domingo, 31 de janeiro de 2021

RISCO DE SERVILISMO

Editorial Folha de S.Paulo

Jair Bolsonaro voltou ao jogo da política tradicional no ano passado, quando se viu encurralado pelas investigações sobre os negócios de sua família em meio à pandemia do coronavírus e ao aprofundamento de uma recessão.

Sentindo que seu pescoço estava a prêmio, o presidente abandonou o discurso adotado na campanha eleitoral e retomou a negociação de cargos e verbas com partidos que dão as cartas no Congresso, como fizeram seus antecessores.

O objetivo principal sempre foi criar uma barreira de contenção para garantir seu mandato, reunindo uma base de apoio que, mesmo minoritária, tivesse número suficiente para impedir o avanço de um processo de impeachment.

A estratégia foi bem-sucedida até aqui, e o mandatário decerto espera coroá-la nesta segunda (1º), com as eleições que renovarão a liderança das duas Casas legislativas.

Bolsonaro não faz segredo de seu endosso a Arthur Lira (Progressistas-AL), que concorre à presidência da Câmara dos Deputados, e a Rodrigo Pacheco (DEM-MG), postulante no Senado, que contam com o Planalto na cooptação de aliados.

Os principais adversários, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e a senadora Simone Tebet (MDB-MS), tiveram defecções em suas fileiras. Trata-se de cenário inquietante.

Embora não tenha faltado apoio para uma agenda reformista no período em que Rodrigo Maia (DEM-RJ) presidiu a Câmara, quando se aprovou a reforma da Previdência, os desentendimentos entre ele, Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, inviabilizaram outras iniciativas desde então.

Mais importante, Maia foi sustentáculo da postura altiva com que o Congresso enfrentou os rosnados autoritários de Bolsonaro, seja ao rejeitar decretos e medidas provisórias abusivas, seja ao responder a ataques abertos aos Poderes. Deixa ao sucessor a tarefa de deliberar sobre dezenas de pedidos de impeachment do chefe de Estado.

Um presidente da República cioso de suas responsabilidades saberia aproveitar a situação favorável para negociar uma pauta ambiciosa, que possa colocar as contas do governo em ordem e restaurar a confiança na economia.

Entretanto Bolsonaro já demonstrou à farta que a agenda do país está em segundo plano, se tanto, neste governo. Sua conduta se pauta tão somente por dar vazão aos anseios raivosos de seguidores extremistas e safar-se de responder por desmandos em série, dos quais os cometidos na gestão da pandemia são apenas os mais recentes.

Sobram, pois, razões para temer os riscos envolvidos nas eleições desta segunda. Um Congresso subserviente ao Planalto —com o que parecem acenar os candidatos patrocinados por Bolsonaro, em particular Arthur Lira— representaria um retrocesso intolerável.

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O ROMBO E O TOMA LÁ DÁ CÁ

Editorial, O Estado de S.Paulo

O presidente gasta bilhões em troca de apoio político, o Tesouro financia a farra e o pagador final, o contribuinte, carrega uma dívida bruta, em valor de dezembro, de R$ 6,62 trilhões, ou 89,3% do Produto Interno Bruto (PIB). O setor público deve o equivalente, portanto, a quase toda a produção anual de bens e serviços, incluídos o arroz, o feijão, o milho, os sapatos, automóveis, cortes de cabelo, trabalhos médicos e o leite condensado, muito importante na dieta presidencial e muito útil, segundo o governo, para o vigor das tropas brasileiras. Em um ano a relação dívida/PIB aumentou 15 pontos porcentuais, indicando um desajuste financeiro e econômico só justificável pelo combate à covid-19 e a seus efeitos sociais e econômicos. Encerrado o ano e suspenso o estado de calamidade, é preciso cuidar da volta à normalidade.

Reduzir o enorme buraco nas finanças públicas tem de ser parte desse trabalho. Chegou a R$ 745,27 bilhões, no fim do ano, o déficit primário do governo central. Esse valor, calculado sem a conta de juros, corresponde a 10,06% do PIB estimado para o período. Um ano antes a relação era de 1,20%.

O resultado geral do setor público, atenuado pelos saldos positivos contabilizados em Estados, municípios e empresas estatais, foi um déficit primário de R$ 702,95 bilhões, ou 9,49% do PIB. Somados os juros, o resultado geral, ou nominal, foi um rombo de R$ 1,01 trilhão. Os cálculos são do Banco Central (BC).

Em 12 meses a relação entre o déficit nominal e o PIB mais que dobrou, partindo de 5,79% em dezembro de 2019. A pandemia interrompeu uma firme sequência de reduções. A relação havia passado de 8,98% em 2016 para 7,77% em 2017 e 6,96% em 2018. O ajuste havia começado na administração do presidente Michel Temer, juntamente com o esforço de reativação econômica depois de dois anos de recessão.

A tentativa de correção fiscal continuou em 2019, no início do mandato do presidente Jair Bolsonaro, mas a recuperação da economia foi negligenciada nesse ano e no primeiro trimestre de 2020. Ações de apoio à produção e ao consumo só foram iniciadas seriamente quando se percebeu o desastre econômico ocasionado pela pandemia.

O Banco Central agiu mais rapidamente, com estímulos à expansão do crédito. Executivo e Congresso moveram-se em seguida, com políticas de apoio a empresas, medidas combinadas de proteção do emprego e de redução de custos trabalhistas, auxílio emergencial aos mais vulneráveis e tentativas, nem sempre eficazes, de expansão do financiamento a micro e pequenas empresas.

Gastos muito acima dos valores programados e ações de alívio tributário complicaram a gestão financeira do governo central, mas o esforço limitou a contração econômica e propiciou alguma reação a partir de maio.

A despesa primária do governo central (sem juros, portanto) atingiu R$ 2,01 trilhões no ano passado, com crescimento real de 31,1% em relação ao R$ 1,51 trilhão de 2019. De um ano para outro houve aumento de R$ 477,61 bilhões. Os gastos em resposta à pandemia totalizaram R$ 539,60 bilhões. Consumiram, portanto, a diferença entre o dispêndio total de 2020 e o do ano anterior e mais R$ 62 bilhões. Entre 2015 e 2019 as despesas obrigatórias corresponderam a cerca de 100% da receita líquida. Em 2020 equivaleram a 153%. O dinheiro usado no combate à covid-19 e a seus efeitos foi incluído na categoria das aplicações obrigatórias e, além disso, houve perda de arrecadação.

Muito comprimidas no ano passado, as despesas discricionárias, onde se incluem os investimentos, continuarão reduzidas em 2021. A equipe econômica tentará reduzir amplamente o déficit primário e conter a dívida bruta, muito acima do padrão dos emergentes. Cumprir a regra do teto será possível, se for mantida a disciplina fiscal, diz o secretário do Tesouro, Bruno Funchal. Mas nem sequer há um Orçamento aprovado, o ministro da Economia deve ainda um roteiro claro para 2021 e o presidente Bolsonaro depende de uma base parlamentar faminta de verbas. Falta incluir tudo isso nos cálculos.

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O BÊ-A-BÁ DO CHAVISMO

Editorial O Estado de S.Paulo

Os fanáticos camisas pardas bolsonaristas costumam dizer que “Bolsonaro sempre tem razão”, não por acaso uma das divisas do fascismo italiano. Mas a inspiração do movimento extremista liderado pelo presidente Jair Bolsonaro está bem mais próxima no tempo e no espaço: é o chavismo.

Os bolsonaristas podem não querer se lembrar, mas Bolsonaro já fez rasgados elogios ao ditador venezuelano Hugo Chávez, a quem hoje trata como demônio. Em entrevista ao Estado, em 1999, Bolsonaro disse que Chávez era uma “esperança para a América Latina” e que “gostaria muito que sua filosofia chegasse ao Brasil”.

Do defunto caudilho venezuelano, de fato, Bolsonaro pegou vários cacoetes: o profundo ódio pela imprensa livre, o desprezo pela democracia representativa, a militarização do governo, o apreço pelas teorias da conspiração e a mendacidade sistemática como política de Estado.

A afinidade é tanta que, enquanto Bolsonaro receita a inócua cloroquina como elixir mágico contra a covid-19, o atual tirano chavista, Nicolás Maduro, anunciou a fabricação de um certo “carvativir”, suposto antiviral que, em suas palavras, são “gotinhas milagrosas” que “neutralizam 100% o coronavírus”.

