sábado, 31 de agosto de 2019

PÁ DE CAL

Editorial Folha de S.Paulo
Com a decisão de adiar o pagamento de dívidas vincendas nos próximos meses e buscar uma ampla renegociação de prazos com os credores da Argentina, o governo de Mauricio Macri sela seu fracasso econômico —que, tudo indica, deve ser acompanhado de derrota eleitoral em outubro.
A moratória —palavra que a Casa Rosada tenta evitar— acabou precipitada pelos fatos. Os investidores já fugiam dos ativos argentinos desde os resultados das eleições primárias de 11 de agosto, com a vitória por larga margem do candidato peronista, Alberto Fernández.
Desde então, o banco central argentino perdeu US$ 8 bilhões de suas já combalidas reservas em moeda forte, hoje em US$ 57 bilhões. 
A gota d'água foi a recusa do mercado em refinanciar vencimentos de US$ 1,6 bilhão no início da semana. Com poucos recursos em caixa, tornou-se impossível para o governo conter a alta do dólar e ao mesmo tempo honrar em dia os pagamentos das dívidas, estimadas em cerca de US$ 100 bilhões. 
Quanto aos papéis locais de curto prazo, as pessoas físicas continuarão a receber normalmente, mas os investidores institucionais (como bancos e seguradoras) amargarão adiamentos de até seis meses.
As dívidas em dólar emitidas no exterior serão renegociadas com os credores, inclusive os US$ 44 bilhões desembolsados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como parte do programa de ajuste econômico, que passará forçosamente por nova revisão. 
Por ora, o governo propõe apenas um adiamento voluntário e afirma tratar-se de um problema de liquidez, não de solvência. A suspensão dos pagamentos em tese dará algum fôlego para uma gestão menos caótica até o pleito de outubro. 
Mesmo que seja assim no curto prazo, o quadro se apresenta mais complexo. A hoje provável vitória da oposição peronista levou ao colapso dos preços dos ativos argentinos, reforçando a tendência recessiva. A rápida desvalorização do peso deve impulsionar a inflação para mais de 50% neste ano. 
Com a economia em frangalhos por erros da gestão atual, o ônus da dívida pública —que se aproxima do equivalente a 90% do Produto Interno Bruto— vai se elevando.
Politicamente, não há mais o que Macri possa fazer. O fim trágico de seu mandato tampouco favorece uma negociação organizada com os credores, que estarão mais interessados em saber como se comportará o próximo presidente. 
A esse respeito, não é claro que Fernández, caso chegue ao poder, venha a adotar políticas populistas. Apesar de o candidato culpar o acordo com o FMI pelas mazelas atuais, a duríssima realidade acabará por se impor também ao eventual novo governo, que terá incentivos para negociar e viabilizar alguma estabilização da economia.
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FREIOS E CONTRAPESOS

João Domingos, O Estado de S.Paulo

É possível que, da Proclamação da República para cá, não tenha sido testada tão insistentemente, como tem sido testada no governo de Jair Bolsonaro, a Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu, conhecida também como Sistema de Freios e Contrapesos. Por essa teoria, na qual se baseia a maioria das nações democráticas modernas, um poder vigia o outro, evitando excessos, desmandos, quedas pelo autoritarismo, omissões e descumprimento da lei, de forma que cada um fique ali no seu quadradinho.

Não há uma semana em que o Congresso ou o Supremo Tribunal Federal não mande um recado para o presidente Bolsonaro, naquele bom estilo do “menas, menas”. Brigado com o presidente da França, Emmanuel Macron, o presidente Bolsonaro fez beiço e decidiu rejeitar a ajuda de cerca de R$ 83 milhões oferecida para ajudar no combate às queimadas na Amazônia. Para Bolsonaro, tratava-se de uma esmola, de uma tentativa de comprar o Brasil em suaves prestações. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), rebateu. Disse que não se deve dispensar nenhum dinheiro que vier, mesmo que seja apenas R$ 1.

Quando Bolsonaro, ainda irritado, atacou a França, Maia contemporizou. Num encontro com empresários franceses ele destacou que muitas das instituições brasileiras foram criadas com base no modelo francês. Além de elogiar a tradição libertária da França e o principal legado da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

A imagem do Brasil está muito ruim lá fora por causa de declarações de Bolsonaro a favor da liberação de atividades de mineração em terras indígenas, ou por dizer que não cria mais nenhuma reserva? Maia decide recolher todos os projetos que tratam da exploração de terras indígenas, para não atrapalhar o setor produtivo. O próprio Bolsonaro, que fala primeiro para pensar depois, tem aceitado tranquilamente as regras dos freios e contrapesos. No que depender dele, anunciou, não demarcará nenhuma área indígena nova. A não ser – e aí a ressalva é importante – que seja obrigado. Em outras palavras, por um dos outros Poderes, ou o Judiciário ou o Legislativo.

Tanto o STF quanto o Congresso têm freado decretos assinados pelo presidente e que são tidos como viciados, por conterem excessos. No STF caíram, entre outros, um decreto que extinguia centenas de conselhos de representação da sociedade civil. O Supremo também determinou a Bolsonaro que mantenha a demarcação das terras indígenas na Funai, e não no Ministério da Agricultura, como queria o presidente.

Nesse caso, o Judiciário agiu também para garantir o freio por parte do Legislativo, visto que o presidente havia editado uma medida provisória contrariando decisão do Congresso que determinara justamente que a demarcação das áreas indígenas teria de ficar com a Funai. E quando o ministro da Justiça, Sérgio Moro, falou em destruir o material recolhido com um grupo que hackeara mensagens de parte da força-tarefa da Operação Lava Jato e de outras autoridades, o ministro Luiz Fux determinou a preservação de todo o material.

Às vezes, esses choques entre os Poderes podem até parecer exagerados. E pode até ser que são, pois é como se cada lado, principalmente o Executivo, fizesse testes constantes sobre a capacidade de reação das instituições. Vista do lado do estado democrático de direito, no entanto, o resultado desses choques pode conter uma notícia boa. É preciso reconhecer que as instituições democráticas, às quais cabe botar freio umas nas outras, têm funcionado bem.
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SOLDADOS DE CAXIAS

Demétrio Magnoli, Folha de S.Paulo

“Os governos imperialistas aproveitam a crise para lançar uma ofensiva em torno da questão ambiental para atacar a soberania nacional brasileira. Aos incautos que insistem em tutelar os desígnios da brasileira Amazônia, não se enganem: os soldados do Exército de Caxias estarão sempre atentos e vigilantes, prontos para repelir qualquer tipo de ameaça.”

Quem escreveu isso? Assim, ninguém. A primeira frase é do Partido da Causa Operária, um grupúsculo de ultraesquerda (e, nela, depois da “crise”, aparece um “criada por Bolsonaro”).

Já a segunda é do general Edson Pujol, comandante do Exército, na Ordem do Dia lida no último dia 23. Mas as duas ficam bem juntas, abraçadas no ninho do nacionalismo. A nação, ensinou Benedict Anderson, é uma “comunidade imaginada”. O patriotismo nacionalista, registrou Samuel Johnson, é “o último refúgio dos canalhas”.

A invocação da soberania nacional é o refúgio clássico de governantes quando estrangeiros apontam rupturas dos compromissos internacionais assumidos pelo país, desrespeito às leis nacionais ou violações dos direitos dos cidadãos. Os canalhas perfilam-se à sombra da bandeira sempre que emergem temas diplomáticos globais, como as políticas ambientais e os direitos humanos. Nessas horas, a extrema direita e a esquerda tradicional revelam suas notáveis semelhanças. Então, uns e outros começam a empregar as palavras “imperialismo” e “colonialismo”.

Jimmy Carter assumiu a Presidência dos EUA em 1977 e lançou sua política de direitos humanos, afastando Washington das ditaduras militares do Cone Sul. Ernesto Geisel reagiu rompendo o acordo militar bilateral para “não sujeitar o Brasil à interferência externa”. O general Gregório Álvarez, homem-forte da ditadura uruguaia, tentou costurar um pacto com o Brasil para resistir à “subversão comunista” e ao “desrespeito dos EUA à soberania” dos dois países. Eles só não aplicaram o rótulo de “comunista” a Carter para reservar o espetáculo do ridículo à extrema direita bolsonarista.

A guerra de verdade toma, eventualmente, o lugar da guerra retórica. Leopoldo Galtieri deflagrou a Guerra das Malvinas, em 1982, para unir a Argentina em torno de uma sangrenta ditadura que submergia. “As Malvinas são argentinas —e os desaparecidos também.” A resposta da oposição evidenciou o dilema da esquerda, incapaz de se desvencilhar de seu discurso ritual anti-imperialista. No fim, a ditadura desabou —mas como resultado da humilhação militar.

Soldados de Caxias, soldados de Bolívar. O hino da “luta contra o imperialismo” acompanha as prisões e a tortura na Venezuela chavista. “Esses bandidos vão lá e falam mal do país e ganham milhares de dólares”: Nicolás Maduro utiliza, para as ONGs de direitos humanos, a mesma linguagem que Jair Bolsonaro usa para as ONGs ambientalistas. ONGs formam um universo heterogêneo, multifacetado. Mas, na retórica compartilhada pelo nacionalismo autoritário de direita e de esquerda, todas são agentes do “inimigo externo” pois podem representar contrapontos ao poder estatal.

No G7, com o plano de ajuda para combate a incêndios e reflorestamento, Emmanuel Macron deu um xeque ao rei, prendendo Bolsonaro no canto do tabuleiro diplomático. Depois, sua incauta sugestão de um estatuto internacional para a Amazônia ofereceu aos nacionalistas um atalho rumo ao “último refúgio”.

A Amazônia, no imaginário militar, é o “verde de nossas florestas”, uma das cores da bandeira, e o pilar setentrional da doutrina geopolítica de integração nacional. Os “soldados de Caxias” estão lá, nas largas faixas de fronteiras mortas, nos caminhos líquidos disputados pelo narcotráfico.

