quarta-feira, 30 de setembro de 2020

RISCO DE INSOLVÊNCIA

Editorial Folha de S.Paulo

Avesso a tomar decisões que contrariem grupos de interesse, inebriado com sua popularidade e obcecado pela reeleição, o presidente Jair Bolsonaro conduz o país no rumo da instabilidade econômica, que poderá resultar em inflação crescente e mais recessão.

A proposta de financiar um novo programa social batizado de Renda Cidadã com recursos reservados para o pagamento de precatórios judiciais e verbas da educação expõe a desfaçatez de um governo incapaz de lidar com a situação.

Deixar de honrar precatórios, que representam dívidas líquidas e certas, é dar calote em aposentados, servidores públicos e outros na fila de credores do Tesouro. Adiar sua quitação, para aplicar o dinheiro em outros fins, é pedalar a despesa e aumentar a dívida pública.

Anunciada com fanfarra por Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, como resultado de um acordo com os líderes partidários no Congresso, a proposta tresloucada foi recebida com enorme desconfiança em toda parte.

O efeito imediato foi reduzir ainda mais a credibilidade da equipe liderada por Guedes, que se mostra inepto quando tenta persuadir o presidente a fazer escolhas difíceis e agora parece inclinado a contornar as resistências com malabarismo.

No mercado financeiro, as taxas de juros de longo prazo dispararam nas horas que se seguiram ao anúncio, indicando que os investidores cobrarão mais caro para financiar o governo se ele continuar gastando sem controle e se endividando.

Mantido o teto constitucional dos gastos públicos, não há meio de custear a ampliação do Bolsa Família como o presidente deseja sem abater outras despesas. Bolsonaro não quer mexer no teto e rejeitou sugestão anterior da equipe econômica, que incluía corte de benefícios sociais e congelamento de pensões e aposentadorias.

O presidente poderia abrir espaço no Orçamento para novos gastos se demonstrasse empenho para acelerar reformas em discussão no Congresso, em especial a administrativa. Mas falta a Bolsonaro a convicção necessária para fazê-lo.

O Brasil já ostenta o maior passivo do mundo entre os países emergentes, com uma dívida pública que deve alcançar 95% do PIB (Produto Interno Bruto) neste ano. A desconfiança dos investidores torna sua gestão mais difícil e custosa.

A desvalorização do real frente ao dólar pode fazer os preços voltarem a subir, obrigando o Banco Central a aumentar os juros para evitar que a inflação estoure a meta oficial.

Assim, o descompromisso do governo com o equilíbrio das contas públicas aproxima o país do risco de insolvência financeira e ameaça a retomada do crescimento econômico nos próximos anos, com efeitos dramáticos para todos.

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MINISTÉRIO DO MAU AMBIENTE

Editorial O Estado de S.Paulo

Apesar das pressões que vêm de todos os lados, da esfera pública ou privada, nacional ou internacional, o governo persiste no desmantelamento da área ambiental. No afogadilho, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aprovou junto ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) a revogação de duas resoluções sobre áreas de preservação litorâneas. Isso deixará as áreas de proteção permanente de manguezais e restingas do litoral brasileiro sem qualquer proteção legal, abrindo espaço à construção nas faixas de vegetação das praias e à ocupação dos mangues para a produção de camarão.

O governo argumenta que as resoluções foram abarcadas por leis posteriores, como o Código Florestal. Mas o argumento é espúrio. As resoluções são hoje os únicos instrumentos legais que protegem essas áreas. Como disse em nota a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), a revogação “ofende o princípio do não retrocesso, o qual permite aos Poderes da República apenas avanços na proteção ambiental, ao passo que atos normativos contrários à evolução na proteção ambiental propiciam mais insegurança jurídica e instabilidade institucional”.

Como se não bastasse, o órgão revogou ainda outra resolução que estabelece critérios federais para licenciamento ambiental de empreendimentos de irrigação. O ministro também conseguiu liberação da queima de resíduos de agrotóxicos sem qualquer tratamento ou destinação.

“Tudo foi pautado em regime de urgência”, apontou o presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, Carlos Bocuhy. “Qual é a urgência de tomar decisões tão importantes em tão pouco tempo e sem que esses temas sejam submetidos a estudos, por meio de câmaras técnicas?”

O Conama, dada a sua prerrogativa deliberativa, deveria ser o foro adequado para promover o debate público e técnico destas questões. Mas o próprio órgão foi esfacelado: seguindo um procedimento sistemático de desmonte dos Conselhos Nacionais, no ano passado o governo determinou a redução de seus representantes de 96 para 23. Além disso, reduziu a proporção de representantes civis e dos Estados e municípios. Na prática, os votos estão concentrados nas mãos do governo e de representantes do setor produtivo.

Propostas tão delicadas, avançadas de maneira arbitrária e atabalhoada, só contribuem para debilitar a credibilidade do Conama e suscitar suspeitas de má-fé por parte do governo. Como adverte a Abrampa, as resoluções podem levar a um “galopante processo de judicialização” em detrimento da segurança jurídica. Um grupo de parlamentares já se mobilizou para solicitar à Justiça tutela antecipada para sobrestar quaisquer deliberações do órgão em face das resoluções.

O pior é que tudo se passa como se o Ministério do Meio Ambiente não tivesse pautas urgentes a tratar. O Pantanal queima. A Amazônia queima. E os investidores fogem.

A única coisa de que não se pode acusar o ministro Salles é de incoerência. Na infame reunião ministerial que veio a público no início da pandemia, o ministro propalou que era preciso aproveitar o pânico social como cortina de fumaça para “passar a boiada”, quer dizer, aprovar medidas controversas na surdina.

A insensibilidade – quando não a franca hostilidade – do governo às causas ambientais é de tal ordem que até a tirada popular de “reclamar com o papa” foi subvertida. O próprio papa reclamou, em conferência às Nações Unidas, do descaso com o meio ambiente, em especial da “perigosa situação da Amazônia e seus povos indígenas”. Nem sequer se pode dizer que o governo faz “ouvidos de mercador”, pois os mercadores, investidores e autoridades internacionais alertam a plenos pulmões que as consequências para a econômica nacional serão severas.

Os outros Poderes não podem se dar ao luxo de ignorar essas advertências. O desmonte do Conama já foi contestado no STF há mais de um ano, mas a pauta está engavetada. Quanto às resoluções revogadas, cabe ao Congresso restaurá-las imediatamente por decreto legislativo.

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A VAGA NO SUPREMO

Editorial O Estado de S.Paulo

Em novembro, o ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal (STF) completará 75 anos, idade que dá ensejo à aposentadoria compulsória. No entanto, o decano do STF requereu aposentadoria voluntária a partir do dia 13 de outubro. “Razões estritas (e supervenientes) de ordem médica tornaram necessário, mais do que meramente recomendável, que eu antecipasse a minha aposentadoria, que requeri, formalmente, no dia 22 de setembro de 2020”, disse Celso de Mello ao Estado. Com isso, o preenchimento de sua vaga no Supremo pode ter sido antecipado em um mês.

Sempre, mas especialmente em momentos como o atual, o procedimento e as condições para a escolha de um novo ministro devem ser rigorosamente respeitados. “O STF compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”, diz o art. 101 da Constituição.

Mais do que meros requisitos formais, são condições para o bom funcionamento do Supremo. Por isso, a Constituição estabelece que “os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal”. O Poder Executivo indica o nome e o Legislativo, por meio do Senado, faz o controle dos requisitos.

Critica-se, com frequência, o procedimento para o preenchimento das vagas do Supremo. Ao longo dos anos, foram apresentadas no Congresso muitas propostas de mudança do texto constitucional. Naturalmente, todo processo tem falhas. No entanto, como dissemos neste espaço, “esse sistema funciona bem desde que o Senado compreenda que as sabatinas não são protocolares nem devem ser feitas em clima de camaradagem e com roteiro prévio. Quando levadas a sério, são excelente antídoto para barrar a entrada numa corte suprema de indicados medíocres, sem currículo e biografia”.

O Senado pode desde já contribuir para uma escolha constitucionalmente adequada do sucessor do ministro Celso de Mello, deixando claro ao presidente Jair Bolsonaro que não aceitará uma indicação fora dos requisitos previstos. Por exemplo, de que não validará nomes que, em matéria de saber jurídico, são o que Ruy Barbosa chamava de “nulidades”.

A atuação responsável do Senado pode ajudar Jair Bolsonaro a se recordar do que ocorreu no ano passado, quando ele manifestou o desejo de nomear o filho Eduardo como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. A competência privativa do presidente da República de indicar um nome para determinado cargo não significa autorização para agir arbitrariamente. É preciso respeitar os requisitos constitucionais de cada cargo.