Nada disso, é claro, faz do Brasil sob Bolsonaro automaticamente um congênere da Venezuela chavista, mas há sinais evidentes de que o presidente está estudando com afinco a cartilha de Chávez – em especial os capítulos referentes ao modo como o chavismo tomou o Estado de assalto e subjugou o Legislativo e o Judiciário.

“Vamos, se Deus quiser, participar, influir na presidência da Câmara”, informou Bolsonaro, sem meias-palavras, na quarta-feira, dia 27, em referência à sucessão no comando da Câmara dos Deputados. Para o presidente, isso é necessário “para que possamos ter um relacionamento pacífico e produtivo para o nosso Brasil”.

Por “relacionamento pacífico e produtivo” o presidente certamente entende como subserviente e caudatário. Praticamente desde a posse de Bolsonaro, o Congresso tem sido uma barreira razoavelmente sólida para as pretensões autoritárias do presidente, graças ao perfil democrático e reformista de sua atual liderança.

Mas a eleição para a presidência da Câmara, na próxima segunda-feira, pode alterar drasticamente esse quadro em caso de vitória do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), explicitamente apoiado por Bolsonaro. Fina flor do Centrão, com robusta ficha corrida e igualmente expressiva desenvoltura para angariar apoio em troca de favores, verbas e cargos, o parlamentar, se eleito, será a cabeça de ponte de Bolsonaro para conquistar o Congresso.

Se a cidadela da Câmara cair, o bolsonarismo terá removido um obstáculo crucial para avançar na tomada institucional do Estado, tal como fez o chavismo. Outros já ficaram pelo caminho: a Procuradoria-Geral da República é comandada por um fiel servidor de Bolsonaro e o bolsonarismo se espraia entre policiais e militares. É só o começo.

Profundo conhecedor do baixo estrato do Congresso, pois fez parte dele por três décadas, Bolsonaro sabe como ninguém o que faz brilhar os olhos de parlamentares que mercadejam o voto. Graças a essa habilidade e ao poder da caneta que preenche cargos e libera verbas, Bolsonaro conseguiu cooptar deputados de partidos que não estão em sua base, como DEM e PSDB.

Consta que alguns correligionários do próprio presidente do DEM, ACM Neto, decidiram votar no bolsonarista Arthur Lira porque este lhes prometeu manter apadrinhados em cargos na máquina federal. O fato de uma vitória de Arthur Lira representar enorme risco para a independência da Câmara, com consequências funestas para o País, não lhes pareceu relevante.

Cada um tem o lugar na História que merece: Bolsonaro já assegurou o dele, como o mais nocivo presidente do Brasil; já os parlamentares que elegerão o presidente da Câmara ainda podem escolher como querem ser lembrados, se como políticos responsáveis que honram o mandato que receberam ou como aqueles que, em troca de uma boquinha, entregaram o Congresso de bandeja ao Chávez de Eldorado.

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O CARNAVAL DOS IMBECIS

Antonio Prata, Folha de S.Paulo

Dizem que, por conta da pandemia, não haverá Carnaval. Errado. É justamente por conta da pandemia que haverá Carnaval. Não será a festa a que estamos acostumados, manifestação popular que sacode o Brasil de norte a sul. Revanche gloriosa de ex-escravizados transformando banzo e raiva em alegria e beleza. Uma fresta de poucos dias que nos faz vislumbrar um país diferente, inclusivo, revolucionário. Dois mil e vinte e um celebrará o Carnaval dos ogros. A festa do avesso verá seu avesso: sai a turma do Joãozinho 30, entra a milícia do Zero Três.

Se tem que usar máscara, eles não usam. Se não adianta usar cloroquina, eles distribuem. Se tem que ficar em casa, vão pra balada. Se existe vacina, eles não compram —e fazem campanha contra. Se o Carnaval está cancelado pelas pessoas sensatas que ainda existem no Brasil, não me surpreenderia ver, em fevereiro, blocominions dominando as cidades.

Será o oposto d’“A banda”, do Chico Buarque. “Estava à toa na vida e o capitão me chamou/ Pra ver a banda marchar, gritando coisas de horror”. A concentração, imagino, será diante dos hospitais, para dificultar o trabalho dos profissionais de saúde, o sono dos doentes, zombar do sofrimento das famílias. Não lembram o buzinaço, ano passado, na frente do Hospital das Clínicas?

(Que narrativa esdrúxula leva pessoas a buzinarem para um hospital lotado de pessoas sob risco de vida? O que pensam estes dementes? Que aqueles doentes todos simulam estar com Covid porque foram comprados pela China, pelo PT, pelos homossexuais e maconheiros, por Bill Gates e George Soros para derrubar o governo Bolsonaro? Que todos os médicos e enfermeiros e demais funcionários do hospital, arriscando suas vidas há quase um ano para salvar as nossas, participam do mesmo teatro?).

O Carnaval dos imbecis provavelmente não terá pandeiro, surdo ou cuíca, mas carros de som tocando alguma dance music tosca da década de 90. Tipo “This is the rhythm of the night”, da banda chamada, vejam só, Corona. Pitboys tomando Red Bull contaminarão as falsas loiras de camiseta da seleção.

Famílias tirarão selfies com PMs e huskies siberianos com bandanas alviverdes latirão para os pretos esquálidos que passam por entre os bombados e as bombadas catando latinhas pelo chão.

No Rio, formarão o “Cordão do Bola Branca”, “Misoginia é mais que amor”, “Cordão do Ratatá”, “Minionbloco”. Senhoras entrevistadas na folia, sem máscaras, dirão ao jornal do SBT estar muito impressionadas: “Só cidadão de bem! Nem parece o Brasil! Parece a Fête de la music, em Paris! Se bem que em Paris até tem uma gente diferenciada. Árabe, africano, esses problemas de lá. Aqui não, ó! Só gente normal!”.

Bolsonaro talvez surja nesses blocos com um abadá de caveira. Talvez suba num deles e esbraveje à multidão: “Dois anos atrás, no que tange à questão aí de bloco de Carnaval, o que tinha era golden shower e ideologia gay, talquei?! Agora acabou! Tá tudo dominado! Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!”. E o telecoteco que se ouvirá não será dos tamborins, mas dos tiros para o alto, dados pelos necrófilos.

Soa a loucura, como tudo o que estamos vivendo nos últimos anos, mas será apenas mais uma volta do parafuso num país que parece ter decidido suicidar-se coletivamente. Estamos indo bem. Já passam de 220 mil mortos —e contando. Somos os melhores do mundo em matar por Covid, segundo o Lowy Institute, de Sydney. Parabéns aos envolvidos! Ratatatá! Telecoteco! Zirigui-bala-dum-dum!

Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

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FORA BOLSONARO !

Marco Antonio Villa, ISTOÉ

O impeachment de Jair Bolsonaro entrou na ordem do dia. Não é mais possível ignorar que o impedimento do presidente da República é condição indispensável para o país possa caminhar para a estabilidade política. Só assim o País conseguirá enfrentar as crises sanitária e econômica. Não será tarefa fácil, pois diferentemente de 1992 e 2016, desta vez a situação é muito mais complexa. Há a pandemia, uma tragédia humanitária que está impactando o Brasil. Ela também impossibilita as clássicas mobilizações de rua que estão intrinsecamente vinculadas aos movimentos pelo impeachment. E, tudo indica, passaremos todo o ano de 2021 ainda assolados pelo novo coronavírus. No campo econômico temos a combinação de uma dramática queda do PIB nacional, combinado com uma crise econômica internacional, o que não ocorreu tanto em 1992 e 2016. Naqueles anos tivemos recessão interna (-0,5% e -3,3%, respectivamente), mas a economia internacional estava em crescimento, algo próximo a 3%. O quadro atual é muito mais dramático e — não custa reafirmar — com o agravante da pandemia.