A Ordem do Dia de Pujol, tão parecida com o brado insignificante da Causa Operária, era ainda mais previsível que a próxima fagulha de incêndio. Nem por isso deixa de ser uma fuga para o “último refúgio”.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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A INSTABILIDADE E SUAS RAZÕES

Aloísio Toledo César, O Estado de S.Paulo
Neste momento em especial da vida política brasileira, temos à frente da República um presidente que busca livrar-se psicologicamente de culpa e de atos social e politicamente inaceitáveis, atribuindo-os a outros.
Todos nós, brasileiros, estamos percebendo que não é fácil conhecer um governante e por isso mesmo vale um rápido mergulho na psicanálise, como fez Freud, para melhor compreender o comportamento humano. Aquele extraordinário psicanalista foi talvez quem mais se aprofundou no reino inconsciente de desejos reprimidos que levam os homens a se afastar das regras de condutas aceitáveis.
Freud observou que no reino político, mais do que em qualquer outro, o inconsciente se manifesta e por isso os homens raramente admitem motivos egoístas, ao mesmo tempo que procuram racionalizar e criar bodes expiatórios para justificar crueldades. Esse o motivo também por que projetam a culpa sobre os outros, responsabilizando-os – como, por exemplo, no caso das queimadas na Amazônia.
Para predizer e compreender o comportamento de políticos com essa natureza, a atenção deve estar voltada não apenas para os seus atos, mas para os motivos psicológicos existentes por detrás deles. É extremamente preocupante, no caso do nosso presidente, que ele não se preocupe em ser compreendido nem demonstre que é capaz de compreender a realidade que enfrenta no dia a dia.
Neste momento em especial, pesa sobre ele uma forte incompreensão universal, à qual não parece dar muita importância. Praticamente todos os países se incomodam com a destruição da Amazônia, mas nosso presidente age como se todos estivessem errados e somente ele estivesse certo. Às vezes parece preferir o isolamento, abandonando de vez o caminho mais seguro da diplomacia (de outra parte, é incrível não perceber que a indicação de um de seus filhos para a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos choca grande parcela dos brasileiros, soando como algo leviano e ao mesmo tempo autoritário).
Essa conduta faz lembrar Erich Fromm, outro psicólogo de expressão, para quem o homem moderno está possuído por sentimentos de inferioridade, insegurança, impotência, solidão, humilhação e insignificância. Por isso é muitas vezes levado a aparentar superioridade, segurança, poder, integração, prestígio e glória na área política, “especialmente por meio de ideologias e movimentos totalitários”.
Os estudos desse psicanalista indicam também que na complexa sociedade urbana e industrial o homem se defronta com grandeza, forças impessoais e questões complicadas que desafiam sua compreensão, diminuem seus poderes de controle e o fazem sentir-se isolado e impotente.
Nesse panorama, incapaz de enfrentar conscientemente a adversidade, ele foge de sua liberdade para os braços de ideologias totalitárias, as quais oferecem explicações agradáveis para o seu destino, assim como respostas amplas, embora simples, para os seus problemas.
Os cientistas da psicologia são unânimes em afirmar que as ideologias e os movimentos totalitários oferecem refúgio contra as ansiedades e a falta de significação da existência individual. É como se libertassem os homens de seus complexos e fraquezas.
Percebe-se que o País vive um desses momentos nas mãos de pessoa instável e fortemente autoritária, a ponto de a toda hora repetir: “Quem manda aqui sou eu”. Esse comportamento já o levou a externar condenável conduta em relação ao ministro Sergio Moro, talvez a pessoa mais admirada entre os brasileiros.
Com o propósito de ampliar o combate à corrupção que vinha travando na Operação Lava Jato, Sergio Moro aceitou convite de Jair Bolsonaro para assumir incondicionalmente o Ministério da Justiça, ao menos no referente à corrupção. Mas com o surgimento de fatos novos e incompreensões que a toda hora abalam o governo, o presidente passou várias vezes por cima da autoridade de Moro, humilhando-o daquela forma já conhecida: “O ministro da Justiça é ele, mas quem manda sou eu”.
Também em relação a outros auxiliares a insegurança pessoal do presidente se reflete na forma de autoritarismo, deixando claro que, se depender dele, estaremos, sim, correndo o risco da implantação de um governo autoritário (isso num momento em que o País parece desejar apenas mais competência e respeito).
O totalitarismo registrado em diferentes partes do mundo sempre esteve relacionado a fatores com natureza de crise, como catástrofe econômica (Venezuela), humilhação nacional e desorganização social (Cuba). Lembre-se que os cubanos se voltaram contra o então presidente Fulgêncio Batista porque ele se tornara abertamente corrupto e por suas políticas ditatoriais.
Há um fato histórico que assusta, pelo risco de poder se repetir. A persistente tirania e a grande ineficiência do regime de Batista fornecera o catalisador que permitiu a um líder carismático, Fidel Castro, reunir os grupos descontentes na sociedade cubana.
Fidel havia sido condenado a 15 anos de prisão, mas foi libertado em 1955 e logo partiu para o México, onde treinou uma força expedicionária para futura invasão de Cuba. No Brasil temos o ex-presidente Lula cumprindo pena e a cada dia ganhando maior força política, graças a um governo inseguro que parece desabar ladeira abaixo. Incrível, as incertezas de Bolsonaro são ótimas para Lula e o PT.
Além disso, os ataques pessoais tão característicos do presidente, mais a inclinação para repetir que ele é que manda, deixam entrever que não oscilará no caminhar para um regime autoritário. Melhor seria se desse mais atenção à enorme parcela da população que não tem nada e não recebe nada.
*Desembargador aposentado do TJSP, foi secretário de Justiça do Estado de São Paulo.
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O EFEITO MACRON

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
Ao falar em internacionalização da Amazônia, o francês Emmanuel Macron mexeu com os brios brasileiros e deu ao presidente Jair Bolsonaro um discurso poderoso e aglutinador baseado em duas palavras mágicas: soberania e patriotismo. Mesmo antibolsonaristas convictos caíram nessa. Mexeu com a pátria, mexeu comigo.
Com esse discurso, Bolsonaro deu voz unida e reuniu novamente os militares do seu governo em torno dele. Ordem, disciplina, patriotismo. E não se fala mais de demissões de generais nem de medalha para o guru que os tratava aos palavrões.
Com o escorregão de Macron, todos perfilaram, bateram continência e respiraram aliviados por ter bons motivos para reverenciar o capitão que virou “comandante em chefe.” Ele manda, eles obedecem. Ele cobra soberania e patriotismo, eles adoram. Ele grita “a Amazônia é nossa”, eles fazem coro. O resto é passado.
Se une os militares, o presidente também usa Macron e a Amazônia para animar a sua tropa real e virtual e deve estar se divertindo à beça com os “inimigos” que tanto falaram mal de suas posições devastadoras sobre o meio ambiente e agora se sentem obrigados a reconhecer que Macron passou do ponto, é um atrevido.
Enquanto os três Poderes dão tratos à bola para reunir recursos para proteger a Amazônia e o governo toma medidas práticas contra desmatamento e queimadas, Bolsonaro vai tirando proveito político da crise e cobra pedido de desculpas de Macron, que o chamou de “mentiroso”, apesar de ele ter atacado primeiro, com a “live” cortando o cabelo na hora marcada para o chanceler francês.
Sem falar do seu filho, candidato a embaixador – e em Washington! – chamando o presidente da França de “idiota” e do próprio presidente rindo de um ataque vil, grosseiro, contra Brigitte, mulher de Macron, que é muitos anos mais velha do que ele, assim como a linda Michelle é muitos anos mais nova do que Bolsonaro. Quem pode ser a favor de uma coisa dessas?
É um círculo vicioso: Bolsonaro posta na internet ou fala alguma barbaridade qualquer no Alvorada e passa o dia se deliciando com a perplexidade geral, enquanto aumenta os ataques contra a mídia e os jornalistas. Ou seja: ele cria frases e fatos contra ele, espera a mídia divulgar e criticar e joga a opinião pública contra a mídia. Atiça a imprensa de um lado e os seus adoradores de outro. Os dois lados se engalfinham e ele reina acima de todos.
É provável que não seja uma estratégia sofisticada, mas, sim, uma personalidade, um estilo, uma agressividade e uma beligerância que passam de pai para filhos, enquanto eles vão se acertando com Judiciário e Legislativo para manter as coisas “sob controle” e a tropa defendendo o indefensável e mirando os “outros”, os “inimigos”.
Bolsonaro também se revela um craque manipulador de pessoas. Assim como botou os generais nos seus devidos lugares, calou o vice Hamilton Mourão, amestrou o ministro Sérgio Moro e vai usando seus trunfos. Ontem, anunciou para a PGR um interino, que, se não se comportar direitinho, pode ser demitido a qualquer momento. Hoje, esfrega na cara dos senadores uma foto de Eduardo Bolsonaro com Donald Trump nos EUA. Isolamento internacional? Que isolamento?
Porém, não há estratégia e esperteza que resistam à economia frágil. O crescimento de 0,4% no segundo trimestre é um alívio, mas o Brasil se arrasta feito tartaruga e precisa de agilidade de coelho para escapar dos efeitos de mais uma crise na Argentina, num momento de instabilidade global e de muita desconfiança em relação ao Brasil de Bolsonaro. A briga com Macron é quase pessoal, mas a beligerância com o mundo é bem mais grave do que isso.
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O ABOMINÁVEL BOLSONARO DAS QUEIMADAS