As condições para ministro do Supremo estão expressas: reputação ilibada e notável saber jurídico. Os próprios adjetivos empregados pela Constituição – ilibada e notável – indicam que não deve haver nenhuma dúvida quanto ao caráter e ao conhecimento jurídico do indicado. Ou seja, o respeito à Constituição é incompatível com qualquer tipo de transigência na aferição dos dois requisitos para o preenchimento de uma vaga no Supremo.

Desde o início do governo, o presidente Bolsonaro já mostrou ter dificuldades de compreensão sobre a escolha e o papel de um ministro do Supremo. Por exemplo, em maio do ano passado, Jair Bolsonaro disse, em entrevista à Rádio Bandeirantes: “Eu fiz um compromisso com ele (Sérgio Moro), porque ele abriu mão de 22 anos de magistratura. Eu falei: a primeira vaga que tiver lá, vai estar à sua disposição”. Mais recentemente, Bolsonaro falou que indicaria um ministro “terrivelmente evangélico”. Também já manifestou o desejo de que o futuro ministro do Supremo defenda na Corte o governo.

O papel do Supremo é defender a Constituição. E o papel do Senado é defender o Supremo, garantindo a independência da Corte. Não basta ter a confiança do presidente da República. O indicado deve ter reputação ilibada e notável saber jurídico. Deve ser um cidadão respeitável e sério.

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A CHANCHADA DA RENDA CIDADÃ

Editorial O Estado de S.Paulo

Calote, pedalada, burla, drible e contabilidade criativa foram algumas das palavras mais ouvidas, no mercado, quando se anunciou a fórmula escolhida para financiar a Renda Cidadã, a nova bandeira eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. A imprensa também registrou avaliações como “calote temporário” e “medida estarrecedora”. Conhecida a proposta, o dólar chegou a R$ 5,67, um novo recorde, revertido quando o Banco Central entrou no jogo vendendo moeda americana. A Bolsa deixou a coreografia internacional e encerrou o dia com um tombo de 2,41%.

A proposta assustadora foi anunciada depois de uma reunião do presidente, no Palácio da Alvorada, com parlamentares aliados e ministros, incluído o da Economia, Paulo Guedes. O apoio de Guedes ao esquema demonstra a função real, no atual governo, de um Ministério para assuntos econômicos: cumprir ordens, sem levar em conta prioridade, conveniência econômica e financeira e até critérios de responsabilidade fiscal.

A fórmula para acomodar o novo programa social, substituto do Bolsa Família, é uma combinação perversa de dois truques. Em primeiro lugar, pagamentos previstos de precatórios podem ser limitados, isto é, reduzidos. Em segundo, uma parcela do Fundeb poderá ser convertida em Renda Cidadã. Este componente, se aceito, pode proporcionar uma vantagem especial, por ser isento do teto de gastos. O teto limita o aumento da despesa à inflação tomada como baliza da lei orçamentária.

Calote ou ameaça de calote, a ideia de reduzir o pagamento de precatórios foi criticada pelo ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, por políticos, por investidores do mercado e por especialistas em contas públicas. Precatórios correspondem a dívidas do governo reconhecidas pela Justiça. São obrigações financeiras vinculadas a ordens judiciais. Limitar seu pagamento corresponde, em primeiro lugar, a uma escolha de quem terá prioridade no ressarcimento. Isso envolve questões de decência. Envolve também problemas de legalidade.

A questão da moralidade é evidente, mas adiar o pagamento, nesse caso, pode ser também um crime de responsabilidade, análogo às pedaladas do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, como observou o economista Carlos Kawall, diretor da Asa Investments e ex-secretário do Tesouro Nacional. No caso da presidente petista, a violação da lei motivou um processo político encerrado com impeachment, isto é, com perda do cargo.

Igualmente indefensável é o uso de recursos do Fundeb para financiar a Renda Cidadã. A tentativa de usar esse fundo para burlar o teto de gastos já havia sido rejeitada pelo Congresso. Além da manobra para romper o limite, haveria um claro desvio de finalidade de uma importante fonte de financiamento educacional. Mas a fórmula envolve outras importantes questões legais.

Para criar um gasto permanente, o poder público deve encontrar uma fonte permanente de receita ou eliminar, também de forma duradoura, alguma despesa de montante compatível com a nova necessidade. Nenhuma dessas condições se verifica. Adiar o pagamento de precatórios apenas empurra a despesa com a barriga, sem eliminá-la, como observa o diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto. É fácil perceber esse fato mesmo sem o auxílio de um especialista em contas públicas.

Meter a mão no Fundeb também pode proporcionar apenas uma solução temporária, fora do padrão da Lei de Responsabilidade Fiscal. O arranjo defendido pelo presidente, por seus aliados e pelo ministro da Economia é apenas uma coleção de remendos de baixíssima qualidade, digna de malandragens das velhas chanchadas.

Chanchadas, no entanto, podiam ser divertidas, eram inofensivas e envolviam competência técnica e artística. Nenhuma dessas qualidades aparece na fórmula para financiar a bandeira eleitoral do presidente Bolsonaro. “O Brasil é um país sério”, disse o ministro Guedes, tentando defender o indefensável. Seria bom se o Executivo também mostrasse alguma seriedade ao cuidar da economia e do dinheiro público.

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terça-feira, 29 de setembro de 2020

O MEC E O EXTERMINADOR DO FUTURO

Cristina Sera, Folha de S.Paulo

Quando o ministro da Educação, Milton Ribeiro, foi nomeado, em julho, a imprensa chamou a atenção para um vídeo de 2016 no YouTube em que ele, também pastor presbiteriano, prega aos fieis sobre o uso da “dor” como método pedagógico para disciplinar as crianças.

Depois de dois meses de silêncio, Ribeiro deu uma entrevista a “O Estado de S. Paulo” e, pela quantidade de disparates que falou, procurei o vídeo para melhor entender o personagem e o assisti na íntegra. Basicamente, o pastor considera que crianças são pequenos demônios, contaminados pelo pecado, e cabe aos pais aplicar “a vara da disciplina” para corrigi-los. Diz o reverendo: “Há uma inclinação na vida da criança para o pecado, para a coisa errada”. Daí, segundo ele, a necessidade da violência.

Ele segue com provérbios da Bíblia, como este: “Tu a fustigarás [a criança] com a vara e livrarás a sua alma do inferno”. Para que não haja dúvida, o dicionário aponta como sinônimos de fustigar: chicotear, açoitar, surrar, flagelar, machucar, espancar, entre outros.

O pastor insiste: “Castiga a teu filho, enquanto há esperança, mas não te excedas a ponto de matá-lo (…)”; “Não estou aqui dando uma aula de espancamento infantil. Mas a vara da disciplina não pode ser afastada da nossa casa”. Talvez um psiquiatra possa explicar a insistência na expressão “vara da disciplina”.

Na recente entrevista ao jornal, Ribeiro demonstrou homofobia, eximiu-se da responsabilidade de coordenar a rede pública de educação no país, menosprezou o sonho de milhões de brasileiros de conseguir formação de nível superior e, por fim, lavou as mãos quanto ao papel da educação na redução de desigualdades, tão agravadas pela pandemia. “Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil. Não tem como, vai fazer o quê?”. Foi como se dissesse: “E daí?”. Soa familiar? Na marcha acelerada do Brasil rumo ao retrocesso civilizatório, Milton Ribeiro não é um ministro. É o exterminador do futuro.

Cristina Serra

Cristina Serra é jornalista.

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UM MILHÃO DE MORTOS

Editorial Folha deS.Paulo

Os serviços de saúde contabilizam um milhão de mortes pela Covid-19 no planeta, passados apenas 260 dias da notificação do primeiro óbito, na China. A marcha hiperbólica do novo coronavírus já infectou mais de 33 milhões, oficialmente.

Embora as eclosões iniciais tenham ocorrido na Ásia, foi a passagem da pandemia pela Europa que deixou patente a virulência do patógeno. Os sistemas de saúde italiano e espanhol entraram em colapso. Com exceção da Alemanha, as nações europeias ocidentais mais populosas atingiram mortalidades brutas mínimas da ordem de 50 óbitos para 100 mil habitantes.

Isso ocorreu em países cujas taxas anuais de mortes por doenças infeciosas e parasitárias normalmente não passam de 5 por 100 mil.

Nas Américas, apesar de os países terem tido mais tempo para se preparar, a destruição de vidas pela pandemia, infelizmente, não tem ficado nada a dever para o velho continente, antes pelo contrário.

As taxas de Brasil (67), Estados Unidos (62) e México (59), onde vivem mais de 670 milhões de pessoas, alarmam não só pela magnitude, mas também pelo fato de essas nações ainda não terem demonstrado controle da infecção.

No caso brasileiro, em relação ao ocorrido na Europa, as curvas de mortes desenvolveram um arco menos acelerado no início, mas bem mais persistente ao longo do tempo. É o retrato, em larga medida, de um combate débil do vírus.