O extremismo bolsonarismo — uma combinação do velho reacionarismo brasileiro com ideias, ainda bem que vagas, fascistas e nazistas — são um fator distintivo em relação aos outros dois impeachments. Bolsonaro foi destruindo as conquistas democráticas da Constituição de 1988. Agiu como os nazistas que, na Alemanha, nunca esconderam a defesa do totalitarismo e foram crescendo eleitoralmente aproveitando-se da estrutura democrática edificada pela Constituição de Weimar para, ao chegar ao poder, destruí-la sem piedade. É o que está tentando, no Brasil. E, infelizmente, tem obtido êxito. Basta ver que todas as PMS estão insubordinadas e não atendem ao comando dos governadores: vitória de Bolsonaro. Conseguiu fomentar a indisciplina nas Forças Armadas jogando os jovens oficiais contra os generais legalistas. E mais: cooptou parte da oficialidade com cargos na máquina de Estado — são centenas — regiamente remunerados, além de ter armado milhares de apoiadores com a liberação irresponsável para a compra de armas e munições.

É um cenário explosivo. Deve ser somado, ainda, o fim do auxílio emergencial, o aumento do número de pobres e miseráveis, a fome que atinge, hoje, mais de 20 milhões de brasileiros, a disparada da taxa de desemprego, a quebradeira de micros e pequenos empresários. A recuperação em “V” não passou de mais uma miragem de Paulo Guedes. A hora de agir politicamente é agora, sob pena de uma convulsão social.

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O GRITO DO SILÊNCIO

Affonso Celso Pastore, O Estado de S.Paulo

É compreensível que parte do setor privado evite criticar publicamente o governo, mas seu silêncio não significa aprovação: os preços dos ativos gritam por eles. Ao longo de 2020, a piora da situação fiscal decorrente da péssima reação do governo à pandemia provocou um crescimento sensível dos prêmios de risco, destacando-se a depreciação do real, que, após uma pausa no final do ano, prosseguiu recentemente com acentuada volatilidade. Embora poucos acreditassem que Bolsonaro pudesse reconhecer seus erros, e passasse a exercer a Presidência com uma competência nunca demonstrada, muitos apostavam que a liquidez internacional levaria à valorização do real, reduzindo a pressão sobre a inflação. Com isso, o Banco Central, que mantém uma elevada credibilidade, talvez pudesse retardar um pouco o início da inevitável normalização monetária, fazendo o que está ao seu alcance para ajudar na recuperação da economia. 

É possível que a política fiscal expansionista de Biden venha a reforçar o enfraquecimento do dólar, mas este já vem ocorrendo significativamente desde maio de 2020, quando teve início uma política monetária com níveis recordes de estímulos. Foi em maio que o Federal Reserve derrubou a taxa dos Fed funds para 0,25% ao ano (o seu zero bound), foi em maio que comprou mais de US$ 2,5 trilhões de treasuries, que é perto de 2 vezes o total de ativos financeiros comprado durante o QE da crise de 2008, e não por acaso foi em maio que o dólar começou a se enfraquecer. Se a liquidez internacional fosse decisiva para valorizar o real, a partir de maio este teria de seguir a trajetória da mediana de uma amostra de 20 países emergentes, que se valorizou acompanhando de perto o enfraquecimento do dólar. Em 2020 e no início de 2021, o comportamento do real não tem nada a ver com o enfraquecimento do dólar. É explicado apenas por causas domésticas. 

O setor privado nunca teve ilusões a respeito de Bolsonaro, mas agarrava-se a uma narrativa “construtiva”. A existência de mais de uma vacina com eficácia comprovada levaria a uma recuperação já em 2021, melhorando o mercado de trabalho, e o desembolso da “poupança precaucional” (ou circunstancial) neutralizaria a contração vinda do “despenhadeiro fiscal”, parte do qual era devida ao fim da ajuda emergencial. Mas, para ser “construtiva”, a narrativa tinha de subestimar a incompetência do governo.

Foram patéticos os lances de ópera bufa na busca desesperada pela obtenção de algumas vacinas vindas da Índia com o único objetivo de apressar a cerimônia de início da vacinação, enquanto o governo se omitia em enviar o oxigênio que minorasse a tragédia de Manaus. Mas Bolsonaro não estava interessado na vacinação e no sofrimento dos atingidos pela pandemia, e, sim, em iniciar a vacinação antes de Doria, em São Paulo. O que estava em jogo não era a solução do problema sanitário, e, sim, o aumento de seu cacife na disputa para 2022. 

Como reagirá o governo à queda da popularidade, à desaceleração do crescimento econômico e ao risco de abertura de um processo de impeachment? Especialistas afirmam ser difícil a sua aprovação diante dos 30% de apoio mantidos pelo presidente. Mas lembro que estes 30% não são uma constante da natureza, e que juristas de renome já alinharam abundantes razões para a abertura do processo de impeachment.

A perda de popularidade e a piora do estado da economia não deixarão inertes nem o governo e nem o Centrão. A este interessa que Bolsonaro continue presidente, não porque seja bom para o Brasil, mas por lhe garantir a ocupação de ministérios e outras benesses do governo. Contudo, é difícil acreditar que sejam aprovadas reformas impopulares que contrariem interesses de grupos políticos, inclusive os do próprio Centrão. O mais provável é que seja enviada ao Congresso uma nova emenda emergencial permitindo o aumento de gastos que não serão computados para o cálculo do teto, que por isso será cumprido. Mas diante do desastroso desempenho do governo, não posso sonhar que imporá as necessárias medidas compensatórias que levem à consolidação fiscal, com a qual nunca se comprometeu de fato.

O dano causado pelo governo continuará a se manifestar através do pífio desempenho da economia e dos preços dos ativos, sobretudo da taxa cambial. Mas a contagem regressiva para a reeleição já está correndo, e as reformas necessárias, mas impopulares, ficam cada vez mais distantes, aumentando a cada dia o custo da complacência com o governo atual.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.

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'BOLSONARO BUSCA A POLÊMICA PARA DISFARÇAR A INCOMPETÊNCIA'

Naiara Galarraga Gortázar, EL PAÍS

‘Bolsonaro busca a polêmica para disfarçar a incopetência’, diz Flávio Dino

O governador do Maranhão, Flávio Dino (São Luís, 52 anos), tem uma presença no debate nacional brasileiro muito acima do que indicaria o peso real desse pequeno estado litorâneo, muito desigual, situado no extremo leste da Amazônia Legal. Juiz e deputado antes de romper, há seis anos, a hegemonia da oligarquia local, combina sua filiação ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) com um esquerdismo pragmático e a fé católica. Dino recebeu este jornal no impressionante palácio do governador, em sua cidade natal, momentos depois da posse de Joe Biden nos Estados Unidos. Falou de Bolsonaro, da pandemia, da Amazônia… Só tirou a máscara para posar rapidamente para as fotos.

Pergunta. Como um governador comunista convive com um presidente de extrema direita?

Resposta. É uma relação difícil porque tem a diferença político-ideológica e, neste caso, há uma singularidade. Bolsonaro é uma figura que prioriza o confronto, é o que integra sua identidade política desde a origem. Ele busca sempre uma polêmica até para disfarçar as suas incompetências. A convivência é muito difícil com todos os Estados. É o período da nossa história em que há o maior afastamento entre o Governo federal e os Governos estaduais de um modo geral.

P. O senhor afirmou em seu Twitter que “o fim do Governo Trump é (…) um anúncio da alvorada que virá no Brasil”. Acredita que isso influenciará tanto nas possibilidades de reeleição de Bolsonaro?

R. É um fator que amplia o isolamento de Bolsonaro. Ele já tem muitas dificuldades no cenário internacional. Trump era, praticamente, seu único aliado e agora ele ficou totalmente sem apoio. Em um mundo interconectado, esse isolamento acaba sendo um problema maior do que seria 200 anos atrás. Vemos consequências em vários âmbitos. Um Governo isolado tem muita dificuldade em encontrar saídas para problemas que transcendem as fronteiras nacionais. Os fluxos de comércio, a temática ambiental e a da saúde pública em um contexto de pandemia são temas que ultrapassam as fronteiras do país, então obviamente as soluções são supranacionais. Quando você tem um Governo que pratica e se orgulha do isolamento, isso implica em dificuldades práticas, como estamos vendo agora com as vacinas.