Editorial ISTOÉ
O Brasil vive uma aberração administrativa sem precedentes. Bolsonaro, o presidente-capitão que tem prazer em tripudiar, fazer pouco caso e ofender adversários imaginários, enxergando comunistas até debaixo da cama, acabou subindo de status e é agora classificado como um desastre global – arrastando junto consigo o prestígio do Brasil, que no plano ambiental levou décadas para ser erigido com ações de preservação e que em poucos dias virou cinzas pela negligência gritante do mandatário para com o assunto.
O reputado “The New York Times” classificou o Messias dos trópicos como “o mais maçante e insignificante dos líderes”. No mundo inteiro, da Alemanha aos EUA, do Canadá à Noruega, sem contar na mais nova inimiga preferencial do capitão, a França, diversos protestos repudiaram seus atos tidos como fascistas e selvagens, perto da barbárie. Bolsonaro resolveu responder à reação com bravatas. Confunde soberania com soberba. Mistura conceitos, faz malversação de dados técnicos e explora as fake news para produzir suas estultices. Ele mesmo se converteu em uma versão satirizada de Dom Quixote a enfrentar moinhos, trazendo a reboque seu exército de Brancaleone.
E são muitos ao lado dele a compartilhar do universo paralelo que criaram. Em um rompante de sabujice explícita, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, chamou o francês Emmanuel Macron de “idiota oportunista”. O filho Zero Três, Eduardo Bolsonaro, aspirante à vaga de embaixador em Washington, deu lições de diplomacia tosca endossando o xingamento. O ministro Onyx Lorenzoni mandou os europeus enfiarem o dinheiro — R$ 300 milhões que iriam ser lançados aqui sob a forma de contribuição ao Fundo da Amazônia — lá pelas bandas de suas florestas “que necessitam mais”. E o titular da pasta do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tentou ditar regras para receber a ajuda.
Ao falarem grosso encenaram um show de patetices, comandado pelo capitão em pessoa, que ainda recorreu às redes sociais para veicular vídeos de caça à baleia na Dinamarca como se fossem na Noruega. Só faltaram as bananas para ornar o festival de cretinices da republiqueta. Mas ainda estávamos prestes a testemunhar uma cafajestada capaz de causar vergonha alheia a qualquer brasileiro minimamente digno, que preza pelo respeito ao ser humano. O governante golden shower, afundando na degradação moral, resolveu fazer um comentário jocoso digno de borracharia sobre a primeira-dama da França.
Em tom de galhofa, com imagens das respectivas cônjuges dos dois líderes, um seguidor bolsonarista havia publicado que a razão da “inveja” de Macron seria a beleza de Michele Bolsonaro em comparação a de Brigitte Macron. No que o mandatário brasileiro não perdeu tempo e sapecou a sua pândega sexista: “não humilha, kkkkkkk”. O abominável Bolsonaro das queimadas, como vem sendo visto lá fora, passou de todos os limites. Isso vindo de um mero “hater” das redes já seria desprezível. Em se tratando de um chefe de Estado, que representa a Nação e seus compatriotas, passa do suportável.
A falta de compostura de Bolsonaro na Presidência da República já era conhecida de boa parte dos brasileiros. Ganhou alcance planetário e o converteu em um pária global. Transamazônico, literalmente. Por aqui um movimento intitulado “#DesculpaBrigitte” tentou remediar o estrago. Recebeu milhares de adeptos não apenas entre o público feminino. O escritor Paulo Coelho levantou a mesma bandeira e resolveu enviar escusas formais em nome do Brasil. Espremendo o que ainda restava de credibilidade nacional, o “Mito” abriu novo flanco de guerra alegando que as terras indígenas “inviabilizam” o País.
O direito dos índios a parte do território nacional é garantido pela Constituição, mas isso pouco importa quando o objetivo é encontrar culpados pelos problemas ambientais. Parece que toda a alegação vale a pena em seu triste espetáculo de desinformação. Antes o mandatário havia atribuído a responsabilidade das queimadas a ONGs e, no momento seguinte, aos produtores rurais. Sem apresentar qualquer prova em um caso ou outro. Com o seu repertório infindável de bobagens, o presidente age como um doidivanas inimputável, que pode esnobar recursos, dar falsos testemunhos, difamar reputações e praticar crimes contra a honra alheia. E não pode.
Na verdade é constrangedor assistir a tantos atentados retóricos e de comportamento. Na essência, eles escancaram a mediocridade de comando que tomou o Planalto. Difícil mensurar o tamanho da ruína política que essa escalada de escárnio e falta de escrúpulos do mandatário no que tange a questões de interesse mundial vai causar ao País. Mas desde já é possível prever que ele caminha para um isolamento e irrelevância internacionais em virtude do ridículo. O Brasil entrou com ele na fogueira. Complicado será não sair chamuscado de lá.
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NO MESMO TOM

Merval Pereira, O GLOBO
A polarização política continua em plena atividade, e as redes sociais trabalham no limite da irresponsabilidade de ambos os lados. Na mesma semana em que surgiu a reprodução de diálogos de alguns procuradores da Lava-Jato em Curitiba ironizando o luto do ex-presidente Lula na morte de dona Marisa, o próprio Lula deu uma entrevista à BBC Brasil colocando em dúvida que o presidente Bolsonaro tenha realmente sido esfaqueado na campanha eleitoral de 2018.
Para os petistas, os comentários dos procuradores denotam ódio a Lula. Para os bolsonaristas, o comentário de Lula sobre a facada em Bolsonaro demonstra que, para o ex-presidente, nada é mais importante que a disputa política.
Os comentários de alguns dos procuradores são lamentáveis, e a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann foi ao Twitter para condenar, afirmando dramaticamente: “Diálogos de procuradores mostram a pior face do ser humano”.
Pode ser exagerado, mas sem dúvida a ironia numa hora dessas é descabida, e revela frieza diante de tragédias pessoais que pode chocar almas mais sensíveis como a da presidente do PT.
Tanto que a procuradora Jerusa Viecili, a mais irônica nos diálogos, pediu desculpas ao ex-presidente Lula por ter feito chacota de seu luto: “Errei. E minha consciência me leva a fazer o correto: pedir desculpas à pessoa diretamente afetada, o ex-presidente Lula”, disse, também através do Twitter.
As conversas revelam que diversos procuradores fizeram pouco caso das mortes não apenas de dona Marisa, mas do neto Arthur, e do irmão Vavá. “Querem que fique pro enterro?”, perguntou, ironicamente, Jerusa, diante da notícia da morte de Marisa. “Preparem para a nova novela ida ao velório”, escreveu no Telegram, sobre a morte do neto Arthur.
O Procurador Januário Paludo comenta, se referindo a dona Marisa: “Estão eliminando as testemunhas”. Já Laura Tessler adverte: “Quem for fazer a próxima audiência de Lula, é bom que vá com uma dose extra de paciência para a sessão de vitimização”, escreveu.
Mas há também comentários pertinentes, sobre o temor de que Lula no enterro do irmão causaria muita confusão política. Ou rebatendo a afirmação de Lula de que dona Marisa havia morrido devido ao que a Lava-Jato fez com ela e com os filhos.
Quando o ex-presidente comentou no enterro do neto que ele havia sofrido bullying na escola por ser um Lula da Silva, a procuradora Monique Cheker criticou: “Fez discurso político (travestido de despedida) em pleno enterro do neto, gastos públicos altíssimos para o translado, reclamação do policial que fez a escolta… vão vendo”.
Eduardo Bolsonaro já havia se manifestado nas redes sociais sobre a ida de Lula ao enterro do neto no mesmo tom: :”Lula é preso comum e deveria estar num presídio comum.
Quando o parente de outro preso morrer ele também será escoltado pela PF para o enterro? Absurdo até se cogitar isso, só deixa o larápio em voga posando de coitado”.
Os diálogos revelam também que vários procuradores chamaram a atenção dos que estavam ironizando a dor do ex-presidente Lula. Carlos Fernando dos Santos comenta: Vamos ficar em silêncio. Ninguém ganha falando mal de quem morre ou da família. O procurador Luis Carlos Welter adverte: Ninguém pode medir a dor de quem perde a pessoa amada. Fazendo esse discurso político, ele mesmo vai se prejudicar.
Mas, o que dizer do ex-presidente Lula, cujos comentários não foram conseguidos clandestinamente, mas em entrevista à BBC Brasil? Ele insistiu na suspeita, alimentada desde então por petistas de diversos calibres, de que a facada em Bolsonaro, durante a campanha eleitoral, foi uma fraude.
“Não, eu não disse que não tinha tomado, eu disse que não acreditava (que Bolsonaro levou uma facada). Mas você garante a mim o direito da dúvida? Veja, eu tenho suspeitas (de que não ocorreu). Agora, se aconteceu, aconteceu.”.
Ele continuou: “Eu falei com muita tranquilidade desde o dia que aconteceu aquilo, porque não vi sangue. O Bolsonaro deu uma entrevista assim que chegou no hospital. Ele foi internado, já tinha um senador fazendo uma entrevista.”.
Os petistas como Paulo Pimenta reproduziram em suas redes sociais um documentário apócrifo intitulado “A Facada no Mito”, postado no YouTube. Sem apresentar nenhuma evidência, o documentário destaca o que seriam “dúvidas” ridículas sobre o atentado.
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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