Ao presidente da República não faltou apenas o senso da mobilização nacional que o tema exigia. Desde cedo portou-se irresponsavelmente, como o chefe dos negacionistas, a propagar falsidades científicas e mensagens contrárias às medidas de isolamento decretadas por governadores e prefeitos, sem as quais a tragédia seria maior.

Faltaram testes na quantidade, nos locais e no tempo necessários. A mitigação dos danos econômicos foi parcialmente satisfeita com o auxílio emergencial, mas na educação dezenas de milhões de crianças e jovens tiveram as atividades escolares suspensas sem a devida prestação pedagógica a distância.

As políticas de resguardo e a estrutura do SUS contribuíram para que, na maioria das cidades, a capacidade de atendimento dos casos que requeriam internação e cuidado intensivo não fosse engolfada.

A maior expectativa, sem dúvida, repousa na chegada das primeiras vacinas, cuja aplicação em caráter emergencial deve começar a ser liberada, inclusive no Brasil, entre o final de 2020 e o início de 2021.

A depender das características das vacinas, tais como a eficácia, uma dada estratégia de saúde pública será exigida. Que atitudes extravagantes de autoridades não voltem a atrapalhar, desta vez na etapa decisiva do controle da infecção.

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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

NA ELEIÇÃO NORTE-AMERICANA, O GANHADOR LEVA TUDO

Marcus André Melo, Folha de S.Paulo

A campanha presidencial nos EUA virou um jogo de apostas altíssimas agora que Trump poderá ter maioria estável na Suprema Corte, em um pleito que provavelmente será judicializado. Mas, se o pleito é nacional, de importância inédita, a disputa é fragmentada, estadualizada.

Isso se deve à importância no colégio eleitoral dos “swing states” —estados com muitos delegados e onde há equilíbrio de forças. Espécie de relíquia institucional, tem sobrevivido a 700 emendas constitucionais apresentadas para sua eliminação, que tiveram apoio massivo, como discuti neste espaço.

Países que copiaram os EUA nas suas constituições eliminaram o colégio já no século 19, e outros no século 20, como a Argentina (1995) e o Chile (1920).

A instituição é exemplo de regra majoritária (“winner takes all”) aplicada a eleições presidenciais, mas o raciocínio vale para as legislativas.

As chances de vitória no colégio e derrota no voto popular têm origem dupla: a) o ganhador no estado escolhe todos os delegados da jurisdição: uma vitória por uma margem de 1% produz um ganho de 100%; b) o número de delegados em cada estado é a soma do número de deputados federais e senadores, o que favorece os de menor população.

Entre nós, na República Velha, valia a mesma lógica, mas para as eleições legislativas: o mais votado em cada distrito levava a totalidade das vagas em disputa (que variava de 1 a 4). Utilizamos também no Segundo Reinado distritos de um representante, como nos EUA hoje. O impacto da regra fica claro no resultado final. No limite, um partido que obtiver um terço dos votos nacionalmente, mas não for o mais votado em nenhum distrito, não obterá nenhuma cadeira.

A regra majoritária cria uma estrutura de incentivos pela qual, durante as eleições, a campanha ocorre apenas nos poucos distritos onde há equilíbrio na disputa (também chamados de “marginal districts”). Caso contrário, é como se não houvesse eleição (caso dos “safe districts”). Aos simpatizantes de partidos minoritários resta não votar ou votar no candidato que rejeite menos.

Em contraste, sob a representação proporcional, os partidos minoritários têm incentivos para disputar o voto porque conseguem obter cadeiras mesmo não sendo os mais votados. Quanto maior a magnitude do distrito eleitoral, maiores as chances de representação (desconsiderando efeitos de cláusulas de barreira e a existência de segundo turno). Por isso o comparecimento às urnas também aumenta.

Assim as regras importam e têm enorme resiliência. O localismo na eleição americana tem raízes institucionais e se insere paradoxalmente em um ambiente “desespacializado” e polarizado das redes.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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AS CARETAS DA CENSURA JUDICIAL

Roberto Romano, O Estado de S.Paulo

O Estado moderno firma-se desde os séculos 15 e 16. Contra o feudalismo o rei instaura novos modos de administração, das fronteiras aos impostos, da justiça à polícia, dos campi aos arquivos, das coleções incoerentes de livros às bibliotecas. A racionalidade, no entanto, é paga com preço alto. Nobres e clero devem ser comprados com favores, isenção de taxas, privilégios. Até a cor das roupas exibe a “superioridade” dos barões e cardeais. A “gente ordinária de veste” (expressão ainda usada na Corte carioca de João VI) usa o negro com colarinho branco. Quem não pertence à burguesia rica ostenta andrajos.

Analista do poder, o matemático e filósofo Blaise Pascal comenta as roupas e os acessórios para intimidar os “homens comuns”. Existe o costume de ver os reis seguidos de guardas, tambores, serviçais e tudo o que inclina a espinha humana pelo medo e terror. Daí a bajulação: “O caráter da divindade está impresso na face real”.

Os juízes, continua Pascal, “conhecem tal mistério. Suas vestes vermelhas, seus enfeites e arminhos, os palácios onde julgam, as flores-de-lis (nada que ver com o Brasil de hoje), todo um aparato augusto é para eles necessário. Se os médicos não tivessem sotainas e mulas e os doutores não tivessem bonés quadrados e vestes amplas (...) eles jamais teriam engambelado quem não pode resistir. Se tivessem a justiça verdadeira e os médicos a arte verdadeira de curar seriam inúteis os bonés quadrados. A majestade das ciências seria venerável o bastante. Mas eles só têm ciências imaginárias, sendo preciso que as usem tais instrumentos inúteis que ferem a imaginação, com a qual lidam e conseguem respeito”. Termina o pensador: “Os soldados não se fantasiam porque sua parte é mais essencial. Eles se impõem pela força, os demais pelas caretas”. 

Juízes, a exemplo do presidente Schreber – delirante interlocutor de Deus –, desprezam o cidadão comum. O termo usado para designar quem não é juiz é claro: “leigo”, a pessoa “ordinária de vestes” que não pode intimidar com caretas e palácios. Mas as togas se curvam – como nas ditaduras que atormentaram o Brasil – diante das fardas.

O vezo de insultar os não iniciados nos mistérios “da justiça” tem origem teológico-política. Na Igreja primitiva a hierarquia era tênue. Eram valorizados, conforme indica Max Weber, os que se moviam para recordar a iminente volta do Senhor, praticando pobreza, obediência, castidade. Quem não praticava tais virtudes à espera do Juízo Final e não imitava monges e ermitãos integrava a vida cristã conforme seu estado no mundo. Os cidadãos, na Igreja, recebem o título de Christifideles laici: povo fiel a Cristo. Com a burocracia eclesiástica, simultânea à centralização do Estado, o poder hierárquico ficou mais rígido e exclusivo. Se no Estado apenas os dirigentes têm voz, na Igreja só os sacerdotes, bispos e papa merecem acatamento.

O tratado atribuído a Dionísio, o suposto Areopagita – A Hierarquia Eclesiástica –, desenha o cosmos no qual os anjos, arcanjos, padres, nobres e reis estão próximos da Luz Divina. Os leigos, imersos na escuridão, devem calar e obedecer. Daí o costume, hoje abusado por médicos e juristas (bom Pascal!), de aplicar o nome de “leigo” a quem não é iluminado pelo saber sagrado das respectivas corporações. 

Quando o Terceiro Estado (os leigos) exigiu de um monarca francês a prestação de contas sobre as finanças públicas, o clero deu o seguinte parecer: “As finanças reais são como o Santíssimo Sacramento no altar. Só podem conhecê-las os que para tal fim são ordenados”. Com a Reforma luterana a hierarquia eclesiástica desabou, restaurando-se o sacerdócio comum dos fiéis. E como fruto vem a Revolução Puritana inglesa, que institui a accountability, obrigação de governantes, parlamentares, funcionários e... juízes prestarem contas de seus atos ao povo soberano. 

Tal princípio, criado pelos gregos antigos, medra nas Revoluções Americana e Francesa. Aqui, no entanto, dom João VI instaura um poder contra a accountability. Não por acaso, o imperador é dito irresponsável. 

A responsabilidade nos cargos públicos é ignorada no Brasil. A quem respondem os juízes do STF, do STJ e outras Cortes “excelsas”? O costume de violar a Constituição perpassa o Judiciário. O trejeito atual de nossos magistrados é censurar a imprensa, mesmo contra decisões tomadas pelo Supremo Tribunal. O caso Boi Barrica amordaçou o jornal O Estado de S. Paulo. O jornalista Luis Nassif e a Rede Globo são calados por juízes. Ganha quem deveria prestar contas ao contribuinte. Mas os contribuintes são “leigos”, “gente ordinária de vestes”.