P. Como Maranhão está se organizando em relação à vacina?

R. Desde o início da pandemia, tivemos a criação de uma novidade, que é uma diplomacia dos entes subnacionais. Tradicionalmente, quem faz relações internacionais é a esfera Federal, não a estadual. Ocorre que por conta desses fatores, o Governo Federal deixou uma lacuna que tem que ser preenchida de algum modo. Desde o início da pandemia procuramos compensar isso. Isso se deu com os respiradores, por exemplo, e com insumos de um modo geral. Agora todos nós estamos procurando saídas que complementem o programa nacional [de imunização]. Mas, até agora o mercado está realmente muito difícil. Os países produtores de insumos e vacina estão priorizando as suas próprias nações. Não vislumbro que consigamos, a curto prazo, vacinas por vias próprias. Não descartamos nenhuma vacina. Temos dialogado muito com a Pfizer também, mas na medida em que o Governo brasileiro não se interessou pelas vacinas da Pfizer, isso dificultou o acesso dos Estados. E esse foi um dos grandes erros do Governo Federal: ele deveria ter ao menos oferecido aos Estados. Eu teria comprado uma parte, outros também. E hoje nós teríamos uma conjugação de esforços entre a esfera federal e estadual.

P. O fim do auxílio emergencial para atenuar os efeitos da pandemia é outro problema grave. Agora toda a pressão recairá sobre os Estados e municípios. Como enfrentará essa situação?

R. É um problema muito profundo. Além de a probreza extrema se configurar ainda mais nitidamente, temos também o fato de que pessoas serão excluídas do mercado de consumo e isso repercute na criação de empregos. É um erro monumental terminar o auxílio emergencial. Se ele foi criado para mitigar os efeitos da pandemia e ela continua tão viva quanto está, não há razão material para extingui-lo. Acredito que a responsabilidade fiscal não pode caminhar separada da responsabilidade social. São dois pilares de um bom Governo. Só existe equilíbrio fiscal quando existem também compromissos sociais, pois isso explode de algum jeito, inclusive do ponto de vista fiscal. Se as pessoas não comem, elas adoecem. Você tira a despesa do auxílio emergencial e objetivamente joga em outras políticas públicas, como o próprio sistema de saúde. O certo seria prorrogar a ajuda até meados deste ano, quando acredito que veremos os efeitos da vacinação. Mas temos que procurar, de algum modo, diminuir o desastre. Não tenho um Banco Central, não emito moeda, não posso contrair dívida, então a margem de manobra fiscal é muito menor. Tenho procurado adotar políticas para determinados públicos. Implementamos um auxílio para os catadores de resíduos sólidos, desde abril distribuímos mais de 300.000 cestas básicas para famílias e vou lançar um cheque de 600 reais [pagamento único] para que algumas famílias possam comprar produtos para permitir algum tipo de consumo, para ajudar o comércio. E fizemos um plano de obras públicas de 559 milhões de reais. São ações de reduções de danos.

P. Como presidente do consórcio de governadores da Amazônia legal o senhor tem medo que Biden faça pressão comercial para que o Brasil mude sua política ambiental?

R. É um risco. Temos uma preocupação global justa. Mas há também outros interesses que se manifestam e que se aproveitam da temática ambiental. Sabemos que a agricultura brasileira enfrenta dificuldades desde que o Bolsonaro assumiu porque ele liberou geral na questão ambiental, chancelou políticas de desmatamento e de queimadas ilegais. No cenário internacional, os concorrentes do Brasil podem querer se aproveitar. Isso tudo se junta com o isolamento do Brasil, um país que não tem hoje alianças. E isso compõe um cenário de muita fragilidade. Na esfera internacional, mais importante do que punir o Brasil é fortalecer os esforços de quem quer proteger a Amazônia, por exemplo, o consórcio de governadores da Amazônia, que tem uma posição diferente daquela do Governo Federal. Há muito pluralismo político-partidário no consórcio, mas todos concordam que é negativa para o Brasil essa ideia de que não existe lei ou controle na Amazônia. Os grandes produtores do Mato Grosso, que faz parte da Amazônia Legal, sabem que o risco de sanções internacionais é grave. Biden falou de um fundo de 20 bilhões de dólares. Ótimo. Quer constituir um fundo internacional, que envolva, inclusive, capitais privados? O consórcio tem todo interesse nisso. Esse fundo poderia servir para o pagamento de serviços ambientais porque isso vai viabilizar que comunidades sejam financiadas, que se ofereça práticas alternativas para que as pessoas vivam sem devastar a floresta.

P. Será possível forjar uma frente ampla de oposição a Bolsonaro para as eleições presidenciais de 2022?

R. Acredito que num primeiro momento teremos uma ou duas candidaturas mais para a esquerda, e candidaturas mais a centro-direita. Estamos vivendo um processo interessante que é a eleição da Mesa da Câmara dos Deputados em que se formou uma frente ampla em torno de Baleia (Rossi), que é do MDB, de centro-direita, mas que praticamente toda a esquerda está apoiando. Isso sinaliza um momento diferente. Há dois anos, na eleição da Mesa da Câmara, apenas nosso partido na esquerda apoiou Rodrigo Maia. E fomos muito criticados. A história mostrou que estávamos certos porque Maia, que não é da esquerda, foi muito importante na contenção dos intuitos golpistas e ditatoriais de Bolsonaro. É um sinal positivo de que mesmo que no primeiro turno você não tenha uma união ampla, no segundo é possível. É uma mudança qualitativa importante. Todos em torno da compreensão de que o Brasil, a Amazônia, não aguenta mais quatro de Bolsonaro.

P. O que o senhor tem de comunista?

R. É claro que o conceito de comunismo e socialismo não é o mesmo do século XIX. O mundo não é mais o mesmo e a temática do trabalho é diferente. Costumo dizer no PCdoB que o símbolo da foice e do martelo não expressa mais o mundo do trabalho. Não se tem mais uma classe operária como se imaginava no século XIX porque se tem uma economia de outro feitio. O fator de distinção [da esquerda] é como você lida com a desigualdade. Não se pode tratar a desigualdade como algo inevitável, natural. Por isso me considero de esquerda, porque sou um militante contra as injustiças sociais e acredito que o papel do Estado e das políticas públicas é insubstituível para corrigir uma tendência do mercado de concentração de riqueza na mão de poucos. Não é eliminar o mercado. E essa é outra distinção importante do nosso pensamento em relação à esquerda clássica.

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PALÁCIO E PICADEIRO, INCONTINÊNCIAS DE BOLSONARO

Roberto Romano, O Estado de S.Paulo

Das cenas grotescas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a que foi exibida no último dia 27 de janeiro é das mais repulsivas. Cercado por tietes, ele exibiu todo o ódio à imprensa. A causa do destempero encontra-se na denúncia sobre os estranhos gastos do Executivo federal com alimentos. Um estadista responderia com números e documentos. Mas, ao proferir, sorrindo, vocábulos pornográficos, o governante recebeu ovações de arruaceiros e chaleiras. Tal vitupério exige processo judicial por indecente uso do cargo. Frases que no pior bordel são evitadas, nos lábios de um presidente causam asco.

O “mito” não entenderá a citação abaixo, pois sua força cognitiva é pequena. Mas entre ministros, políticos que a ele se aliam e antigos apoiadores talvez exista algum saber. A eles me dirijo. Ao discutir a governabilidade, diz Spinoza: “A república não pode fazer com que os homens (…) respeitem o que gera riso ou náusea. (…) Para garantir o poder é preciso guardar as causas do medo e do respeito, caso oposto não há mais um Estado. É impossível para os que operam o mando político (…) bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por eles mesmos estabelecidas, pois assim eles perdem a majestade e mudam o medo em indignação e o estado civil em estado de guerra” (Tratado Político). Tais enunciados vêm de Maquiavel, pensador das práticas que permitem manter o poderio civil.

Repito: o presidente nada compreende de semelhantes teses. Mas quem negou sua utilidade perdeu cargos, para não mencionar a cabeça. Assim foi com Carlos I da Inglaterra e Luís XVI na França. Sempre chega a vez de quem imagina a si mesmo como impune e infenso às leis.

O decoro na fala e na postura corporal integra toda autoridade política, jurídica, religiosa, militar. Menciono outro escrito que certamente não será compreendido pelo sr. Jair Bolsonaro e seus marombeiros. Trata-se de Hannah Arendt: “Se for preciso verdadeiramente definir a autoridade, deve-se fazê-lo opondo-a ao mesmo tempo ao constrangimento pela força e à persuasão por argumentos”. No setor público ou privado cada um reconhece a superior hierarquia de quem ostenta autoridade. Não é pelo vezo de prender ou censurar, perseguir ou caluniar aos berros os oponentes que alguém consegue respeito público.