MORO, O IMEXÍVEL

Do Blog do Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense
A palavra imexível é uma criação do ex-ministro do Trabalho e Previdência Social Antônio Rogério Magri, por ocasião do lançamento do chamado Plano Collor, em 1990. Sindicalista, o então ministro referia-se ao direito de greve. O termo acrescenta o prefixo negativo latino in ao adjetivo mexível, o que é chamado de neologismo léxico. A expressão foi ridicularizada, mas não tinha nada de errado e, por isso mesmo, entrou para o dicionário político nacional. É usada toda vez que um ministro tem muito prestígio e não pode ser exonerado pelo governante, sem que isso cause grande desgaste político e o defenestrado vire um concorrente natural.
É o caso do ministro da Justiça, Sérgio Moro, que estava sendo fritado pelo presidente Jair Bolsonaro por se opor à decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, que suspendeu todas as investigações que estavam sendo feitas pela Polícia Federal com base em informações fornecidas sem autorização judicial pela Comissão de Controle de Operações Financeiras (Coaf). A liminar fora requerida pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da República, que estava sendo investigado no caso do seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Moro articulava a derrubada da liminar pelo plenário do Supremo; Bolsonaro ficou sabendo.
A reação de Bolsonaro foi muito dura. Transferiu o Coaf do Ministério da Justiça para o Banco Central, cujo presidente, Roberto Campos Neto, substituiu o chefe do órgão por um funcionário de carreira da instituição. O presidente da República também exigiu mudanças nos quadros da Receita Federal e da Polícia Federal no Rio de Janeiro, cujo superintendente será substituído, sob pena de demitir o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo. Apesar do mal-estar criado entre os delegados federais, a mudança acabou aceita. Moro recuou, e Bolsonaro manteve o ministro, antes que as críticas ao seu comportamento tirassem a bandeira do combate à corrupção das suas mãos.
Esse é o busílis da questão. A bandeira da Lava-Jato é mais de Moro do que de Bolsonaro. O prestígio popular de Moro, apesar da crise causada pela revelação de suas conversas com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato pelo site Intercept Brasil, permanece inabalável na opinião pública, apesar de ter queimado o filme no mundo jurídico. A imparcialidade do juiz é um valor cultivado entre magistrados, porém, a troca de figurinhas entre juízes e promotores durante as investigações é mais frequente do que se imagina. Além disso, a opinião pública adora o linchamento moral dos políticos, ou seja, quer mais é que o juiz “prenda e arrebente”.
Alternativa
Desde quarta-feira, Bolsonaro e Moro tentam desfazer o mal-estar criado entre o Palácio do Planalto e a Lava-Jato por causa do caso do filho do presidente da República. Ontem, o governo federal lançou um projeto-piloto de ações conjuntas com estados e municípios para enfrentar crimes violentos. As ações serão desenvolvidas em Ananindeua (PA, Norte), Paulista (PE, Nordeste), Goiânia (GO, Centro-Oeste), Cariacica (ES, Sudeste) e São José dos Pinhais (PR, Sul). São R$ 4 milhões por cidade, num total de R$ 20 milhões do orçamento do Ministério da Justiça.
Ao apresentar o projeto batizado de “Em frente Brasil”, no Palácio do Planalto, Bolsonaro encheu a bola do seu ministro da Justiça e Segurança Pública. Aproveitou a ocasião para dizer que Moro é um “patrimônio nacional” e agradeceu a presença do ministro no governo: “Obrigado, Sérgio Moro. Vossa senhoria, o senhor abriu mão de 22 anos de magistratura para não entrar em uma aventura, mas, sim, na certeza de que todos nós juntos podemos, sim, fazer o melhor para a nossa pátria”.
Bolsonaro sabe que a eventual saída de Moro do governo seria um desastre, porque o ministro carregaria consigo a bandeira da Lava-Jato e se tornaria, no dia seguinte, um forte candidato a presidente da República.
O Podemos, partido presidido pela deputada Renata Abreu (SP), tem hoje a segunda bancada do Senado, com nove parlamentares. Liderado pelo senador Álvaro Dias (PR), está de braços abertos para a eventual candidatura de Moro a presidente da República. A legenda trabalha para se tornar a maior bancada da casa. Para isso, tenta atrair os senadores Flávio Arns (Rede-PR) e Major Olímpio (PSL-SP).
Volto logo — Durante uma semana me ausentarei da coluna.
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ROBÔS IMPULSIONARAM HASHTAGS CONTRA ONGS NA AMAZÔNIA