Há um livro de jovem, mas erudito, magistrado eleitoral, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, com título exato: Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial (Habitus Ed. 2020). Ele denuncia a vontade de poder dos juízes brasileiros que mudam o sentido da Constituição, legislam usurpando prerrogativas do Congresso e, gradativamente, se imiscuem no Executivo. Haja boné quadrado e caretas!

PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE 'RAZÕES DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO' (PERSPECTIVA)

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GOLPISMO PRÉ-DATADO VIRA MODA ENTRE PRESIDENTES POPULISTAS

Bruno Boghossian, Folha de S.Paulo

Há 203 dias, Jair Bolsonaro afirmou guardar provas de fraude na eleição de 2018. O presidente disse que tinha em suas mãos evidências de que deveria ter vencido a disputa no primeiro turno e anunciou que apresentaria esse material “brevemente”. É claro que nada apareceu, mas ele conseguiu o que queria.

Bolsonaro trabalha, no longo prazo, para dinamitar a credibilidade do sistema de votação no país. A ideia é cultivar dúvidas entre seus apoiadores, reforçar a imagem de um ambiente político manipulado e preparar terreno para contestar derrotas que sofre dentro das regras do jogo.

Ele deu uma pista desse caminho ainda na campanha presidencial. A dias do primeiro turno, Bolsonaro levantou suspeitas de fraude sem comprovação e disse que não aceitaria um resultado diferente de sua vitória nas urnas. “Isso é um ponto de vista fechado”, declarou.

Esse golpismo pré-datado se tornou marca de certos políticos populistas. Na corrida presidencial de 2016, Donald Trump falava de uma “fraude eleitoral em larga escala” para favorecer sua rival, Hillary Clinton. O republicano venceu a disputa. A semente, porém, estava plantada.

Trump governou como vítima das instituições democráticas. Agora, atrás de Joe Biden nas pesquisas, ele estendeu o tapetão: questionou a lisura do processo eleitoral e disse que, se as urnas não derem a ele um novo mandato, levará o resultado à Suprema Corte —onde os juízes conservadores são maioria.

Sem provas concretas de fraude em quantidade suficiente para mudar o resultado da eleição, Trump faz uma ameaça explícita de golpe de Estado. Ninguém deve ficar surpreso se Bolsonaro seguir o mesmo caminho em 2022, depois de alguns anos de experiência no ramo.

No tapetão populista, a vontade popular não conta, e nem mesmo é preciso haver fraude de verdade. Basta fragilizar o principal instrumento da democracia para agitar eleitores e milícias dispostas a apoiar uma manobra fora da lei. A democracia, afinal, é um mero detalhe.

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ÓDIO AOS BANCOS UNE FAMÍLIA BOLSONARO AO PCO

Bernardo Mello Franco, O GLOBO

Entre as 33 legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral, nenhuma está mais à esquerda que o PCO. Fundado em 1995, o Partido da Causa Operária defende um levante dos trabalhadores contra a burguesia. Seu programa prega a estatização do sistema financeiro. O objetivo é eliminar os bancos, identificados com a “agiotagem dos capitalistas”.

A sigla lançou um bom slogan (“Quem bate cartão não vota em patrão”), mas nunca conseguiu empolgar as massas. Seu eterno presidente, Rui Costa Pimenta, já se candidatou três vezes ao Planalto. Em todas as tentativas, terminou em último lugar, com menos de 0,1% dos votos.

Apesar da retórica anticomunista, a família Bolsonaro tem algo em comum com o PCO. A exemplo do partido nanico, o clã odeia os bancos. O sentimento se materializa no apego ao dinheiro vivo, que une filhos e ex-mulheres do presidente.

Aos 20 anos, o vereador Carlos Bolsonaro usou “moeda corrente do país, contada e achada certa” para comprar seu primeiro imóvel, na Tijuca. O negócio foi revelado na quarta-feira pelo jornal “O Estado de S.Paulo”. Candidato à reeleição, o Zero Dois não quis se manifestar. Ele concorre ao sexto mandato na Gaiola de Ouro, como é conhecida a Câmara Municipal do Rio.

Também na quarta, O GLOBO noticiou que Eduardo Bolsonaro usou dinheiro em espécie na compra de dois apartamentos na Zona Sul. A última aquisição foi feita em 2016, quando ele já era deputado federal. O Zero Três não quis explicar a preferência pelos pagamentos em cash.

O senador Flávio Bolsonaro supera os irmãos na modalidade. Em 2010, ele usou dinheiro vivo para comprar 12 salas comerciais na Barra. O negócio foi relatado ao Ministério Público pelas construtoras Cyrela e Brookfield. Em depoimento, o Zero Um confirmou a história. Ele disse que parte da quantia teria sido emprestada pelo pai, o presidente Jair Bolsonaro.

Mãe do trio, a ex-vereadora Rogéria Bolsonaro também usou moeda corrente para comprar um apartamento quando era casada com o capitão. A segunda mulher da presidente, Ana Cristina Valle, seguiu a mesma receita. Comprou duas casas, um apartamento e dois terrenos “em moeda corrente”, segundo revelou a revista “Época”.

No caso do PCO, a aversão aos bancos é ideológica. O partido sempre defendeu uma “aliança operário-camponesa” em nome da “luta contra a opressão do capital”. No caso dos Bolsonaro, o MP tem outro palpite. A suspeita é que as transações em espécie tenham servido para ocultar a origem dos recursos.

Comprar imóveis em cash não é crime, mas costuma chamar a atenção do MP e da Receita. A prática é vista como indício de sonegação e lavagem de dinheiro. Sem passar pelos bancos, os valores não deixam rastros. Podem ser transportados em malas, cuecas ou caixas de sapato.

Os promotores suspeitam que Flávio tenha usado o esquema da rachadinha para engordar o patrimônio. O senador é investigado há dois anos, mas ainda não encontrou uma versão convincente para explicar sua alergia às operações bancárias.

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BOIADA TÓXICA

Editorial Folha de S.Paulo

Ninguém pode acusar Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, de descumprir a missão recebida do presidente Jair Bolsonaro: solapar o sistema de proteção de recursos naturais no país. Para repetir a frase cínica usada pelo titular da pasta em abril, trata-se de “passar a boiada”, como o golpe aplicado na reunião de segunda-feira (28) do Conama, conselho nacional da área.

Caíram de uma só vez três resoluções do órgão. Na manobra mais grave, revogou-se a proteção garantida a manguezais e restingas. Outra desfez a obrigação de manter vegetação no entorno de reservatórios de água. A terceira suspendeu a necessidade de licenciamento ambiental para projetos de irrigação.

Antes que a reunião terminasse, Salles também fez autorizar a queima de certos poluentes, como alguns defensivos agrícolas, em fornos para produção de cimento —resíduos problemáticos, assim, chegarão ao ar que respiramos.

Manguezais constituem um sistema de grande produtividade e relevância ecológica. A vegetação adaptada às marés e à salinidade não só protege a linha de costa da erosão como serve de refúgio para reprodução de espécies marinhas.

Facilitar sua ocupação favorece a carcinicultura, indústria da criação de camarões que gera raros empregos e muita poluição. Não se entende por que o Conama põe o interesse de poucos à frente do geral e do sustento de milhares de caiçaras que exploram os mangues, nem por que entrega frágeis áreas de restinga à especulação imobiliária.

Salles aplainou o caminho da boiada ao transformar o Conama num órgão sob controle do ministério. Antes de sua chegada ao governo federal, o conselho contava com maior diversidade: organizações da sociedade civil tinham 23 assentos (hoje são 4), e governos estaduais, um representante cada (o total foi reduzido de 27 para 5).

O ministro quer eliminar qualquer contribuição de ONGs e da academia na definição de políticas ambientais. Desregulamentar, quando há excesso de exigências, e rever normas problemáticas ou mal definidas não é pecado, mas o aperfeiçoamento tem de se fundamentar em discussão transparente e calcada em estudos técnicos.

O atropelo capitaneado por Salles a mando de Bolsonaro pode revelar-se uma vitória de Pirro, pois redundará em prolongada judicialização. Seu método implica aumentar a insegurança jurídica, o que aventureiros tomarão como carta branca para aumentar a devastação.​

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MEMÓRIAS DE UM MAU BRASILEIRO

Artigo de Fernando Gabeira

A tese da conspiração internacional contra o Brasil foi ressuscitada pelo discurso de Bolsonaro na ONU. Ela vem acompanhada de um lamento pela ajuda de maus brasileiros aos que conspiram contra o país.

Modestamente, tenho sido um desses maus brasileiros, ao longo de meio século. Relato algumas memórias, comemorando bodas de ouro.

Na década de 70, a conspiração contra o Brasil consistia em divulgar notícias sobre torturas e assassinatos sob o governo militar. Usávamos lembranças pessoais, relatos dos presídios e até documentos levados ao exterior por abnegados diplomatas.