Dito de outro modo: se você precisa gritar para que lhe obedeçam, sua autoridade não existe. Inteligência, decoro, respeito à hierarquia, autoridade: um estadista pode receber da vida doses desiguais desses elementos. Ele compensa a fraqueza de um com a força de outro. Mas o dirigente que enxovalha o seu cargo não tem autoridade, só lhe cabe o título atribuído por Spinoza: palhaço.

Todo clown possui dupla face: a risível e a trágica. A primeira é exibida a cada novo dia pelo sr. Jair Bolsonaro. A trágica surge em decisões imprudentes e impudentes durante a pandemia. Tantas sandices comete o “mito” – e aí vai um alerta aos militares responsáveis pela força física estatal – que podemos temer: a indignação diante do descalabro pode “mudar o estado civil em estado de guerra”.

Aliás, são hábitos do líder a mão armada e o incentivo aos instrumentos da morte que impulsionam fraturas civis. Junto vem o boicote pérfido a vacinas como a Coronavac – esperanças de vida – por mesquinhos alvos políticos. A teoria infame de Carl Schmitt é praticada por ele: a política como forma de gerar o inimigo. E assim são corroídos os elos que garantem a união interna do Estado.

Recordo o dito usado por João de Salisbury (Policraticus) sobre governantes desprovidos de saber. Rex illiteratus quasi asinus coronatus est (um rei iletrado é quase um asno coroado). Para governar urge mover conceitos políticos, militares, filosóficos, jurídicos e outros. A edificação do Estado moderno se norteia pelo preparo do governante. Erasmo publicou um tratado sobre o tema, Institutio Principis Christiani. Ele cita Salisbury: “Liberdade real e virtude só podem ser obtidas onde existe a liberdade de palavra. O bom príncipe do bom Estado deve aceitar pacientemente as palavras livres, quaisquer que elas sejam”. Os turpilóquios de Bolsonaro contra a imprensa ameaçam o verbo independente. Erasmo adverte contra os aduladores. Na educação do príncipe o cavalo ensina a governar, pois não aceita violência e recusa imperícia ou lisonja. O sáfaro que ignora tais peculiaridades equinas vai ao chão. Aduladores, como os do espetáculo obsceno indicado no início deste artigo, lambem botas do poderoso ocasional. Se ele perde força, as línguas de aluguel procuram outra fonte de poder.

Gabriel Naudé, autor das Considerações Políticas Sobre os Golpes de Estado (1640), louva o saber do governante e recorda o dito de Luís XI: “Quem não sabe dissimular não sabe governar”. Se o líder pensa com os intestinos, em vez do cérebro, e não domina ódios pessoais, perde acatamento político.

Os destemperos de Jair Bolsonaro evidenciam carência de autoridade, decoro, saber. Ele quer os poderes do Legislativo e do Judiciário. O lugar que lhe cabe, no entanto, não é no palácio, mas na arena ou picadeiro.

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)

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VAMOS INSISTIR ?

Arminio Fraga, Folha de S.Paulo

Esbarrei recentemente no livro “A Bahia do Rio de Janeiro – Sua História e Descripção de suas Riquezas”, por Augusto Fausto de Souza, publicado em 1882.

Logo de cara, o autor nos brinda com umas linhas do poeta Velho da Silva (1880): “Guanabara gentil, formosa e bela, remanso côr de anil, de alvas espumas”.

Listando fatos do século 16, o autor menciona (pág. 28) “o estabelecimento da Armação para a pesca das baleias, que infestavam a bahia”.

Mais adiante (pág. 157), citando o “celebre capitão inglez Cook (1768)”: “O Rio de Janeiro é uma optima estação para a escala dos navios; a bahia é segura e commoda, o clima é bom, ainda que quente, e eu nunca vi, como ahi, tanta variedade de peixes, para cuja pesca o sitio é muito apropriado”.

Passados quase 150 anos, cá estamos, natureza destruída pelo homem, torcendo para que, com o novo marco legal do saneamento, seja possível a despoluição prometida para a Olimpíada. Imagino que em São Paulo a história do rio Tietê seja parecida e permita sonhos semelhantes. O exemplo do rio Tâmisa em Londres sugere que é possível. Seriam símbolos de uma virada maior.

Será que vamos permitir semelhante degradação da Amazônia? A ciência nos informa que estamos próximos de um “tipping point” a partir do qual a floresta não mais se regenerará. As consequências seriam bem mais graves do que os desastres das águas do Sudeste. É inaceitável correr este risco, suicida mesmo. Mas a boiada está passando e estamos, sim, correndo risco.

O risco ambiental é uma enorme ameaça que nos assola, mas nem de longe a única. O Brasil vive um período prolongado de agressões frequentes à imprensa, balas e armas desmarcadas, descaso pela imagem do país, e muito mais. O caso da saúde talvez seja o mais dramático, pois envolve desprezo escancarado pela ciência e suas recomendações, falta de planejamento e, portanto, descaso com a vida e enormes e desnecessários custos sociais e econômicos. Não são fatos aleatórios —são sintomas de um mesmo fenômeno, de uma mesma origem.

Sem minimizar o impacto da devastadora pandemia, parece-me claro que carecemos de um rumo.

A política partidária é fragmentada, despida de posições programáticas claras, sem visões e propostas abrangentes para submeter ao eleitorado. Sim, o Congresso tem dado respostas importantes aqui e ali, mas tipicamente mais reagindo a problemas do que criando soluções.

A agenda econômica cantada liberal enfrenta cada vez mais dificuldades de desenho e execução, interditada em boa parte pelo próprio mandatário máximo da República. A recessão do ano passado foi menor do que se previa, mas a situação fiscal permanece insustentável e a social, precária.

No que tange às agendas de costumes e de combate à desigualdade, o quadro é ainda mais desolador, pois tem havido retrocesso.

Diante das dificuldades patentes neste início de 2021, o tema do impeachment entrou no radar, com manifestações abertas de atores de diferentes setores.

Inegavelmente não é bom sinal que um país esteja a toda hora “impichando” seu presidente. Por outro lado, me parece bem mais grave que um país conviva com crimes de responsabilidade nos altos escalões de sua hierarquia. Intolerável mesmo.

Sem essa intolerância fica impossível abraçar o Estado de Direito e o império da lei para todos, condição necessária para o pleno desenvolvimento de uma nação.

Na prática, a imputação de responsabilidade nem sempre é clara. Há crimes e crimes, com diferentes consequências. Cabe ao Congresso examinar cada caso em seu contexto, avaliar se abre o processo e, em caso afirmativo, ponderar sobre as consequências e decidir.

Posso apenas dizer que, do ponto de vista econômico, social e institucional, os custos de mais do mesmo são imensos e insustentáveis.

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COM O CONGRESSO NO BOLSO

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

Eleições e jogos de futebol não se ganham de véspera, mas, pelo andar da carruagem, dos cargos e emendas extras, os dois grandes vencedores na disputa de amanhã pelo comando da Câmara e Senado serão o presidente Jair Bolsonaro e o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). O grande derrotado tende a ser o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que teve importante papel na longa presidência da Câmara, mas tropeçou na reta final.

Assim como os militares aderiram à velha boquinha e à subserviência por conveniência que tanto criticavam nos políticos, Bolsonaro mergulhou de cabeça na velha política, na compra de votos, no toma lá dá cá, no Centrão e até nas mordomias que estufava o peito para condenar. Era tudo de boca para fora. Agora cai o pano, caem os pruridos, os escrúpulos.

Na mesma semana em que o governo anunciou o maior rombo das contas públicas da história, com um déficit de R$ 743,1 bilhões, ou 10% do PIB, o Estadão nos informa que o Planalto despejou R$ 3 bilhões em recursos “extras” – além das emendas parlamentares tradicionais – para 250 deputados e 35 senadores. Não é pura coincidência ser justamente agora, às vésperas das eleições no Congresso.

Dinheiro para prorrogar o auxílio emergencial não há e fórmulas para ampliar a abrangência e o valor do Bolsa Família ainda não estão no ar, mas o site Metrópoles revelou gastos de R$ 2,2 milhões com chicletes e R$ 15,6 milhões com leite condensado, para dar “energia” aos soldados. Bolsonaro, sendo Bolsonaro, reagiu atacando a imprensa e contaminando o ar com palavrões. E se fosse no governo Lula?