Da Agência Pública, via EL PAÍS
Robôs impulsionaram hashtags contra ONGs na Amazônia e a favor de Salles
Na semana passada, entre 19 e 24 de agosto, as queimadas na Amazônia foram um dos assuntos mais comentados no Twitter mundialmente. Em meio à polarização no Twitter, as hashtags foram mais uma vez usadas como armas para ganhar a opinião pública —mas dessa vez, com auxílio de robôs e turbas virtuais, segundo levantamento feito pela Agência Pública.
No dia 21 de agosto, o presidente Jair Bolsonaro acusou, sem provas, organizações não governamentais (ONGs) pelos incêndios na Amazônia. “Pode estar havendo a ação criminosa desses ongueiros para chamar atenção contra o governo do Brasil”, disse em coletiva de imprensa. No mesmo dia, seus apoiadores lançaram a hashtag #AmazoniaSemOng, que chegou aos assuntos mais comentados da rede no Brasil.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também recebeu uma hashtag de apoio nas redes. A tag foi lançada, com pouca expressividade, no dia 21 de agosto. No dia seguinte, depois que o partido Rede Sustentabilidade entrou com pedido de impeachment do ministro, a #SomosTodosRicardoSalles chegou aos Trending Topics no Brasil.
Pública teve acesso às primeiras 50 mil postagens de cada uma das hashtags #AmazôniaSemONG e #SomosTodosRicardoSalles durante os dias 21 e 22 de agosto, extraídas pelo Laboratório de Pesquisadores Forenses Digitais (DFRLab), da organização Atlantic Council. Os dados mostraram que por trás das tags estavam perfis com indícios de automação, responsáveis por manipular as tendências na rede social.
Além disso, a reportagem verificou que o uso das hashtags foi orquestrado em grupos bolsonaristas no WhatsApp. Um número identificado como “TV a Cabo” publicou em quatro grupos ligados a Jair Bolsonaro de diferentes estados mensagem chamando para “Twittaço” com as tags #AmazôniaSemONG e #ApoioTotalRicardoSalles. A mensagem também conclamava os participantes do grupo a seguir a conta oficial de Twitter da Secretaria Especial de Comunicação Social do Governo federal (Secom), criada no auge da crise, em 21 de agosto.
Mensagens quase idênticas foram publicadas mais de 100 vezes pelo perfil @direitaforte7 no Twitter. O perfil, que foi excluído pela plataforma, mencionava outras contas, como a do próprio presidente e de ministros do governo, chamando para o “Twittaço”.
Procurada, a Secom não respondeu sobre sua relação com o Twittaço até a publicação da reportagem.
Poucos perfis, muitas postagens
O primeiro registro da hashtag #AmazoniaSemONG apareceu 4 horas depois de Bolsonaro publicar fala acusando as ONGs pelos incêndios na Amazônia em seu Twitter. Às 20h10 do dia 21 de agosto, o influenciador digital conservador Jouberth Souza, que acumula mais de 45 mil seguidores na rede social, comentou em publicação do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro: “Usem a tag: #AmazoniaSemONG”. O comentário teve 130 retweets.
Uma hora depois, a tag já tinha mais de 1500 menções no Twitter, de 617 perfis diferentes. A grande maioria de postagens vinha de usuários anônimos e alguns ativistas digitais mais influentes.
Entre os anônimos, estavam perfis estranhamente ativos. Das 1500 primeiras postagens, 379 (25%) vieram apenas de 10 usuários. O perfil @jogomartins, de João Gomes Martins, com apenas 159 seguidores, publicou ou replicou a hashtag 87 vezes na primeira hora. Em seguida vem o perfil @ajulia366, com 73 publicações com a #AmazoniaSemONG no período. Em terceiro lugar, o perfil @MayDgoni, identificado como Mayra, publicou e retuitou a hashtag 53 vezes na primeira hora.
No total, apenas 180 usuários (1% do total de perfis que usaram a tag) foram responsáveis por 20% das primeiras 50 mil postagens com a #AmazôniaSemONG.
A hashtag #SomosTodosRicardoSalles também teve poucos usuários publicando muitas vezes, mas a atividade anormal só começou horas depois do primeiro tweet, feito às 10h01 da manhã do dia 21 de agosto por Nadja Clea (@najinhas), perfil ligado à direita com 9,4 mil seguidores. Ela retuitou uma publicação do site Conexão Política, alinhado ao governo, que dizia “ONGs que perderam verbas e cargos vão à PGR contra Ricardo Salles”, e comentou “A roubalheira acabou. #SomosTodosRicardoSalles”. Durante a manhã do dia 21 apenas ela usou a tag.
Às 16h50 o perfil @AVerdade_Libert, identificado como “Angel”, comentou com a tag em resposta a uma postagem do site de direita Renova Mídia. E às 17h18 convidou seus 22 mil seguidores a se engajarem na #SomosTodosRicardoSalles: “Podem me dar um up?”.
O pico de publicações da tag, no entanto, só ocorreu no dia seguinte, quando também chegou aos Trending Topics a tag #ForaSalles, em apoio ao pedido de impeachment do ministro.
Uma das publicações com maior repercussão com a #SomosTodosRicardoSalles veio de Dani Wine Brasil.
O perfil, que segue e é seguido por 11 mil pessoas, foi o sexto que mais publicou a tag, com 183 postagens. Dani Wine ficou atrás dos perfis Silvana Merissi, com 446 tuítes, Murilo Defanti, com 420 tuites, Bronko Documentaries, 309, Mari Luci Ferraz, 274, e Giane R. Silva, 260. Das primeiras 50 mil publicações com a tag entre 21 e 22 de agosto, 11 mil (23%) vieram de apenas 122 perfis – 1% do total de perfis que usaram a tag.
É uma atividade que indica manipulação das tendências no Twitter, segundo a pesquisadora da organização Atlantic Council Luiza Bandeira. “Existem várias formas de manipular o Twitter. Uma delas é o uso de contas automatizadas, mas você também pode manipular as tendências fazendo com que poucas pessoas tuitem muitas vezes a mesma hashtag.”
Para as hashtags críticas ao Governo na questão ambiental, as taxas de usuários estranhamente ativos foi muito menor. Segundo análise da pesquisadora, no caso da #ActForAmazonia, 1% dos perfis foram responsáveis por 9% das postagens, e no caso do #PrayforAmazonia, por 11%.Como é comum, perfis de influenciadores alinhados ao Governo se engajaram nas Tags, como a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), que fez os dois tuítes com a tag #SomosTodosRicardoSalles mais retuitados, com 2,9 mil e 2,8 mil retuítes. Um tuíte do próprio Salles que retuitava o jornalista José Roberto Guzzo ficou em terceiro lugar, com 2,8 mil retuítes.
Já Allan dos Santos, dono do site Terça Livre, alinhado ao governo, foi o mais influente na hashtag #AmazôniaSemONG. Ele retuitou uma publicação de outro perfil e ironizou a cantora Anitta: “Índios, invadam a mansão da Anitta”. Foi retuitado por mais de 3 mil pessoas.
Evidências de automatização
Além das duas hashtags terem sido amplificadas por usuários estranhamente ativos, elas tiveram o engajamento dos mesmos perfis. No total, 26.821 perfis diferentes mencionaram alguma das tags entre os dias 21 e 22 de agosto. Desses, 18% (4.859) mencionaram ambas.
Entre os usuários mais ativos, a proporção é ainda maior. Dos 100 usuários que mais mencionaram a #SomosTodosRicardoSalles, 26 também estavam entre os que mais mencionaram a #AmazôniaSemONG.
O perfil de Silvana Merissi, que se apresenta como apoiadora de ministros do governo bolsonaro sob o nome de “SilzinhaBolsomoroGuedesWeintraubTarcisioDamaresAja” foi recordista de publicações com as duas tags. Pela #SomosTodosRicardoSalles, ficou em primeiro lugar com 446 menções. Pela #AmazoniaSemONG, levou o sétimo lugar, publicando a tag 142 vezes. Em todos os casos, “Silvana” retuitou publicações de outros perfis.
“A gente considera mais de 140 tuítes por dia em média como suspeito”, explica Luiza Bandeira. “Esse perfil na última semana fez quase 400 tuítes por dia, em média, o que é estranho. Além disso, ela retuita algumas coisas no mesmo segundo, o que também é indício de automação”.
Outros 4 usuários que ficaram entre os dez mais ativos têm características semelhantes. Os perfis Murilo Defanti, Bronko Documentaries, Mari Luci Ferraz e Anderson Souza, assim como Silvana Merissi, somaram mais de 1500 menções às hashtags e só fizeram retuites, com poucos segundos de diferença. Eles também se engajam em outras hashtags ligadas à direita. No dia 27 de agosto, as quatro contas retuitaram postagens com a tag #GloboLixoTraidoraDaPatria, que chegou aos Trending Topics.
Uma rede de robôs em defesa de Salles
O segundo perfil que mais tuitou ambas as tags foi o @Sah_Avelar, com 417 publicações com #AmazoniaSemONG e 157 #SomosTodosRicardoSalles. Diferentemente de Silvana, Sah Avelar não fez retuites com as tags, mas suas postagens sempre começam com um número que corresponde a um horário. Seu primeiro tuíte com a #AmazôniaSemONG foi às 20h45 do dia 21 de agosto. O texto começava com o horário “23:45” e divulgava um vídeo do canal de Youtube Conservative Core, que tratava de outra temática. Todas as postagens seguiam o mesmo padrão: horário três horas para frente, link para Youtube e hashtag.
O perfil de Sah Avelar também parece vinculado a outros três que ficaram entre os mais ativos das duas hashtags. Os usuários @sasa_news, @savelar4 e @tmr_kyle seguem os mesmos padrões de postagens que @sah_avelar, têm a mesma imagem de capa e perfil e são identificados com o nome “sasa – Conservative Core”. Outros dois perfis utilizam esse mesmo nome e imagens, @myamyers_ e @noMatte34020924, mas esses não se engajaram nas tags em questão.
Na #AmazoniaSemONG os três postaram coordenadamente, no mesmo segundo. E também agiram em sintonia para impulsionar a hashtag #ApoioTotalRicardoSalles. Contudo, a hashtag não foi para frente, e não chegou nem a 1.000 menções.
Segundo Bandeira, esses perfis têm comportamento parecido ao de uma rede de robôs, como publicações idênticas, nomes de usuários e fotos de perfis parecidos.
O Twitter possui uma política específica contra spam e manipulação de conteúdo na plataforma. Apesar de serem permitidas contas automatizadas, “não é permitido usar os serviços do Twitter com o intuito de amplificar ou suprimir informações artificialmente”. Dentre as violações dessa política, está multiplicidade de contas operando “com propósitos sobrepostos” e “usar um assunto ou uma hashtag popular com a intenção de subverter ou manipular uma conversa”.
Muitos dos usuários que se engajaram em peso nas hashtags analisadas violam tais políticas. Alguns deles, inclusive, já foram excluídos pela plataforma, como é o caso do perfil @direitaforte7, que publicou 175 vezes a #SomosTodosRicardoSalles e 105 vezes a #AmazôniaSemONG entre os dias 21 e 22 de agosto.
Procurado pela Agência Pública, o Twitter afirmou ter tomado medidas de precaução com os perfis apontados pela reportagem com indício de automação. “Em linha com o procedimento adotado quando são identificados proativamente comportamentos suspeitos na plataforma, o Twitter impôs desafios a contas compartilhadas pela reportagem para averiguar se são usuários reais ou contas falsas/automações mal-intencionadas.”
A plataforma também disse estar se esforçando “para combater proativamente tentativas de manipulação das conversas” e que exclui postagens automatizadas do cálculo para os Trending Topics.
Apoiadores do governo usam hashtags para controlar narrativa, diz pesquisador
Uma pesquisa realizada pela AP Exata mostra que o Governo perdeu o controle da narrativa sobre a Amazônia no dia 18 de agosto. A agência de comunicação digital classifica tuítes em 8 emoções-chave (entre elas, medo, confiança, raiva e tristeza) e monitorou mais de 230 mil menções à floresta na rede social desde 17 de julho e identificou aumento de 540% nas menções à Amazônia entre 17 e 21 de agosto.
“O Governo controlava o discurso [no Twitter] até o dia 18, até o dia de São Paulo ficar sob fumaça”, explica Sérgio Denicoli, um dos coordenadores da pesquisa. “Eles ficaram 4 dias em crise tentando impor algumas narrativas. A primeira delas foi a das ONGs, que veio da boca do presidente.” Para ele, outra tentativa foi o discurso de apoio a Ricardo Salles.
Segundo a análise da AP Exata, houve interferência de perfis automatizados e falsos nas menções à Amazônia para mudar o sentimento predominante. “O objetivo é esse, formar opinião. Quando você forma opinião, não precisa mais interferir”, explica. No entanto, as hashtags #AmazôniaSemONGs e #SomosTodosRicardoSalles “não viralizaram da forma que eles queriam. Viralizaram de uma forma artificial.” Para Denicoli, “o Governo conseguiu reverter a situação impondo uma narrativa de soberania nacional. Não foi a narrativa nem de defesa do ministro, nem a narrativa de ONG.” Atualmente, a confiança é o sentimento que predomina nas postagens em relação à Amazônia, seguida pelo medo.
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O QUE É PIOR NESTE GOVERNO

Pedro Doria, O Estado de S.Paulo

Muitas características fazem, do governo atual, ímpar. Gosta de romper com políticas de Estado consolidadas há décadas, por exemplo. Tem dificuldades de lidar com os limites constitucionais impostos ao Poder Executivo. Não se envergonha de nepotismo e tem orgulho de ser obscurantista. Mas, quando passar —e todo governo passa —, uma destas características poderá custar muito, muito caro ao Brasil. É o obscurantismo. Ou, em outras palavras, a repulsa à ciência.

A repulsa à ciência aparece de muitas formas. Quando ministros põem em dúvida aquilo que é consenso entre cientistas, como as mudanças climáticas, é um caso. Ou, então, quando o governo enxerga ideologia em números do IBGE, do Inpe, certamente outros exemplos virão. De uma forma mais ampla, porém, esta recusa da ciência põe em perigo o futuro econômico do Brasil. De duas formas.

A era digital, na qual entramos, é em essência aerada matemática. Os dois braços de avanços tecnológicos nos quais estamos mergulhando —em biotecnologia e em inteligência artificial —têm por pedestal uma matemática muito sofisticada. É ama temática do DNA e ama temática por trás dos softwares capazes de aprender.

Não bastasse, a conclusão de que vivemos um tempo de violentas mudanças climáticas se baseia em modelos matemáticos.

Nunca o Brasil precisou tanto de gente que conhece em profundidade matemática. E isso ocorre justamente quando temos um presidente da República que encontra, nos números, ideologia.

É em cima de conhecimento matemático que produziremos o PIB do futuro. É com base nele que temos a oportunidade de deixar de ser um exportador de commodities e cérebros para nos tornarmos cultivadores de cérebros e exportadores de tecnologia.

Nunca foi tão importante pegar instituições como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), as melhores universidades federais, estaduais e as PUCs e botar, nelas, todo gás. Concentrar nelas o melhor investimento.

Jamais foi tão relevante pegar experimentos como as Olimpíadas da Matemática e expandi-los, para que possamos descobrir desde cedo as melhores cabeças entre os brasileiros mais pobres, para que possamos —enquanto melhoramos o ensino público —pescar essa garotada e já dar ensino de excelência para eles desde cedo. Precisamos de qualidade em quantidade.

É a recusa dos números em plena era dos números que faz este governo olhar para a Amazônia e nela enxergar terra para pasto, para soja e minas diversas. Não vê a biodiversidade, a riqueza genética, a indústria farmacêutica do futuro, os bilhões e trilhões em patentes. Não se toca dos ciclos das chuvas, ignora que inteligência artificial em conjunto com edição genética permite produzir muito mais com muito menos terra.

Ao invés de promover o encontro entre iniciativa privada e professores universitários, de quebrar o preconceito da academia brasileira com o capitalismo do século XXI, o governo estimula o ódio à educação. Quando podia estar criando formas de estimular a geração de patentes e eliminar a burocracia para seu registro, tornar pesquisadores os grandes propulsores da nova riqueza nacional, o Planalto obscurantista os torna inimigos e, em estudantes, enxerga idiotas úteis.