Com esse material, construímos uma teia na qual a ditadura se enredou, caiu no isolamento e foi estigmatizada. O ponto alto desse trabalho foi o Tribunal Bertrand Russell, em Roma, onde foram denunciadas as agressões aos direitos humanos no Brasil.

Contamos com notáveis conspiradores sul-americanos: o colombiano Gabriel García Márquez e o argentino Julio Cortázar.

As atividades conspiratórias ressurgiram após o assassinato de Chico Mendes. Outros seringueiros morreram antes dele. Chico Mendes era um líder extraordinário, e sua morte coincidiu com uma crescente consciência ecológica mundial e, dentro dela, o reconhecimento do singular papel da Amazônia.

No embalo desse movimento, houve o encontro dos povos indígenas em Altamira. Inúmeros conspiradores internacionais presentes. Entre eles, Sting e Anita Roddick, dona da Body Shop.

O tema: construção da Usina de Belo Monte, mais tarde concluída por um governo de esquerda, sinal de que a conspiração não respeita os parâmetros ideológicos.

Semana passada, em Nova York, em campanha pela Amazônia, Harrison Ford lembrou que o primeiro grande concerto pela Amazônia foi de Sting, há 30 anos.

Ford não mencionou, mas de lá para cá a floresta perdeu 300 mil quilômetros quadrados de vegetação. Novas vozes surgiram espontaneamente: Brad Pitt visitou a Amazônia, Gisele Bündchen pediu pela floresta.

A novíssima geração é mais poderosa. Greta Thunberg, a jovem sueca, já foi recebida por Angela Merkel para falar do acordo econômico Mercosul-UE.

Apesar da má vontade com que é vista por alguns, é uma das favoritas ao Prêmio Nobel da Paz. Como assim, uma menina? As meninas de hoje vão muito além do que possam imaginar.

A conspiração ganhou ares mais solenes. Fundos de pensão falam na defesa da Amazônia e na proteção dos povos tradicionais. Empresas e bancos aproximam-se do conceito de exploração sustentável.

Não é preciso ser inocente quanto aos outros. Quando surgiu, no Canadá, a falsa notícia de que havia a doença da vaca louca no rebanho brasileiro, imediatamente reagi.

Apesar de vegetariano, integrei a comissão parlamentar destinada a revelar a verdade e defender a carne brasileira. Creio que fomos vitoriosos.

Adiante, discordamos. Era pelo rastreamento do rebanho, transparência na origem e condição do gado. Houve quem achasse isso caro, reduzia a competitividade. Hoje há muitos que compreendem e defendem o rastreamento. A melhor maneira de competir é ter qualidade.

Aí estão a trama da nossa conspiração e o conteúdo de nossa maldade. A ideia da preservação do meio ambiente pode ser também a garantia de nossos mercados — uma visão que abarca o futuro das gerações brasileiras.

O discurso de Bolsonaro é tão mentiroso que talvez nem ele acredite no que fala. As Forças Armadas têm compartilhado seu delírio. É assustador, pois indica uma distância da realidade incompatível com a tarefa de defesa nacional.

Cada vez mais o planeta depende de respostas globais, e é preciso manter a soberania num quadro de cooperação. O general Heleno cogitou boicote nacional aos produtos escandinavos, mas não conseguiu se lembrar de nenhum. Não houve uma alma caridosa para informar que São Paulo é o segundo centro industrial da Suécia. Na ausência de escandinavos, ele se volta para produtos alemães passíveis de boicote. Talvez o Fusca, general.

Será preciso que o mundo nos abandone para que se compreenda que somos governados por fantasmas do passado?

Artigo publicado no jornal O Globo em 28/09/2020

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REFORMA DE IMPOSTOS DE GUEDES, É INJUSTA, INEFICIENTE E SELVAGEM

Vinicius Torres Freire, Folha de S.Paulo

“Poucas ideias são tão ruins que não podem ser pioradas. Infelizmente, o sistema tributário brasileiro não é exceção à regra… Uma prova disso é a constante ameaça do retorno da famosa … CPMF”, escreveu Adolfo Sachsida em um livro de 2017. Sachsida é ora secretário de Política Econômica do Ministério da Economia de Paulo Guedes.

A esse respeito, muita gente está de acordo com o secretário, este jornalista inclusive. Guedes quer substituir um imposto ruim e decadente, a contribuição patronal para o INSS, por um ainda pior, a CPMF ou equivalente. Se conseguir, vai aumentar a confusão, as distorções e várias iniquidades da tributação no Brasil.

Um modo de acabar com o imposto sobre folha de salários é tributar mais a renda, de preferência a dos mais ricos (ou o consumo, alternativa pior). Tributar mais os rendimentos maiores é também um modo de pegar os lucros da “economia digital”, que têm escapado dos fiscos do mundo inteiro.

Guedes não quer bulir com o IR. Pretende comer a renda de modo insidioso, com uma CPMF, imposto menos visível e que trata ricos e pobres da mesma maneira.

A ideia do ministro é arrumar R$ 120 bilhões a fim de reduzir o que as empresas pagam para o INSS. Acabaria o imposto sobre remunerações de um salário mínimo ou menos; a contribuição sobre salários maiores diminuiria. Uma conta de guardanapo indica que, de fato, esse dinheiro seria bastante para reduzir a alíquota do INSS de 20% para uns 11% (para salários maiores que um mínimo), tudo mais constante.

Guedes acha que arrecadaria esses R$ 120 bilhões com uma alíquota de 0,4% para sua CPMF misteriosa. Quando a CPMF era de 0,38% (de 2002 a 2007), a receita era regularmente 1,35% do PIB, atualmente uns R$ 94 bilhões. Mas passemos, pois ninguém sabe o que é essa CPMF do ministro e a economia mudou em 13 anos.

Uma CPMF ou coisa que o valha vai pesar mais sobre indústria e agricultura, menos sobre serviços. Impostos sobre a folha de salários, como a contribuição patronal para o INSS, pesam mais, claro, sobre setores que gastam relativamente mais com mão de obra e menos com capital.

Mas ao fim e ao cabo, impostos sobre transações financeiras são selvagens, em nada relacionados a um critério econômico razoável. Uma cadeia de produção longa e movimentação financeira relativamente grande levarão uma empresa a “pagar” mais (na verdade, a recolher mais imposto, repassando a conta para o cliente).

A CPMF tende a aumentar a iniquidade social e econômica da tributação. Um grande princípio da reforma tributária seria justamente uniformizar o quanto possível os impostos que cada setor ou empresa têm de recolher. Outro motivo da reforma é acabar com a cumulatividade (o imposto em cascata, que fica mais pesado quanto mais “fases” a produção de um bem ou serviço envolver). A CPMF é cumulativa.

Além do mais, uma CPMF de 0,4% é uma enormidade em ambiente de taxas de juros baixas. Logo, vai criar tumulto e custo também no mercado financeiro.

A redução dos encargos sobre a folha vai ajudar a criar empregos? Não há evidências. Talvez facilite formalização e contratações quando e se a economia estiver crescendo. Impostos menores sobre o emprego podem ser um coadjuvante da melhoria do mercado de trabalho, mas não o motivo.

Deputados relevantes ainda dizem que a CPMF não passa ou que pode atrasar a reforma tributária. Que o país esteja discutindo tal coisa é outro sucesso da selvageria iníqua e ignara que move o governo de Jair Bolsonaro.

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NONSENSE NO GOVERNO BOLSONARO COMANDA E SUFOCA TODO RESQUÍCIO DE GRAVIDADE

Janio de Freitas, Folha de S.Paulo

Um riso mal contido, pode ser, talvez envergonhado. Como na extravagância de alguns tombos, sobretudo os vistos. E é disso mesmo que se trata: cenas patéticas de um tombo, o deste país.

O Brasil a ameaçar de represália os grandes países que sustem importações de produtos brasileiros, em reação à sanha destruidora na Amazônia. Cada grão de soja e grama de carne que deixem de importar é um rombo na economia bolsonara. E logo quem a propalar a ameaça, o general Heleno, não propriamente do alto de sua lucidez.

Fiel ao sentimento de que o cinismo não tem limite, nem para traição à memória de seus ídolos torturadores e matadores, Bolsonaro a dizer à ONU que “a liberdade é o bem maior da humanidade”. Depois de atribuir a interesses internacionais na riqueza da Amazônia uma campanha para “prejudicar o governo e o próprio Brasil”. No que foi corrigido pelo general Heleno, que, a partir do nível um tanto prejudicado da sua visão do mundo, identificou outra motivação etérea do mundo: é uma “campanha internacional para derrubar Bolsonaro”.

Tamanho nonsense sufoca todo resquício de gravidade que se queira atribuir-lhe, consideradas as responsabilidades funcionais dos emitentes. O possível é apenas sondar os traços anedóticos que lhe dão forma e grotesco. E rir.