É sobre os escombros de suas promessas de 2018 que o presidente vai construindo a sustentação de seu governo, de suas ideias, projetos e pautas demolidoras. Foi assim que ele moldou uma vitória e tanto no Congresso, onde desfilou por 28 anos. A gente achava que não tinha aprendido nada, mas aprendeu tudo direitinho.

Com a faca e o queijo na mão, mais chiclete e leite condensado à vontade, Bolsonaro usa cargos e acena com ministérios para satisfazer a gula da turma. É preciso explicar: o Centrão está louco pelas vagas, mas Bolsonaro está louco é para cooptar parte do DEM (o próprio Alcolumbre?), MDB e PSDB para o governo. Seu objetivo é rachar o centro. A esquerda racha sozinha.

No Senado, Alcolumbre escolheu o favorito Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o levou de bandeja para Bolsonaro e viabilizou sua vitória, enquanto o MDB fazia a lambança de sempre e a senadora Simone Tebet (MDB-MS) achava possível ganhar com uma campanha de ideias, princípios e juras de independência. Um sonho de verão. 

Na Câmara, o líder do Centrão Arthur Lira (PP-AL) é favorito e única chance de mudança de última hora é que, com nove candidatos, três têm potencial para ter uns votinhos, forçar o segundo turno e se unir em torno de Baleia Rossi (MDB-S). Outro sonho de verão.

Bolsonaro perdeu a guerra da primeira vacina e da primeira foto para João Doria, mas ri à toa diante da perspectiva de vitória para Rodrigo Maia, candidato a ser o grande derrotado amanhã. Uma pena. Em três mandatos consecutivos na Presidência da Câmara, ele se superou, galgou vários degraus na hierarquia política e assumiu a cara e a voz da oposição a Bolsonaro.

Sempre pode haver surpresas (vide Severino Cavalcanti em 2005), mas Maia blefou com a reeleição no STF, demorou a definir um candidato, superestimou suas armas diante do arsenal do Planalto e, assim, ameaçou sua posição de ponte entre líderes e partidos de centro para 2022.

Ele, porém, tem 50 anos e oxigênio político nesse deserto de homens e ideias. O mundo dá voltas, a política é como nuvem e o Brasil precisa, mais do que leite condensado e chiclete, de seus principais quadros para enfrentar o que está aí.

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A PAJELANÇA DAS VA$$INAS

Elio Gaspari, O GLOBO

Çábios do Planalto e libélulas da plutocracia jogaram o andar de cima num dos maiores vexames dos últimos tempos. Do nada, na semana que começou no dia 18, apareceu a ideia de juntar pelo menos 12 grandes empresas brasileiras para comprar 33 milhões de vacinas Oxford/AstraZeneca. Metade dos imunizantes iriam para o SUS e a outra metade serviria para vacinar funcionários das empresas e seus parentes.

Deu-se um fenômeno raro na história do capitalismo. Em poucos dias descobriu-se que eventuais compradores não queriam entrar no projeto e que o eventual vendedor também não estava oferecendo a mercadoria.

Durante a semana o assunto foi discutido com o presidente Jair Bolsonaro, e o governo avalizou a operação na sexta-feira (22), com uma carta enviada ao fundo BlackRock, acionista da AstraZeneca.

Na segunda-feira (25), a repórter Julia Chaib mostrou a girafa, informando, desde logo, que pelo menos seis das empresas listadas já haviam se dissociado da iniciativa. Se a Ambev, a Vale, o Itaú, o Santander, a JBS e a Vivo não queriam entrar no negócio, algo havia esquisito nele. Nos dias seguintes, 9 das 12 empresas listadas haviam saltado.

As empresas saltaram por diversos motivos. O preço de US$ 23,79, quatro vezes superior aos US$ 5,25 do mercado, não fazia sentido, nem era explicado. Também não se conhecia a engenharia do negócio. Além dessas questões, havia também o risco da associação das marcas de grandes empresas a uma operação fura-fila.

A proposta viria do fundo BlackRock, a quem foi dirigida a carta do governo. O presidente-executivo da empresa no Brasil, Carlos Takahashi, detonou a mentira para os repórteres Vera Brandimarte e Francisco Goes: “Isso é ficção, se estão usando o nome da BlackRock, é fraude. (…) Nunca tivemos nada a ver com isso e não conhecemos essas empresas e essas pessoas que estão usando o nome da BlackRock. (…) Estes rumores são completamente falsos. Autoridades em todo o mundo já alertaram para esquemas relacionados com a suposta comercialização de vacinas, e é importante que as empresas e os governos se mantenham vigilantes”.

O laboratório, por sua vez, informou que não negocia com particulares. Ademais a AstraZeneca está encrencada com suas encomendas europeias.

O vexame foi produzido pela opção preferencial de um governo disfuncional, que vai da marquetagem à fantasia e dela às fake news sem qualquer constrangimento.

FALA O SANITARISTA GUEDES

Na terça-feira (26), quando já se esfumaçara o consórcio de empresas que enfeitavam a girafa das vacinas privatizadas, Bolsonaro e seu ministro da Economia discutiram a ideia numa palestra para convidados do Credit Suisse. Por que ambos foram discutir uma crise sanitária num banco, só eles sabem. No evento, Paulo Guedes foi matemático: “Para cada funcionário vacinado a empresa tem que entregar uma vacina para o SUS. Não é fura-fila. É uma volta segura ao trabalho. E quem está desempregado, como fica? Vai pegar as doses que forem para o SUS. É evidente que isso é muito bom”, explicou Paulo Guedes.

Melhor que isso só a notícia dada por Guedes no dia 4 de abril, quando só haviam morrido 86 pessoas. Ele anunciou que um amigo inglês lhe oferecia a remessa de 40 milhões de testes por mês. Cadê?

Guedes sustentou que era “evidente” a virtude de uma partilha segundo a qual as empresas do consórcio ficariam com 50% das vacinas. Não era evidente, pois, na quinta-feira (28), uma tentativa de ressuscitar a ideia trabalhava com outro modelo, no qual o SUS ficaria com dois terços das vacinas, indo o terço restante para as empresas. Se um papeleiro de um banco onde Guedes trabalhou perder, em 48 horas, 16% do ativo que negocia, vai para a rua.

A ideia de privatizar parte das vacinas é coisa que ainda não apareceu em outro país. Foi aparecer logo em Pindorama, cujo governo está mal avaliado internacionalmente pela sua conduta diante da pandemia.

Para efeito de raciocínio, admita-se que a ideia deva ser discutida. Isso pode ser feito de forma clara e competente, longe do escurinho dos palácios. As dúvidas que levaram grandes empresas a fugir do modelo que foi posto em circulação ainda não foram respondidas. Por que uma vacina de US$ 5,25 será comprada por US$ 23,79?

O SANITARISMO DA MARQUETAGEM

A ideia do consórcio poderia ter saído de uma equipe de burocratas qualificados, advogados competentes e, com algum luxo, pelo menos um sanitarista, mas na sua primeira versão, apareceram no lance as digitais de diretores das indústrias Gerdau, o onipresente Paulo Skaf, presidente da Fiesp.

Depois da debandada, o programa ganhou uma marca de fantasia (“Coalizão da Indústria”) e uma nova lista passou a circular. Teria até 60 adesões. Fábio Spina, da Gerdau, explica: “A intenção é gerar volumes adicionais de vacinas que, de outra forma, não estariam disponíveis para o Brasil”.

A metalúrgica se mete em política desde 1974, quando, corajosamente, o patriarca Jorge Gerdau ajudou a campanha ao Senado do oposicionista Paulo Brossard e encrencou-se com o Serviço Nacional de Informações. Naquela ocasião, Gerdau explicou-se ao SNI. Mostrou que sua ajuda ao candidato do governo havia sido muito maior e procurou assegurar “a confiança que sempre mereceu da presidência”. Não a tinha, mas essa é outra história.

Na terça-feira (26), depois de passar pelo Palácio do Planalto, Paulo Skaf disse que não participou da primeira operação, mas está pronto para ajudar “naquilo que for necessário”.