O Vale do Silício existe por causa da Universidade de Stanford. Boston é um hub tecnológico por conta de Harvard e MIT, e Austin está chegando por causa da Universidade do Texas. A China investiu em formar matemáticos e hoje briga com os EUA. A Coreia do Sul. Quantos anos mais perderemos?

Em tempo: senhor presidente, diferentemente do que o senhor sugeriu e sua máquina de memes espalha, jamais fiz qualquer palestra para o governo federal. Muito menos pago pelo PT.
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O JOIO E O TRIGO NO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO

Marina Silva e João Paulo Capobianco, O Estado de S.Paulo

O agronegócio brasileiro enfrentará grandes desafios nos próximos anos. Serão tempos de turbulências causadas pelo chamado “fogo amigo”, ou seja, por seus próprios pares.

Depois do salto propiciado por um ciclo vitorioso de desenvolvimento no campo que permitiu superar seu desenvolvimento tardio, o Brasil deixou a posição de importador de alimentos para se tornar um dos mais dinâmicos produtores e exportadores de produtos da agropecuária do mundo. Nas últimas quatro décadas, a produtividade cresceu a uma taxa anual média de 3,43%, muito superior à americana, de 1,38% ao ano. Nesse período, a produção de grãos saltou de 40,6 milhões para 237,8 milhões de toneladas, contribuindo para garantir o equilíbrio da balança comercial do País.

A façanha que colocou o agronegócio brasileiro na vanguarda da produção mundial se deu, no caso da produção de grãos, em parte pela incorporação das chamadas tecnologias cristalizadas, aquelas que estão nas sementes melhoradas, em equipamentos de precisão e insumos mais eficientes. Entretanto, destacam os maiores especialistas na área, mais importante do que elas foram as tecnologias conhecidas como não cristalizadas (ou não materializadas em produtos de prateleira). Para Eliseu Alves, um dos fundadores e ex-presidente da Embrapa, “o conhecimento sobre sistemas de produção impactou mais a agricultura brasileira do que equipamentos, máquinas e sementes”.

Essa é uma questão central que deve ser considerada quando discutimos o futuro da agropecuária no Brasil. As tecnologias que tratam dos modelos de produção inovadores, como o manejo de pragas, plantio direto, integração lavoura-pecuária-floresta e outras técnicas de agricultura de baixo carbono, por exemplo, são produzidas pelas instituições de pesquisa e encontram dificuldades para chegar aos seus destinatários no campo. Principalmente quando as limitações orçamentárias afetam seu desenvolvimento e a extensão rural.

O desafio do setor, que se encontra no limiar de ruptura com os atuais sistemas de produção no campo por causa da pressão da sociedade, está na incorporação dos novos padrões sustentáveis de produção, e não simplesmente no uso de algum insumo milagroso ou máquina ultramoderna. A cada dia se exige maior conhecimento e respeito às condições de produção de nossos espaços naturais – que incluem o solo, o clima, as fontes de água e a biodiversidade – e o melhor aproveitamento da área que já está disponível para a agropecuária pela remoção da cobertura vegetal original. Há milhões de hectares nessa condição que estão subutilizados, enquanto o desmatamento segue em ritmo extremamente acelerado, como é o caso da pecuária extensiva, responsável por cerca de 80% do desmatamento e uma produtividade muito baixa, de apenas uma cabeça animal por hectare.

A boa notícia é que há muitos atores no campo que já incorporaram a dimensão da sustentabilidade e avançam de forma consistente rumo a uma agropecuária de altíssima produção e compatível com a conservação ambiental. Sistemas de rastreamento da produção, responsabilização pela cadeia de custódia, controle biológico de pragas, combate ao desmatamento, recuperação de áreas degradadas, adesão a programas de redução de emissões e, principalmente, investimentos muito bem-sucedidos no aumento da produtividade passaram a caracterizar parte importante da nossa produção.

A má notícia é que a parcela dos produtores que insiste em ficar no passado está super-representada no Congresso Nacional e no próprio governo federal. Projetos de lei, medidas provisórias e pronunciamentos equivocados surgem quase todos os dias, comprometendo a credibilidade de todo o agronegócio e a própria segurança jurídica necessária à produção. No futuro muito próximo, poderão comprometer também o acesso ao mercado internacional, onde os consumidores, cada vez mais exigentes, pressionam seus governos a não compactuarem com a degradação socioambiental.

A solução para esse impasse não está só em Brasília. Está, sobretudo, no próprio setor. Mais do que pronunciamentos de suas lideranças esclarecidas em prol da produção sustentável, é urgente que os produtores rurais que já incorporaram padrões socioambientais avançados adotem metodologias de certificação de alta credibilidade para mostrarem que seus produtos não são oriundos de processos social e ambientalmente predatórios. Os setores de papel e celulose e de biocombustíveis já estão avançando nessa direção. Falta ao conjunto dos produtores rurais responsáveis mostrar à sociedade a diferença entre o joio e o trigo da agropecuária brasileira.

Ao governo cabe, além do papel de indutor da modernização do setor, combater a cultura da impunidade, que funciona como um poderoso vetor de desincentivo à inovação e de descumprimento da legislação ambiental. Programas como o de Agricultura de Baixo Carbono e o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia precisam ser recuperados e fortalecidos. Produtores certificados por suas boas práticas não podem ser sabotados no mercado pela competição com aqueles que praticam dumpingsocioambiental.

É chegada a hora de o segmento mais moderno e responsável do agronegócio mostrar suas diferenças e estabelecer uma agenda propositiva que envolva governo, academia e ambientalistas, na qual todos ganhem. Um agronegócio econômica, social e ambientalmente sustentável é interesse de todos os brasileiros. Os que se opõem a essa agenda, ainda que discursem a favor do setor, investem contra ele e se configuram como verdadeiros inimigos do desenvolvimento do País.

*Ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008); doutor em ciência ambiental, foi secretário de biodiversidade e secretário executivo do ministério do Meio Ambiente (2003-2008)
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TERRAPLANISTA AMBIENTAL

Bernardo Mello Franco, O GLOBO
Guia do terraplanista ambiental
O terraplanista ambiental não acredita no aquecimento global. Em maio, ele foi a Roma e precisou tirar o sobretudo do fundo da mala. Assim percebeu que os estudos científicos estavam todos errados. Eram parte de uma conspiração politicamente correta para enganá-lo.
Para o terraplanista ambiental, as mudanças climáticas não passam de uma falácia. Foram inventadas por ideólogos do marxismo cultural, que dominam as Nações Unidas, as ONGs e a fundação do George Soros.
O terraplanista ambiental não acredita nas universidades, velhos redutos de esquerdopatas, maconheiros e viúvas do Fidel. Ele também não lê jornais e duvida de tudo o que sai na imprensa. Prefere se informar pelo WhatsApp e pelo curso on-line do professor Olavo.
Nem as imagens das queimadas convenceram o terraplanista ambiental de que a Amazônia está em risco. Ele viu no Facebook que as fotos são manipuladas e que os satélites do Inpe foram programados pela Venezuela. Na verdade, as árvores nunca estiveram tão verdes e saudáveis. Quem insiste em dizer o contrário só pode ter sido doutrinado pelo método Paulo Freire.
O terraplanista ambiental está esperando a próxima passeata para vestir sua camisa amarela e bradar contra a indústria das demarcações. Ele leu no grupo da família que os índios não falam a nossa língua, mas são bilionários e controlam 14% do nosso território. Estão atrapalhando o país, assim como os quilombolas, os fiscais do Ibama e o pessoal do Bolsa Família.
O fim do Fundo Amazônia não comoveu o terraplanista ambiental. Ele já sabe que a Noruega mata baleias, que o Macron é de esquerda (também, com aquela mulher …) e que a Merkel é uma comunista infiltrada na direita alemã. Os europeus são assim mesmo: se fingem de bonzinhos, mas só querem tomar o nosso nióbio.
O terraplanista ambiental é esperto. Não entra na onda de militontos que nunca plantaram um pé de alface e agora querem defendera Amazônia. Quem cai nessa conversa deve acreditarem qualquer coisa: que a Terra é redonda, que o homem pisou na Lua, que o presidente anda mentindo para a população. É gente subversiva, antipatriótica, que só sabe torcer contra o Brasil.
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GOVERNO JOHNNY BRAVO

Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo
De todas as declarações polêmicas que Jair Bolsonaro já deu nos seus oito meses de mandato, poucas competem em nonsense com uma do dia 6 deste mês. Questionado sobre a indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington, se irritou com a imprensa e soltou essa: “A imprensa tem de entender que eu, Johnny Bravo, Jair Bolsonaro, ganhou, porra!”.
Exibir apelidos privados é algo que a maioria das pessoas procura evitar, pelo natural constrangimento. Bolsonaro não só demonstrou orgulho como repetiu a dose em outra ocasião – o que torna um pouco mais difícil que ele diga, agora, que não disse o que disse, outra de suas bossas recentes.
Johnny Bravo é um personagem dos anos 1990, do Cartoon Network. Seu character design é o de um sujeito marombado, narcisista, machista e burro. O que já torna estranho o orgulho de evocar a alcunha.
Há, inclusive, um episódio da segunda temporada em que Johnny Bravo ascende ao poder, meio por acaso. Todos os políticos da cidade são acometidos de uma intoxicação alimentar, e a legislação local determina que o “maior idiota da cidade” assuma.
Bravo, então, passa a governar segundo critérios estritamente pessoais: destrói uma livraria para construir uma esfinge com seu rosto, decreta que funcionárias devem trabalhar de biquíni, transforma um parque público num estacionamento e prende os oposicionistas. Até ser destituído.
O estilo de Bolsonaro guarda, de fato, semelhanças com o do topetudo. Suas declarações desde que revogou a comunicação institucional e inventou a paradinha do Alvorada versaram sobre temas como cocô, ataques à imprensa e à ciência, investida contra o pai assassinado do presidente da OAB e a acusação de que ONGs queimam a Amazônia.
Ao focar na exploração de terras indígenas na reunião de ontem dos governadores da Amazônia que deveria tratar da emergência ambiental, Bolsonaro fez com que os presentes saíssem de lá com a certeza de que sua pauta pessoal sempre estará acima das questões de Estado. “Foi bastante constrangedor ver o descolamento do presidente da realidade”, disse à Coluna um dos participantes (que, atenção, não era o comunista Flávio Dino).
Assim, não é de estranhar que ele se abespinhe quando questiona do sobre a indicação do filho, e que ache normal dar o “filé” ao rebento. A sem-cerimônia com que isso é defendido por Bolsonaro Bravo, no entanto, começa a preocupar os que têm de conviver institucionalmente com ele – prefeitos, governadores, funcionários públicos, congressistas, procuradores, ministros do Supremo… A lista é enorme, e ninguém fora do círculo dos puxa-sacos está disposto a aceitar coisas que seriam caricatas até em desenho animado, como ofender a mulher de um chefe de Estado e recusar dinheiro internacional por birra.
MEIO AMBIENTE: Ex-ministros pedirão a Maia ação do Congresso na crise
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, receberá hoje ex-ministros do Meio Ambiente, o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e representantes do setor produtivo, que entregarão a ele carta pedindo a interferência do Congresso na crise ambiental desencadeada pelo desmatamento e agravada pelas queimadas na Amazônia. A entrada de Maia no debate na semana passada irritou Bolsonaro, que sugeriu que, se ele quer ajudar, deve destinar recursos do Fundo Partidário para conter as queimadas.
DINHEIRO SIM: Doria faz road show na Alemanha em busca de investimentos
E Bolsonaro acabou dando ao governador João Doria, seu potencial adversário em 2022, mais uma chance de fazer um contraponto a seu estilo. Enquanto o presidente se indispôs com a Alemanha (e Noruega, e França), o governador paulista inicia hoje um giro pelo país, com previsão de anúncios de investimentos de R$ 1 bilhão e criação de 400 novos empregos.
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CRIATIVIDADE DA SEGUNDONA

Merval Pereira, O GLOBO
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal exerceu o direito de errar por último, como Rui Barbosa definiu ser prerrogativa do STF. Mas o Supremo é composto por 11 ministros, onze ilhas, na definição de Sepulveda Pertence, “Os Onze” retratados com maestria pelo livro desse nome dos jornalistas Felipe Recondo e Luis Weber.
Portanto, os três votos que inovaram a interpretação da lei para anular o primeiro julgamento da Lava-Jato, usando uma criatividade que até o momento era atribuída apenas ao “direito de Curitiba”, na expressão jocosa do ministro Gilmar Mendes, não representam a opinião do pleno, e em algum momento o caso deverá ser enfrentado pelo conjunto do Supremo.
Ou então a própria Segunda Turma, diante da má repercussão da medida na opinião pública, pode explicitar no acórdão que os efeitos da decisão só se produzem nos processos posteriores, não tendo efeito retroativo para os casos em que a defesa não alegou cerceamento em recurso ainda na primeira instância.
Essa interpretação de que os réus delatores são parte da acusação, e por isso o réu delatado deve ter o direito de se defender por ultimo, deve servir para basear pedidos de anulação de uma série de processos, pois nunca os juízes separaram delatores e delatados, sempre considerados réus igualmente.
A anulação com base nessa nova interpretação da Segunda Turma, porém, só seria possível em situações como a de Bendine, em que a defesa dos réus pediu que falassem depois dos delatores. Os que assim fizeram, antes da primeira condenação, tiveram seus recursos negados pelo juiz de primeira instância, pelo TRF-4 e pelo STJ, e agora podem ser beneficiados.
Como salientei ontem, o advogado Cristiano Zanin não fez esse recurso no julgamento de primeira instância nos dois julgamentos em que Lula foi condenado, o do triplex, e o do sítio de Atibaia, mas tenta se aproveitar da nova interpretação no julgamento em curso do processo sobre o terreno do Instituto Lula dado pela Odebrecht.
A decisão do juiz Luiz Antonio Bonat ainda não foi divulgada mas, como de praxe, ele deu aos réus o mesmo prazo, fossem delatores ou não. Como o julgamento não terminou na primeira instância, basta que o juiz que substituiu Moro siga a nova instrução do Supremo, refazendo essa parte do processo, concedendo à defesa de Lula o direito de ser a última a falar.
A única possibilidade de que a decisão da Segunda Turma atinja a todos os condenados seria mais uma interpretação criativa.
Devido à controvérsia que a decisão causou, era provável que o recurso da Procuradoria-Geral da República fosse encaminhado pelo relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, para decisão do plenário do Supremo. Foi o que ele fez, ontem à noite, usando outro processo.
Será a única maneira de esclarecer se essa criatividade jurídica conta com o respaldo da maioria do STF. Se a Segunda Turma recebesse o recurso, dificilmente o resultado seria diferente. Pode até ser que a ministra Carmem Lucia, que surpreendeu a todos votando junto com Gilmar Mendes e Lewandowski, defendesse a tese de que a decisão se restringe ao caso de Bendini. Os dois outros teriam interpretação diferente, provavelmente, e o resultado seria um empate de 2 a 2, que beneficiaria o réu.
O ministro Celso de Mello está internado, e provavelmente não retornará ao trabalho tão cedo. A defesa de Lula poderia se aproveitar dessa baixa na Segunda Turma para apresentar o recurso, alargando sua interpretação. Esta é a primeira grande derrota da Operação Lava-Jato no Supremo, pois resultou na anulação de uma condenação.
As outras derrotas, como o fim da condução coercitiva, ou a contenção da prisão preventiva, foram superadas na prática do dia a dia. Agora, depois da divulgação de diálogos entre Sergio Moro e Dallagnol, e entre os procuradores de Curitiba entre si, foram revelados detalhes pessoais dos investigadores que reforçaram uma rejeição que já havia latente em muitos dos ministros do Supremo, e expressada por outros, sendo o mais contundente o ministro Gilmar Mendes.
Mesmo que as conversas não revelem nenhuma irregularidade jurídica nas decisões tomadas, mostram uma faceta nada edificante das investigações. São questões morais que não deveriam interferir no julgamento, mas interferem. Muitos atribuem a esse incômodo o voto da ministra Carmem Lucia.
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A PACIFICAÇÃO DO PAÍS

Michel Temer, O Estado de S.Paulo
Pacificar o País significa vê-lo unido. Não nas ideias, nem nos desejos e aspirações de cada setor da nacionalidade. Pacificar não significa que não haja situação e oposição. Não significa que não haja disputas corporativas. Significa, contudo, que todos terão objetivo único: o crescimento do País e o desenvolvimento do seu povo.
Essa afirmação autoriza diferença de conduta, mas nunca da ação. Esta há de ser unitária em defesa do País. Aliás, uma das notas que caracterizam o Estado é a soberania. E esta é definida pela vontade do povo, único titular do poder, para traçar o seu destino.
Para chegar a esse desiderato o primeiro passo é cumprir o disposto na Constituição federal. Afinal, o Direito existe para regular as relações sociais e para que cada um saiba quais são os seus direitos e deveres. É daí que decorre a chamada segurança jurídica. E o que é que a Constituição estabelece como ordem imperativa para todos os nacionais?
Vamos ao seu preâmbulo, onde é dito que o Estado democrático visa a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, especialmente a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Focalizo a palavra fraterno, que não tem significado familiar, entre irmãos, mas o significado que lhe emprestou a Revolução Francesa quando cunhou o dístico “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Fraternidade significa pessoas que se harmonizam, que estão juntas para promover o bem comum. Nunca para litigar, mas sim a busca de coincidências nas ações que pratiquem. É no preâmbulo que se diz que esta sociedade deve fundar-se na harmonia social. Harmônico é aquilo que é bem ordenado entre as partes de um todo, é a concórdia, é a paz e amizade entre pessoas.
Mais ainda: é no preâmbulo que se determina a solução pacífica das controvérsias na ordem interna e internacional. Portanto, nele a palavra paz é usada em dois momentos, já que harmonia tem o significado de concórdia.
Abandonemos o preâmbulo. Examinemos, ainda que rapidamente, as várias passagens da Constituição que indicam ser o Brasil país vocacionado para a paz e harmonia, interna e internacionalmente. O artigo 3.º, inciso IV, manda promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Seja: unam-se todos sem divisões. E é dessa unidade que falamos no início do artigo, até porque a eliminação do preconceito significa fraternização e paz entre pessoas. Significa a paz interna do País.
Já nas relações internacionais, o artigo 4.º determina que o Brasil deve reger-se por princípios, dentre outros, igualdade entre os Estados, o que significa obediência à soberania de cada um deles; defesa da paz e solução pacífica dos conflitos. Mais uma vez, no plano mundial, a paz e a solução pacífica são determinações constitucionais. Mas não fica aí.
Manda que o Brasil busque a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (Constituição federal, artigo 4º, parágrafo único). Já tínhamos o Mercosul quando, tempos depois, nasceu a Aliança para o Pacífico. Formatou-se, por minha iniciativa, no México, uma aliança entre essas organizações, sacramentada solenemente. Ao mesmo tempo trabalhamos, e o atual governo finalizou, as negociações do Mercosul com a União Europeia. Registro esses fatos porque a aliança sólida entre nações é elemento fundamental para o cumprimento do preceito constitucional determinador da paz e da solução pacífica de controvérsias.
No plano internacional, participei de várias reuniões que pretendiam acordos multinacionais com vista a impedir a utilização de artefatos nucleares ou energia atômica para fins bélicos. No Brasil, a Constituição determina que tais recursos só podem ser utilizados para fins pacíficos (Constituição federal, artigo 21, XXIII, letra a). Mais uma vez, paz.
Também no tocante aos direitos individuais, tema fundamental para a paz entre os indivíduos, a nossa estrutura constitucional é muito clara ao definir quais as competências de cada Poder e quais são os direitos individuais amplamente listados no artigo 5.º da nossa Carta Magna. Também arrola os direitos sociais, para que nenhum ato infraconstitucional possa violá-los. Ressalte-se que o cumprimento dos individuais e dos sociais é o fundamento para a tranquilidade dos indivíduos e da sociedade. Qualquer desvio é gerador de instabilidade, assim como o descumprimento da ideia de que cada Poder tem uma chefia determinada que é, sempre, a palavra final de sua organização.
Poderia alongar-me no exame da Constituição para revelar a sabedoria do povo brasileiro que determinou à Constituinte de 1988 a harmonização jurídica das instituições, que muitas vezes é maculada pela atividade de agentes públicos. Não cabe neste breve artigo o exame de toda a Lei Maior. Apenas exemplos, tal como os dei.
Por fim, este escrito tem como linha condutora o cumprimento rigoroso da ordem jurídica. Mas não poderia ficar sem uma sugestão, a meu ver, indispensável: a de que se construa um grande pacto político com vista à pacificação interna do País e à paz nas suas relações internacionais. Isso porque as relações, sejam governamentais ou privadas, andam tão tumultuadas que se impõe esse concerto.
O presidente da República, com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal podem articular-se, como já fizeram em passado recente, para convidar presidentes e líderes dos partidos, governadores, sindicalistas e empresários para esse pacto nacional cujo objetivo é a pacificação nos termos descritos no início deste artigo. Recorde-se o Pacto de Moncloa. Promova-se um Pacto do Alvorada.
*Advogado, professor de Direito Constitucional, foi presidente da República
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quinta-feira, 29 de agosto de 2019

