certas virtudes da ótica engenheira. É a própria natureza dos fatos econômicos que dá, a ambas, alto poder de persuasão, por menos que se queira reconhecer.

Para ilustrar, tomem-se os melhores estudos sobre os tragicamente atuais problemas de desnutrição. O fato de irromperem fomes coletivas, mesmo em situações de grande e crescente disponibilidade de alimentos, pode ser melhor analisado mediante os padrões de interdependência ressaltados pela teoria do equilíbrio geral.

Ou seja, a perspectiva aética do pensamento econômico não precisa ser necessariamente infrutífera. Mas poderia se tornar muitíssimo mais proveitosa se não pretendesse descartar as incontestáveis considerações éticas que moldam o comportamento e o juízo dos seres humanos.

Infelizmente, não tem sido a propensão predominante entre os mais influentes economistas. Partidários da tendência engenheira não apenas abominam os também éticos como são capazes de alta crueldade, sempre que algum dos seus decide romper com tal sectarismo.

Emblemático foi o banimento do genial “NGR”: Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994). Chegou a ser endeusado por promover decisivos avanços da Microeconomia, graças à sua invejável sapiência matemática. No entanto, assim que descortinou a incongruência de teorias econômicas sem ética, foi condenado ao ostracismo.

Neste caso, o Torquemada foi alguém de particular relevância na história do pensamento econômico: Paul Samuelson (1915-2009). Primeiro estadunidense a receber o prêmio Nobel de Economia, em 1970, é dele o livro-texto introdutório mais utilizado no mundo: Economia, lançado em 1948, agora, na 19ª edição.

Samuelson dignificou NGR como “pioneiro da economia matemática”, “economista dos economistas” e “scholar’s scholar”. Isto em prefácio ao livro Analythical Economics, no qual NGR reuniu, em 1966, uma dúzia de artigos publicados a partir de seu segundo pós-doc (1935-6), supervisionado por Joseph Schumpeter (1883-1950), em Harvard.

Só que, na abertura do livro, incluiu uma inédita “1ª parte”, de cinco capítulos, em 126 páginas, com exposição de estudos inspirados pelo pós-doc anterior, no University College London (1930-2), com o estatístico e filósofo da ciência Karl Pearson (1857-1936). Com certeza, Samuelson leu, mas não entendeu, essa “1ª parte”.

NGR chegara à conclusão de que a essência do pensamento econômico transmitido pelos modelares manuais era não apenas inteiramente mecânica como escandalosamente avessa à evolução e à física moderna. Se assim não fosse, os economistas já teriam sido levados a se afligir - e muito! - com as futuras gerações.

Ora, ao apontar tamanhos déficits epistemológico e ético no pensamento econômico padrão, NGR passou a ser visto pelos cardeais do establishment acadêmico como um transgressor a ser aniquilado. Oportunidade de ouro surgiu, em 1973, na assembleia da American Economic Association, que coroou o seu encontro anual.

NGR pediu transcrição em ata do singelo manifesto “Rumo a uma Economia Humana”, lançado pelo movimento pacifista-cristão Fellowship of Reconciliation. Depois de sério tumulto, o texto acabou saindo na edição de maio de 1974 da American Economic Review, mas de forma quase ilegível, deixando NGR arrasado.

O epitáfio esperou 1976, quando saiu a décima edição do admirado livro-texto de Samuelson. Em peculiar nota de rodapé, ele advertiu os leitores sobre o esconjuro. Um verdadeiro ícone do gigantesco desprezo que o cânone econômico nutre pelo futuro.

Três livros em português serão muito úteis ao leitor fisgado: Sobre Ética e Economia, de Amartya Sen (Companhia das Letras, 1999); Decrescimento, de NGR (Senac-SP, 2012) e A Natureza como Limite da Economia, de Andrei Cechin (Senac-SP, 2010).

*José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, está lançando o livro “O Antropoceno e as Humanidades” (Editora 34)

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