Acima e abaixo dos delírios, o problema é que os militares influentes do Exército não compreenderam que a Amazônia é um amálgama de características de flora e de fauna, geológicas, climáticas, fluviais e pluviais, todas em mútua dependência. E que a entrega desse mundo de peculiaridades interligadas à exploração humana resultará, é inevitável, em que não será mais a Amazônia.

Da mata atlântica, por exemplo, restam no máximo 16%, em estimativa otimista. Do Nordeste ao Sul, por toda a costa e por entradas até o interior profundo, o que há são terras descascadas, depauperadas, ocupadas do modo mais desordenado. Cidades em que tudo se amontoa com vastidões vazias em torno. Poluição, agravamentos climáticos —é a realidade que tomou o lugar da mata atlântica. Assim seria com a entrega da Amazônia à exploração humana: não mais Amazônia.

A “exploração racional e planejada” é balela. Iniciado o processo, será o mesmo de sempre. Os aldeamentos logo se transformam em vilas, daí em cidades, a necessidade de infraestrutura e mais exploração transformam mais áreas, e assim em sucessivas destruições ambientais. A entrega da Amazônia à exploração industrial terá, porém, consequências climáticas muito maiores no Brasil todo, e por extensão no mundo, do que o miserável fim da mata atlântica.

Apesar disso, a ocupação da Amazônia é uma tese dita estratégica dos militares do Exército. Ricardo Galvão, cientista e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, desmontou o argumento do vice Hamilton Mourão para criação de uma agência para concentrar todos os monitoramentos da Amazônia. Uma agência sob controle militar. “Como o norte-americano NRO” é um argumento aqui muito forte. Mas errado, se de boa ou má-fé, fica por clarear. A verdade é que o NRO está proibido de atuar no território dos EUA. E o monitoramento por lá é civil.

Mas a agência militarizada seria apenas a porta-estandarte do Exército. Atrás viria o que consiste no projeto real: não só o monitoramento, mas o controle absoluto da Amazônia pelo Exército. Um grande território militar, sonhado como o meio eficaz de neutralizar a presumida ganância de uma ou de outra potência sobre a posse da Amazônia. Até décadas recentes, e por muito tempo, o delírio era a guerra inevitável com a Argentina —motivo até de promoção a general por mérito de planejamentos, como foi o caso do último algoz de João Goulart, o seu amigo Amaury Kruel. No mapa, da Argentina para a Amazônia são centímetros possíveis.

Enquanto o nonsense comanda, o fogo está autorizado a antecipar o serviço.

Paraíso
O Conselho Nacional do Ministério Público vai decidir se suspende por 90 dias o procurador Diogo Castor de Mattos, como proposto pelo corregedor Rinaldo Reis Lima. Ex-integrante do grupo de Deltan Dallagnol em Curitiba, Castor patrocinou enorme outdoor na cidade com fotos do seu chefe e de Sergio Moro. Falta disciplinar e, entre nós outros, ética.

Mas não só. Castor o fez com identidade falsa, usando nome de pessoa que nem ao menos foi informada. No paraíso corporativista, mesmo para tal fraude bastam 90 dias de suspensão. Para os de fora da patota, processo criminal e possibilidade até de cadeia.

Mais que ironia
A Bolívia tem na América Latina, como constatado pela ONU, a segunda melhor condição para as mulheres em direitos políticos e em paridade política com os homens (só o México a supera, sendo o Brasil o 3º pior). As bolivianas vieram das últimas colocações para o topo com as conquistas introduzidas, muitas, e outras incentivadas, por Evo Morales como presidente eleito e legítimo, caso raro na história boliviana.

As mulheres congressistas foram uma força decisiva no golpe que derrubou Morales. E uma delas usurpou-lhe a Presidência, que exerce até hoje ilegalmente, com apoio da OEA e de muitos países latino-americanos. Entre os quais, é claro, o Brasil.

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domingo, 27 de setembro de 2020

TODOS OS HOMENS DE BOLSONARO

Do Blog do Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

Para quem leu Todos os Homens do Kremlin (Editora Vestígio), de Mikhail Zygar, ex-editor-chefe da única emissora de TV independente da Rússia, a TV Rain (Dozhd), o paralelo com o presidente Jair Bolsonaro e sua atuação no poder é inevitável, resguardadas, é óbvio, as diferenças de contexto histórico e nacional. Como Vladimir Putin, Bolsonaro tornou-se presidente porque soube aproveitar a oportunidade, bafejado pela sorte. Diferentemente do presidente russo, porém, não era um candidato do sistema: o homem certo na hora certa para o então presidente Boris Yeltsin, o político carismático, beberrão e imprevisível, que implodiu a antiga União Soviética, destronando Mikhail Gorbatchev, e liderou a transição selvagem para o capitalismo na Federação Russa. Bolsonaro foi um candidato antisistema, que surfou o tsunami eleitoral de 2018, na onda de insatisfação popular com os políticos gerada pela Operação Lava-Jato.

As semelhanças são maiores quando levamos em conta que Putin não tinha uma estratégia de poder –– foi administrando as circunstâncias para mantê-lo. Ex-chefe da FSB, usou a força do Estado para afastar aliados indesejáveis, proteger os amigos de São Petersburgo e da antiga KGB, seduzir os militares e liquidar os adversários. Os instrumentos de coerção do Estado –– os serviços de inteligência, a polícia, o Ministério Público e o Judiciário –– foram fundamentais para a consolidação de sua longa permanência no poder, depenando oligarcas que se apoderaram das estatais russas, favorecendo os empresários amigos e eliminando possíveis concorrentes eleitorais. Putin acreditou que seria bem recebido pelos líderes das grandes potências ocidentais, mas logo se viu frustrado por Angela Merkel, a primeira-ministra alemã; Nicolas Sarkozy, o presidente francês; e, principalmente, Barack Obama, o presidente negro dos Estados Unidos.

Arreganhou os dentes quando chegou à conclusão de que todos queriam enfraquecer a Federação Russa e afastá-la das antigas repúblicas soviéticas. E de que o menosprezavam, tratando-o como um personagem menor na cena internacional. Esse sentimento de rejeição somente aumentou ao longo dos anos, mas teve como resposta o endurecimento da política externa russa em relação às ex-repúblicas soviéticas da Geórgia e da Ucrânia, e ao Oriente Médio. A decisão estratégica de manter o ditador da Síria, Bashar al-Assad, no poder a qualquer preço, e assim preservar sua base naval no Mediterrâneo, foi uma demonstração de força. Da mesma forma, a divisão da Ucrânia, com a anexação da Criméia como uma república autônoma da Federação Russa, com o propósito de manter a grande base naval da frota do Mar Negro. Por último, o apoio econômico e militar a Nicolás Maduro, na Venezuela.

Reeleição
No terceiro mandato de presidente, a relação de Putin com o ex-presidente liberal Dmitri Medvedev, com quem também se revezou no cargo de primeiro-ministro, hoje é de estranhamento. Na verdade, sempre foi tensa, como a de Bolsonaro com o vice-presidente Hamilton Mourão, um general de quatro estrelas. Putin afastou todos os aliados com política própria ou a lhe fazer sombra. Bolsonaro fez a mesma coisa. Começou com o general Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, hoje ocupada pelo general Luiz Ramos, principal articulador político do governo, e o advogado Gustavo Bebiano, secretário-geral da Presidência, já falecido, defenestrado para dar lugar a um ex-assessor parlamentar de inteira confiança, Jorge Oliveira. O ex-deputado Onyx Lorenzoni foi deslocado da Casa Civil para o Ministério da Cidadania, para dar lugar ao general Braga Netto. Os ministros da Justiça, Sergio Moro, e da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no auge do prestígio, também foram defenestrados, sendo substituídos pelo advogado da União André Mendonça e outro general, Eduardo Pazuello, respectivamente, dois bem-mandados.

Deputado ligado ao baixo clero durante toda a sua trajetória, para neutralizar qualquer tentativa de impeachment, Bolsonaro montou uma base parlamentar com os partidos do Centrão, cujos líderes — Gilberto Kassab (PSD-SP), Roberto Jefferson (PTB-RJ), Valdemar Costa Neto (PR-SP) e Ciro Nogueira (PP-PI) — apoiam qualquer governo. Trocou os desastrados deputados de extrema direita, que defendiam o seu governo no Congresso, por raposas moderadas do Parlamento: Ricardo Barros (PP-PR), na Câmara, Fernando Bezerra (MDB-PE), no Senado, e Eduardo Gomes (MDB-TO), no Congresso. E está fritando o ministro da Economia, Paulo Guedes, um economista ultraliberal, cada vez mais isolado no governo.