Santas palavras. Desde o início da pandemia, inúmeras empresas estão ajudando. O banco BTG, por exemplo, socorreu o Hospital das Clínicas de São Paulo, e uma franquia da Dominó mandou cerca de 30 pizzas para um hospital público do centro do Rio. Em abril, o Itaú Unibanco estourou o teto da filantropia nacional reservando R$ 1 bilhão para iniciativas de combate à Covid, a ser gerido por um conselho independente. Esse dinheiro irrigou dezenas de iniciativas, e R$ 100 milhões financiaram a produção de vacinas do Instituto Butantan e da Fiocruz. O projeto recebeu mais R$ 300 milhões com a adesão de empresas e pessoas físicas. Contrapartida? Zero.

GATO NA TUBA

Enquanto não for conhecida a engenharia financeira desse consórcio e a planilha de custos que levou o preço das vacinas de US$ 5,25 para US$ 23,79, ficará o medo de que haja um gato nessa tuba.

Em março de 2019, o capitão Bolsonaro mal tinha chegado ao palácio e começou uma negociação em torno do preço da energia gerada por Itaipu. Foi assinado um acordo, o presidente da estatal de energia paraguaia pediu demissão, começou uma investigação no Congresso e por pouco o governo não caiu. Em agosto, o acordo foi revogado. Havia gato na tuba, basta lembrar que o atravessador, vendo-se exposto, apressou-se em revelar que havia perdido seu celular.

Caíram o chanceler, o embaixador do Paraguai no Brasil e o presidente da estatal que acabara de ser nomeado.

Por falar em gatos e tubas, até hoje não se sabe como foi produzido o edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que gastaria cerca de R$ 3 bilhões comprando equipamentos eletrônicos para a rede pública de ensino. Os 255 alunos de uma escola mineira receberiam 30.030 laptops. Deve-se à AGU de Bolsonaro a descoberta da bizarria, provocando a anulação do edital.

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BOLSONARO PAGA O PREÇO DO ESTELIONATO ELEITORAL PARA BLINDAR O GOVERNO

Bruno Boghossian, Folha de S.Paulo

Duas versões de Jair Bolsonaro circulam em Brasília. Num dia, o presidente diz a apoiadores na portaria do Palácio da Alvorada que não pretende trocar ministros para acomodar aliados políticos. Depois, a portas fechadas, negocia com os caciques do centrão indicações para o primeiro escalão do governo.

A aliança de Bolsonaro com esses partidos é um caso típico de estelionato eleitoral. Durante a campanha e por mais de um ano de mandato, o presidente sustentou a promessa de que não faria um loteamento político do governo. Aos poucos, ele cedeu espaço aos parlamentares, sem se preocupar com os custos da violação desse princípio.

O cálculo do Planalto é simples. A entrada do centrão em postos-chave frustra eleitores do presidente, mas o governo vê benefícios políticos que superam os riscos da operação. Bolsonaro topa pagar o preço de desmontar um item central de sua plataforma porque sabe que os apoiadores são mais leais do que os políticos que mantêm o governo de pé.

O presidente já provocou ranger de dentes entre seguidores um punhado de vezes. Bolsonaro irritou sua base com a demissão de Sergio Moro, a nomeação de Kassio Nunes Marques para o Supremo e a aliança para eleger Arthur Lira (PP) na Câmara, mas conseguiu o perdão dos eleitores mais fiéis. Os partidos do centrão não seriam tão generosos.

Essas siglas oferecem apoio para blindar o presidente no Congresso e conter o desgaste político que poderia abreviar seu governo, mas esperam que os compromissos da negociação sejam honrados pelo Planalto. Nessa mesa, a velha retórica de campanha de Bolsonaro não tem valor, em nenhum dos dois lados.

O estelionato é mais um reflexo da inadequação do presidente para o cargo. Bolsonaro acreditou que poderia governar em conflito com o Congresso para abrilhantar seu figurino antissistema. As investigações que cercam seu grupo político o obrigam a decidir se prefere trair os eleitores ou a nova tropa de choque. A escolha parece estar feita.

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CORRUPÇÃO CONTRA IMPEACHMENT

Janio de Freitas, Folha de S.Paulo

A numerosa compra de parlamentares com verbas e cargos públicos, praticada por Jair Bolsonaro e sua tropa para conduzir as eleições internas de Câmara e Senado, viola a Constituição no princípio básico da independência entre os Poderes. Mas o objetivo maior desse ataque ao regime, definindo amanhã quem serão os novos presidentes da Câmara e do Senado, não é a propalada aprovação de reformas. É o bloqueio dos requerimentos de impeachment, os cerca de 65 relegados (até a sexta-feira em que escrevo) e os vindouros.

Bolsonaro, ao fim de reunião com deputados a meio da semana, ofereceu a confissão que, no entanto, não suscitou a defesa da Constituição pelos Poderes disso incumbidos. “Vamos, se Deus quiser, participar, influir na [eleição da] presidência da Câmara.” O que já ocorria e, no Senado, começava a acelerar-se. Nos dois plenários, a venalidade do atual MDB consagrou-o como “partido da bocona”. E o DEM de ACM Neto voltou por uma rachadura ao comércio de tóxicos sob a forma de votos. O DEM de Rodrigo Maia ainda respira, mas enfraquecido por várias facas nas costas.

A escolha de Bolsonaro para chefiar a sua guarda pessoal na Câmara foi por ele explicada com grande antecedência, quando se referiu ao que forma o centrão: “é a nata do que há de pior no Brasil”. Material que ele conhece. Arthur Lira (PP-AL) vem de lá, e com posição de liderança. Um trunfo para escapulir da Lei Maria da Penha e, se não de outras marias, por certo de outras leis.

Bolsonaro supõe comprar uma fortaleza inexpugnável anti-impeachment. É, de fato, um esquema bem nutrido a cifrões e carniça. Seu histórico pessoal no governo, porém, não é menos forte para servir aos críticos. E ainda haverá sua nova produção a cada dia, com os adendos dos pazuellos e demais sequazes.

Nenhum obstáculo deterá o embate entre o jogo pesado de Bolsonaro e a necessidade do impeachment. Só duas eventualidades poderiam impedi-lo: o golpe militar, difícil sem a improvável adesão de Marinha e Força Aérea, ou a retração dos conscientes da terrível situação nacional.

A visão de que o impeachment não tem base pública peca por superficialidade excessiva. As as evidências disponíveis já são bem nítidas. Não é à toa que 380 líderes religiosos —bispos, padres, pastores, bispos, frades de diferentes segmentos cristãos— juntam-se em eloquente pedido de impeachment. Hoje são ex-procuradores do alto escalão da Procuradoria-Geral da República que o fazem. Juristas já o fizeram. A Comissão Arns. Uma quantidade inumerável de artigos, comentários em TV, entrevistas qualificadas, pronunciamentos, diários todos e crescentes na presença e na ênfase.

As limitações pela Covid impedem passeatas eloquentes, mas grupos menores não se privam de sair com os seus “Fora, Bolsonaro”. E, para encurtar, há, sim, valiosa demonstração do eleitorado, por meio de índices colhidos pelo Datafolha. Há uma semana, 53% não aprovavam o impeachment, ao menos agora, e 42% o desejavam. Quase meio a meio. E, observação essencial, a opinião favorável a Bolsonaro é proveniente, em parte volumosa, do recebimento de auxílio pandemia e da expectativa de tê-lo outras vezes. É comum, entre os recebedores, atribuir a Bolsonaro o auxílio dado, na verdade, pelo Congresso.

Como complemento ainda mais revelador do ambiente, apenas nos 30 dias entre 20 de dezembro e 20 de janeiro a avaliação ótimo/bom de Bolsonaro caiu de 37% para 31%; a regular caiu de 29% para 26%; e a de ruim/péssimo subiu de 32% para 40%. Se isso nada demonstra, voltemos a dormir o sono do nosso pesadelo, e pronto.

O argumento de que a eventual substituição de Bolsonaro por Mourão nada mudaria até parece um desatino bolsonarista. Ser mais inteligente e preparado do que Bolsonaro não é vantagem, Mourão já exibiu os componentes goriliformes da sua formação no Exército, mas não é procedente, nem justo, descê-lo ao nível de Bolsonaro. Ao contrário, tudo indica ser o mais inteligente e preparado dos generais instalados na cúpula do governo. Não justifica esperança, mas não é provável que fizesse coisas como matar incautos com a recomendação de cloroquina.