LÍDERES POPULISTAS

Da Folha de S.Paulo

Líderes populistas avançam, e a política reage
Líderes populistas não gostam de conviver com instituições democráticas por uma razão simples: elas servem como anteparo à concentração de poderes nas mãos desses indivíduos. Num só dia, a Europa deu duas lições de como a saúde da política é crucial para evitar alguns delírios de autoritarismo.
A manobra de Boris Johnson para atar as mãos do Parlamento e forçar a saída do Reino Unido da União Europeia foi recebida com protestos nas ruas e até no partido do primeiro-ministro. A decisão de suspender parte do Legislativo por cinco semanas foi chamada de “profundamente antidemocrática” pelo ex-ministro conservador Phillip Hammond.
Eleito em julho, Johnson assumiu a missão de aplicar o brexit a qualquer custo. A interrupção do trabalho do Parlamento, sob pretexto de ganhar tempo para elaborar uma nova agenda para o país, é vista como uma virada de mesa violenta.
A ruptura com a União Europeia foi aprovada em plebiscito por um placar de 52% a 48%, mas não houve acordo entre os políticos sobre os parâmetros dessa saída. O primeiro-ministro argumenta que o Parlamento impediu os últimos governos de levarem a cabo a vontade popular.
Alguns políticos britânicos chamaram o movimento de Johnson de “tentativa de golpe”. Agora, eles ameaçam aplicar um voto de desconfiança para derrubá-lo.
Também nesta quarta (28), a Itália deu uma resposta aos avanços de Matteo Salvini. O político de extrema-direita dissolveu uma aliança com o governo e pediu novas eleições para que a população lhe desse “plenos poderes”. Dois partidos rivais fizeram um acordo, até então considerado improvável, para barrá-lo.
Muitos líderes tentam se vender como os únicos e mais fervorosos defensores do povo, escreveu o cientista político Yascha Mounk sobre o caso britânico. Eles agem para deslegitimar instituições que podem limitar seus poderes. “É por isso que populistas se voltam tantas vezes contra tradições democráticas duradouras”, completou.
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TACA FOGO

Eugênio Bucci,  O Estado de S.Paulo

Consta que o documentário russo-soviético O Fascismo de Todos os Dias, de Mikhail Romm, lançado em 1965, foi visto por mais de 40 milhões de espectadores. Se a plateia foi mesmo tão grande, é merecido. Montado a partir de imagens cinematográficas originais da propaganda nazista, o filme reconstitui a formação do que chama “fascismo alemão” e consegue um resultado tão esclarecedor quanto apavorante.

Preliminarmente, cabe aqui um reparo sobre o título da obra. Classificar como “fascismo” a tirania liderada por Adolf Hitler talvez não prime pela melhor precisão histórica. O horror promovido pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães não foi a mesma coisa que a autocracia de Mussolini. Muitos estudos – os de Hannah Arendt entre eles – já detectaram distinções estruturais entre nazismo e fascismo. O primeiro implementou o genocídio como procedimento administrativo do Estado; o segundo, não. No primeiro, o Estado de vigilância total era empregado para eliminar desafetos na cúpula do regime; no segundo, o Estado policial estacionou em estágios mais rudimentares. O primeiro foi a encarnação paradigmática do totalitarismo, interpelando cada cidadão como um agente de segurança a serviço do Terceiro Reich; o segundo realizou-se como exacerbação do autoritarismo.

Entretanto, a despeito das dessemelhanças, os dois modelos guardam em comum traços essenciais. Tanto no nazismo como no fascismo, pulsam as tradições regressivas do cesarismo e do bonapartismo, com forte ojeriza aos marcos civilizatórios do Ocidente e virulenta negação das liberdades e dos direitos humanos. Principalmente, nos dois as massas inflamadas se encarregam de oprimir os dissidentes.

Nessa perspectiva, o título que Mikhail Romm deu ao seu documentário tem pertinência. “O fascismo de todos os dias” significa algo como “o fascismo dos comuns”, “o fascismo ordinário” ou “o fascismo cotidiano”. O foco do cineasta – que atua também como narrador, sempre em off – está na conversão das massas em promotoras ativas dos ideários obscurantistas que seus ditadores adorados procuraram transformar em lei fundamental da humanidade. Vistos por essa lente, nazismo e fascismo são irmãos, análogos, equivalentes. Portanto, Romm pode ter razão.

O documentário, em preto e branco, é dividido em capítulos. Na abertura do Capítulo V, lemos, como epígrafe, uma frase atribuída a Adolf Hitler: “Qualquer cabo pode virar professor, mas não é qualquer professor que pode virar cabo”. Na sequência, as imagens estarrecem. São cenas noturnas, filmadas pela máquina de propaganda do Führer. Num descampado ao ar livre, algo como um pátio gigantesco ou um estádio infinito, jovens perfilados em colunas militares, fardados, carregam tochas acesas. A coreografia em meio à treva faz as chamas desenharem rios de fogo, como lava escorrendo. Ao fundo, o diretor-narrador apresenta sua leitura do que se passa na tela.

“Durante três dias após a chegada de Hitler ao poder, aconteceram estas Marchas de Tochas, Fackelzug. Eu olho para esse rio de fogo e penso: qual era o verdadeiro, o profundo sentido desse espetáculo ígneo? Bem, claro, ele mostrava o poder da nova ordem. Intimidava, exaltava as almas simples. Mas o principal dessas Fackelzug é que elas ajudavam a transformar o homem em selvagem. Aliás, transformá-lo em selvagem numa situação solene. Assim, ao tornar-se selvagem, ele se sentiria um herói. E pronto para qualquer tipo de brutalidade, ele se sentiria muito útil ao Terceiro Reich: necessário, acima de tudo, para enfrentar tudo o que se opunha ao nazismo, tudo o que ficasse em seu caminho.”

Nessa altura, as tochas, que são centenas ou milhares, começam a formar uma suástica sobre a escuridão. Mikhail Romm comenta: “Não me posso resignar à ideia de que, na Alemanha, país de grande cultura, tinham chegado ao poder pessoas semianalfabetas, obtusas e presunçosas, que fizeram qualquer coisa para transformar o homem num selvagem exaltado”.

Seguem-se cenas de livros sendo incinerados nos pátios de universidades. Clássicos da literatura universal, de Leon Tolstoi a Thomas Mann, foram queimados nesses rituais. A gramática cinematográfica adotada por Romm nos mostra que as labaredas do nazismo – ou do fascismo, em sentido amplo – ardiam para reduzir a cultura a cinzas fumegantes.

Os cultores de Adolf Hitler e de Benito Mussolini – ignaros, intolerantes e brutos – sentiam-se autorizados por seus chefes a empregar a força física contra o que os apavorava e que eles, sem terem consciência do próprio pavor, transformavam no objeto de seu ódio. De cabeça erguida, como se fossem “heróis”, atearam fogo às ideias, às letras, ao desejo. Destroçaram bibliotecas, perseguiram pensadores e jornalistas, censuraram o que Hitler chamava de “arte degenerada”, espancaram mulheres livres, mataram homossexuais. Saíram às ruas como bestas, queimando suas bruxas imaginárias em seus infernos interiores e ergueram ditaduras sem limites.

Você pode até implicar com o diretor do filme, que não esboçou uma só crítica ao stalinismo, uma vertente de totalitarismo. Romm foi um expoente da cinematografia oficial soviética e nunca peitou o regime. Mesmo assim, há quem diga que nesse filme, subliminarmente, ele teria denunciado o “fascismo cotidiano” da União Soviética. Sabe-se lá.

De um jeito ou de outro, O Fascismo de Todos os Dias segue sendo uma reflexão arguta, tragicamente atual, que nos convida a pensar sobre o que a mera objetividade não nos permite enxergar. No velho documentário soviético vislumbramos o itinerário oculto pelo qual as tochas que glorificavam Hitler se arrastaram da Alemanha dos anos 1930 para os nossos dias e, agora, carregadas por anônimos que se sentem “heróis” em guerra contra índios, ecologistas, artistas e intelectuais, tacam fogo na Floresta Amazônica.

*Jornalista, é professor da ECA-USP
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