Qual foi a estratégia de Putin para manter sua popularidade ao longo de duas décadas? Domar o Parlamento, controlar o Judiciário, estreitar a aliança com a Igreja Ortodoxa, estimular o nacionalismo russo e o conservadorismo machista e homofóbico. Putin transformou a jovem democracia russa numa ditadura da maioria, no qual assume um papel cada vez mais autocrático. Mais populista do que nunca, Bolsonaro recuperou a popularidade, apesar da pandemia, e só pensa na reeleição, que parece ao alcance das mãos. O que acontecerá com a democracia brasileira se Bolsonaro controlar o Judiciário e passar o rodo no Congresso, em 2022, como deseja?

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ELOGIO À IRRESPONSABILIDADE

Editorial O Estado de S.Paulo

O governo de Jair Bolsonaro atingiu o maior patamar de aprovação desde sua posse, mostra pesquisa do Ibope recentemente divulgada. No levantamento, 40% dos entrevistados disseram considerar o governo “ótimo” ou “bom”, 11 pontos porcentuais acima do verificado em dezembro do ano passado – antes, portanto, da pandemia de covid-19. A avaliação negativa caiu de 38% para 29% no mesmo período.

Bolsonaro obviamente não atingiu esse nível de aprovação em razão do modo destrambelhado como está lidando com a pandemia. Sua gestão da crise é um desastre em todos os aspectos – e os quase 140 mil mortos falam por si. O mais provável é que, ao contrário, o presidente, ao isentar-se sistematicamente de qualquer responsabilidade no que diz respeito à doença e a seus efeitos sociais e econômicos, terceirizou a impopularidade, sentida muito mais pelo Congresso e, principalmente, por governadores e prefeitos – obrigados, estes sim, a enfrentar o desafio da pandemia, contando com escassa ajuda federal e em muitos momentos sendo hostilizados pelo próprio presidente.

Pode-se especular que, para parte significativa dos entrevistados, a covid-19 não passava mesmo de uma “gripezinha”, como a ela jocosamente se referiu Bolsonaro, que a todo momento estimulou aglomerações e a “volta à normalidade”, como se isso fosse possível. As imagens de praias lotadas mesmo diante das evidências de que o pior ainda não passou são mais eloquentes do que qualquer pesquisa.

Assim, o crescimento da popularidade de Bolsonaro, a despeito de tudo, é uma espécie de elogio à irresponsabilidade, traduzida não somente em sua infame campanha a favor do uso da cloroquina, espécie de elixir bolsonarista, mas principalmente na conclusão do presidente segundo a qual quem ficou em isolamento na pandemia é “fraco” e se “acovardou”.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro segue colhendo os frutos eleitorais do auxílio emergencial para os mais necessitados. Entre os entrevistados com renda familiar de até um salário mínimo, a popularidade presidencial saltou de 19% para 35% desde dezembro. Entre os que estudaram até a 8.ª série, a aprovação de Bolsonaro passou de 25% para 44%. Nada semelhante a isso se verificou nas faixas socioeconômicas intermediárias e superiores da população.

O governo provavelmente vai explorar a pesquisa como prova de que o presidente sempre esteve certo e o resto do mundo, errado. É preciso deixar claro, contudo, que popularidade nem sempre é sinônimo de bom governo – que o diga Dilma Rousseff, que na metade de seu primeiro mandato tinha aprovação superior a 60% e que conseguiu se reeleger em 2014 a despeito de seu desempenho calamitoso na Presidência.

Como mostra o caso de Dilma Rousseff, a propósito, nenhum governo se sustenta somente com base na mistificação e na embromação. A popularidade da presidente petista, que era de 63% em março de 2013, caiu para 31% em julho daquele ano, em meio a grandes protestos, e estava em 10% um mês antes da admissão de seu processo de impeachment pela Câmara, em abril de 2016. 

Por enquanto, Bolsonaro se sustenta graças a uma combinação de populismo barato com uma assombrosa capacidade de fingir que é presidente sem exercer o cargo. Mais cedo ou mais tarde, contudo, a ausência de um plano claro de governo, fruto da patente inaptidão de Bolsonaro para desempenhar a função para a qual foi eleito, será percebida pela população.

Até lá, a única pesquisa de opinião que realmente importa, e que projeta um futuro nada glorioso, é a que se dá entre investidores, especialmente os estrangeiros. E a opinião destes parece clara: neste ano, até agosto, US$ 15,2 bilhões deixaram o País, o maior montante no período desde 1982, quando o Banco Central começou a fazer esse levantamento.

A irresponsabilidade de Bolsonaro pode até lhe render algum apoio entre os brasileiros incapazes, por diversas razões, de enxergar além de seus estreitos horizontes pessoais. Já para aqueles que dependem de confiança e racionalidade para investir, o presidente não engana mais ninguém.

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A NOVA POLÍTICA CADUCOU

Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo

A tira que ilustra esta coluna, do talentoso quadrinista brasileiro Pietro Soldi, é a mais perfeita tradução do que a autodenominada “nova política”, que nunca teve nada de novo e em menos de dois anos se encontra em avançado estado de necrose, legou ao País.

Brasileiros de Norte a Sul elegeram para o Executivo e o Legislativo vários espécimes de jumentos vendados, achando que revolucionariam a forma de fazer política. Mas o resultado é que estamos ensopados de café quente e sem muito sinal de que vamos conseguir reerguer a mesa que tombou e colar a louça que foi feita em cacos.

Olhemos a situação do Rio de Janeiro e de Santa Catarina. O primeiro vinha de uma sucessão de larápios que só não roubaram as pedras do calçadão de Copacabana. O segundo tinha alguns dos melhores indicadores econômicos do País e saúde fiscal relativamente boa.

Mas os eleitores dos dois Estados acharam por bem eleger completos desconhecidos, que entraram na política pela porta fácil do discurso anticorrupção, atrelados ao bolsonarismo e surfando na onda lavajatista.

Resultado: menos de dois anos depois, Wilson Witzel, cujo nome 90% dos fluminenses não sabiam nem pronunciar quando nele votaram, e Carlos Moisés, cuja foto até hoje eu não saberia reconhecer, estão a caminho do impeachment. 

De Bolsonaro não é preciso falar. Já mencionei seu discurso na ONU, mais uma exibição que não deixou nada a dever à tirinha do Pietro.

E nos Parlamentos e na vida partidária, qual o saldo da tal nova política? Não muito superior. Há, sim, excelentes novos parlamentares, da esquerda à direita. 

Os movimentos não partidários, como Agora, Livres, Renova BR e Acredito, aliás, contribuíram de forma mais significativa para isso que os partidos, pois enfrentaram a necessidade de formação desses jovens líderes.

Quanto às siglas, seguem perdidas na geleia geral ideológica e programática, inclusive as novas. Basta ver o episódio Novo versus Filipe Sabará. O candidato passou no tal processo seletivo, mas em seguida seu currículo acadêmico foi desmentido, se descobriu uma diferença de nada menos que R$ 3.985.000 em sua declaração de bens, e o barraco começou. Diante de tantas inconsistências, Sabará recorreu à seguinte explicação: a “ala esquerdista” (!) do Novo, representada por João Amoêdo (!!), o estaria perseguindo. Seria até engraçado, se não fosse patético. Dá-lhe coice com olhos vendados!

A divisão interna do Novo é mais um sinal claro de que não se mudam as práticas políticas apenas com slogans, sapatênis e ideias naive – como a de que não usar Fundo Partidário é sinal de virtude por si só.

Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados e de que legisladores têm mais a fazer que filminhos ridículos no TikTok ou Instagram.

Que 2020 comece a corrigir 2018 e que tiremos a venda do jumento e elejamos bons políticos para fazer política. Olha só que ideia disruptiva!

*EDITORA DO BR POLÍTICO E APRESENTADORA DO PROGRAMA RODA VIVA, DA TV CULTURA

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A DIREITA NO SUPREMO

Merval Pereira, O GLOBO

A conformação do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Suprema dos Estados Unidos está sendo alterada no mesmo momento histórico de viés direitista nos dois países. Nos Estados Unidos, a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, um ícone dos progressistas americanos, pode dar lugar a um plenário majoritariamente conservador, marcando por décadas o entendimento da Suprema Corte.

No Brasil, a aposentadoria antecipada do ministro Celso de Mello, um exemplo de coerência e defesa da democracia, permitirá que o presidente Bolsonaro nomeie um ministro claramente conservador, embora não reverta a tendência progressista da Corte brasileira.

A tentativa de controlar as decisões da última instância do Judiciário provoca crise política nos Estados Unidos, pois a nomeação da substituta de RBG deveria ficar para o próximo presidente a ser eleito dentro de 38 dias. Quando o ministro Antonin Scalia morreu, em fevereiro de 2016, o Senado americano, dominado pelos Republicanos como agora, não permitiu que o presidente Obama nomeasse o sucessor, sob alegação de que estava em seu último ano de mandato. Hoje, os mesmos Republicanos defendem a nomeação por Trump do novo ministro da Suprema Corte.

O golpe parlamentar dos Republicanos, que fará com que a Suprema Corte fique com uma maioria de 6 conservadores contra 3 progressistas, está provocando grande discussão política, e surge a tese de que os Democratas, se ganharem a eleição para presidente com Joe Biden e o controle do Senado nas próximas eleições, aumentem o número de juízes da Corte Suprema.

O democrata Franklin Roosevelt também ameaçou aumentar o número de integrantes da Suprema Corte para conseguir aprovar medidas de seu programa New Deal, lançado para combater as consequências da Grande Depressão de 1929, que estava sendo barrado pela maioria conservadora.

Propôs ao Congresso, em 1937, lei aumentando a composição da corte para 15 juízes, e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para quem superasse a idade de 70 anos, quando o mandato, até hoje, é vitalício. A juíza Ruth Bader Ginsburg morreu no cargo aos 87 anos Em meio a uma crise institucional sem precedentes, a Suprema Corte mudou de posição devido ao juiz moderado Owen Roberts, cujo voto ficou conhecido como “the switch in time that saved nine” (“a mudança no tempo que salvou nove”, em tradução livre), e uma maioria a favor do “New Deal” foi formada.

Entre nós, no regime militar, através do Ato Institucional 2, de 1965, o presidente Castello Branco aumentou de 11 para 16 o número de ministros do STF, para controlar a maioria, considerada de esquerda pelos militares. Com o AI-5, três juízes foram aposentados – Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal – e dois renunciaram em protesto: ministros Antônio Gonçalves de Oliveira, presidente do tribunal, e Antônio Carlos Lafayette de Andrada.

Podendo nomear cinco novos ministro, Costa e Silva restabeleceu a composição da corte com 11 ministros, número vigente até hoje. O presidente Jair Bolsonaro já defendeu o aumento de cadeiras do Supremo de 11 para 21, alegando que a atual composição da Corte é muito esquerdista. Depois de desistir de manter uma guerra aberta com o Supremo, Bolsonaro não insistiu mais no golpe parlamentar, mas pretende nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para tentar reverter decisões como a lei do aborto, que é também um ponto central na campanha dos conservadores nos Estados Unidos.

O provável indicado é Jorge Oliveira, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Há outros conservadores na disputa, como o “terrivelmente evangélico” ministro da Justiça André Mendonça, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que tem se esforçado para se mostrar próximo a Bolsonaro, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Noronha.

Nos Estados Unidos, o presidente Trump indicou a juíza da Corte de Apelação de Chicago Amy Coney Barret, uma professora da Universidade de Notre Dame que já tem explicitado posições conservadoras em relação a temas polêmicos como aborto, imigrantes e posse de armas.

Com 48 anos, garantirá aos conservadores uma longa supremacia na Corte Suprema dos Estados Unidos.

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INVISIBILIDADE HISTÓRICA

Edison Veiga, DW

A luta para tirar mulheres brasileiras da invisibilidade histórica 

Nos livros tradicionais de história, a maior parte dos heróis são homens. Às mulheres, em geral, são relegados papéis coadjuvantes. Graças a um esforço de pesquisadores – na maioria, aliás, mulheres –, a força feminina na formação brasileira vem sendo descoberta, estudada e escrita. O resultado está em trabalhos acadêmicos e em livros, como o Sobreviventes e Guerreiras: Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000, que a historiadora e escritora Mary Del Priore lança nesta sexta-feira (25/09).

Del Priore dá voz para as mulheres que acabaram invisibilizadas pela história: indígenas, afrodescendentes, caboclas que trabalhavam no campo, empregadas, amas de leite, operárias, artistas. Também mostra a resistência das feministas e das integrantes do movimento LGBT.

"Em vez de pensar sobre a violência contra a mulher brasileira, decidi [neste livro] refletir sobre as formas que a mulher brasileira engendrou, criou e encontrou para resistir à violência do patriarcalismo", diz a autora à DW Brasil. "Quis fugir do vitimismo. Contei a história de uma mulher que se levanta e diz não, que diz eu quero, eu mando, eu faço."

A historiadora considera que o século 19 foi um marco para a mulher brasileira: através do letramento, muitas puderam passar da vida privada para a vida pública. No livro, ela destaca o papel de mulheres no processo de Independência do Brasil, recuperando duas cartas – uma assinada por 186 mulheres baianas e outra, por 51 paulistas – escritas para a imperatriz Leopoldina (1797-1826), "solicitando que dom Pedro ficasse no país e fizesse a emancipação".

Ela destaca também o papel social da educadora e escritora Nísia Floresta (1810-1885), uma pioneira do feminismo. "Desde 1831 ela começou a publicar em jornais, tratando da importância da educação feminina, alertando sobre casamentos forçado", comenta.

Em outro esforço semelhante de ressaltar o papel que mulheres tiveram ao longo da história, o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti lançou, há dois anos, o livro Mulheres do Brasil: A História Não Contada, em que recuperou trajetórias de 200 personagens femininas invisibilizadas pelo tempo. Seu interesse pelo tema surgiu depois de ter publicado duas biografias de mulheres: da Marquesa de Santos e da imperatriz Leopoldina.

"Vi o quanto de suas vidas foi esquecido e encoberto ao longo da história e comecei a colecionar outros casos em que as passagens de outras mulheres também haviam sido apagadas ou modificadas para caber dentro de uma narrativa que se julgava correta", explica.

Uma das maiores surpresas de sua pesquisa, conta, foi se deparar com o caso das vivandeiras durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). Eram mulheres que acompanhavam os homens no front. "Iam de amantes a mães, irmãs e esposas. E, muitas vezes, acabaram também pegando em armas", relata.

História patriarcal e machista

A historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP), acredita que a mulher não está bem representada nos livros escolares de história por conta do fato de que, no Brasil, o gênero só adquiriu direitos políticos em 1932.

"A história dos livros está muito ligada à história da política, dos movimentos políticos e das pessoas que fizeram parte desse sistema", analisa. "Isso não significa de maneira alguma que as mulheres não estivessem naquele espaço, mas sim que foram esquecidas porque não tiveram atuação política significativa, ou seja, não tiveram participação naquilo que passou-se a considerar 'história de verdade'."

Ela ressalta, contudo, que há registros anteriores a isso que demonstram a atuação de mulheres em movimentos de resistência. É o caso de Luísa Mahin, personagem que viveu no século 19 e sobre quem pouco se sabe, mãe do abolicionista Luiz Gama (1830-1882). Acredita-se que ela tenha participado ativamente de levantes de escravos ocorridos na Bahia, como a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838). "As mulheres são invisibilizadas porque acabaram silenciadas, há todo um processo machista e patriarcal", pontua Rosin.

"Entendo que a historiografia oficial, produzida por homens e pautada em eventos e personalidades políticas, militares ou religiosas, trouxe para as narrativas históricas esse cenário de exclusão da mulher ou de destaque de algumas exceções, o que apenas confirma a regra de exclusão, de invisibilidade", comenta à reportagem a historiadora Vânia Carneiro de Carvalho, professora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e autora do livro Gênero e Artefato: O Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultura Material.

"A história do Brasil foi contada durante séculos pelos homens, com um viés totalmente patriarcal e machista", acrescenta Rezzutti. "Uma mulher na política, por exemplo, era impensável até meados do século passado, como então explicar dona Leopoldina articulando a nossa Independência, por exemplo? Os papéis foram editados e embalados para consumo de uma sociedade que era moldada, majoritariamente, pelos homens. Contar a história da forma como eles queriam era só mais uma forma de controle sobre as mulheres."

Futuro promissor

Del Priore aponta que a segunda onda feminista chegou ao Brasil depois do advento da pílula anticoncepcional, nos anos 1960, e que essa militância acabou capitaneada, sobretudo, por universitárias.

Tal contexto fez com que ocorressem cada vez mais pesquisas sobre o papel da mulher na sociedade no meio acadêmico. Infelizmente, concordam os pesquisadores ouvidos pela reportagem, a produção ainda é pouco lida pelo público geral.

Mas as perspectivas são otimistas. "A geração atual de pesquisadoras está conseguindo cravar o lugar social dessas mulheres pioneiras que foram invisibilizadas. Fazer esse trabalho é, para nós, como resgatar, pegar a mão de uma amiga”, afirma Rosin. "É um trabalho lento, mas o futuro é promissor – pelo menos quero acreditar nisso."

Del Priore vê atualmente uma transformação radical na família brasileira, com novos papéis para o homem. E, em seu livro, a historiadora reflete sobre como isso é bom – e não apenas para a mulher. "Termino [a obra] lembrando que sociedades machistas e patriarcais são tão cruéis com os homens como com as mulheres, porque deles é exigido não chorar, ter performances econômica e sexual imbatíveis, enfim, são tantas as exigências em torno do homem que ele acaba prisioneiro da própria armadilha que criou para a mulher", conclui. "O pano de fundo do livro é a resistência das mulheres. E as rachaduras do tradicional patriarcado brasileiro."

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