Este país já de 220 mil mortes figura como o de pior desempenho antipandemia no mundo. Prova-se que o projeto autêntico de Bolsonaro é vitorioso. E por isso mesmo deve ser eliminado, para sobrevivência menos indigna do país e mais digna dos brasileiros.

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BOLSONARO E O ESCAFANDRISTA DO LEBON

Do Blog do Noblat, VEJA

Conta a lenda que um escafandrista, nos anos 70, vestido com seu pesado equipamento de mergulho, entrou no Antonio’s, bar mítico do Leblon, na esquina das ruas Bartolomeu Mitre e Ataulfo de Paiva, sentou a uma mesa, tirou o capacete e pediu uma cerveja.

Depois de certo tempo, irritado com a indiferença dos frequentadores do lugar, o jornalista João Saldanha subiu numa cadeira, bateu palmas para chamar atenção e disse em voz alta para ser escutado por todo mundo:

– Pessoal, tem um homem aqui, um escafandrista, com capacete e tudo, tomando cerveja, e isso não é normal, não pode ser normal.

Ninguém deu bola para a fala irritada de Saldanha. Nem mesmo o pacato escafandrista que, depois de tomar três cervejas e servir-se de poucas iguarias, pediu a conta, pagou, repôs o capacete de metal que escondia todo o seu rosto e foi embora se arrastando.

Ah, os cariocas e seu ar blasé! Em janeiro de 1964, o Rio foi sacudido com a notícia de que Brigitte Bardot, uma das atrizes mais famosas do cinema, chegara sem aviso à cidade. Depois do assédio inicial, ela refugiou-se em Búzios com o namorado.

Ficou por lá sem ser incomodada durante quase um ano. Vez por outra surgia o boato: Brigitte voltou ao Rio. Os mais cariocas entre os cariocas já não se abalavam. Alguns se limitavam a comentar com desdém: “Quem, aquela chata? De novo?”

Ninguém parece mais estranhar quando o presidente Jair Bolsonaro diz palavrões em público. Nem mesmo quando os palavrões são usados como ariete para atingir a honra de pessoas ou de um conjunto delas. A ele tudo é permitido.

Os presidentes Lula e Dilma diziam palavrões, mas jamais em público. O país ficou chocado com a quantidade de palavrões que Bolsonaro disparou em abril último durante reunião ministerial que provocou a saída do governo do ex-juiz Sérgio Moro.

Depois disso, não mais. Assim, ele sentiu-se autorizado para na semana passada, em reação ao noticiário sobre gastos do governo com leite condensado, mandar os jornalistas “à puta que os pariu”. Na quarta-feira, numa churrascaria de Brasília, ele esbravejou:

“Vai para puta que o pariu. Imprensa de merda essa daí. É para enfiar no rabo de vocês aí, vocês não, vocês da imprensa essa lata de leite condensado”.

No dia seguinte, em Propriá, cidade na divisa de Sergipe com Alagoas, Bolsonaro voltou ao tema, sendo apenas mais sucinto:

“É para enfiar no rabo de jornalista”.

Por pudor, por estar acostumada a ser agredida ou sabe-se lá por que, de uma maneira geral a imprensa preferiu não dar destaque a mais um despautério do presidente da República. Praticamente ignorou-o. As redes sociais se encarregaram da tarefa.

Nem o ex-presidente Donald Trump, o precursor universal dos ataques desmedidos à imprensa, ousou valer-se de linguagem tão agressiva e desrespeitosa com profissionais que eram obrigados a cobrir suas atividades como chefe de Estado.

Só quem ganha com a normalização do comportamento estúpido de Bolsonaro é ele. A malta que o tem como ídolo, também ganha e faz questão de imitá-lo. Cresce no país o número de casos de jornalistas hostilizados no desempenho de suas funções.

Atenção, Justiça! O que falta para que se dê um basta definitivo a isso? Que um jornalista seja morto?

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O GOVERNO BOLSONARO TERMINOU. SERÁ ?

Elimar Pinheiro do Nascimento, Revista Será ?

Na grande imprensa, nas redes sociais e em alguns meios políticos e intelectuais, reina um clima de que o governo acabou. Sérgio Abranches, analista político da rádio CBN, fala do último suspiro do Bolsonarismo. Marcio Coimbra, conhecido defensor da política externa brasileira, aventa a possibilidade do Bolsonaro não chegar ao segundo turno. O conhecido cientista político Marco Aurélio Nogueira propugna que a Nação necessita de um impeachment, tema que chegou às ruas no dia 23 de janeiro, depois de estar nas redes com o chamado “Fora Bolsonaro”. Chegou de forma fraca e dividida. Meus colegas, analistas políticos, dizem que, com a retirada do benefício emergencial, o apoio do Presidente na opinião pública despencará. Enfim, o fim do governo Bolsonaro estaria apenas começando.

A necessidade moral e cívica de retirar tal figura do poder é inquestionável. E muitos têm se pronunciado a respeito. Contudo, para retirar alguém do poder não basta o sentimento de indignação de alguns, mesmo se eles são muitos. É necessário preencher várias condições políticas. Queria que meus colegas tivessem razão, mas desconfio que não.

Sem dúvida que há indícios de fragilidade do governo. As pesquisas de opinião da Exame/Ideia indicam que seu governo era apoiado, em dezembro, por 35% da população, subiu para 37% em meados de janeiro e agora (20/21 de janeiro) despencou para 26%. As pesquisas do DataFolha vão no mesmo sentido. Em dezembro, 32% achavam seu governo péssimo ou ruim, agora são 40%. Por sua vez, os que achavam que o governo era ótimo ou bom caiu de 37% para 31%.

Como fatores dessa mudança soma-se à retirada dos benefícios, ainda não plenamente sentida, o escândalo de Manaus e a péssima gestão da pandemia. Mesmo o início da vacinação deixou o governo em maus lençóis. Ele foi obrigado a começar com a vacina que o presidente disse que não compraria. Começou depois, e graças ao governador de São Paulo. Na quebra de braço entre João Dória e Bolsonaro aquele venceu por 7 a 1. Mas, essa foi uma batalha, a guerra ainda terá muitas.

Também no âmbito das FFAA seu prestígio parece em declínio, assim como entre os grandes empresários. Finalmente, seu grande apoio internacional, Trump, se foi. Não apenas derrotado, mas repudiado por grande parte da opinião pública americana e internacional, pelo incentivo e financiamento do assalto ao Capitólio.

Todos os indícios supracitados são reais e consistentes. Porém, há indícios contrários. Não há possibilidade de impeachment a um presidente que tenha o apoio de um quinto ou um quarto da população (dificilmente Bolsonaro contará com menos de 20% de apoio na opinião pública). Aliás, um apoio dessa natureza a um governo tão desastroso é um enigma. Por outro lado, 53% da população brasileira, segundo o DataFolha de 23/01, são contra o impeachment do Presidente. Menos da metade é a favor (42%).

Ademais, o Presidente ainda tem alguns recursos importantes. Caso seja vitorioso (quase certo) na Câmara dos Deputados, os pedidos de impeachment, que já somam mais de 60, permanecerão na gaveta do presidente da Câmara. Por enquanto, salvo surpresas – na medida em que a votação é secreta – o seu candidato, deputado Artur Lira, líder do PP, e parlamentar com vários processos nas costas, será eleito. No Senado, sua aliança com o PT e o PSDB, aparentemente, já assegura a vitória ao seu candidato. Assim, ganhará força no Congresso. Pelo menos por enquanto. O que poderá lhe custar caro no futuro.

Congresso, aliás, que contribuiu decisivamente para a melhoria da imagem de Bolsonaro junto à população, mesmo os opositores, na medida em que elevou para 600 reais o valor do benefício emergencial, criado em função da pandemia (1). Ora, o candidato do Presidente no Senado, Rodrigo Pacheco (DEM/MG) defende a permanência desses benefícios, pois a pandemia perdura. Caso esta proposta seja vitoriosa, haverá milhões de beneficiados apoiando o Presidente. Claro que isso irá repercutir negativamente na economia, criando obstáculos à sua recuperação, com possibilidades de aumentar o desprestígio nascente no seio do empresariado e provocar cisões no Ministério da Economia.

Outra arma do presidente será a reforma ministerial, incluindo lideranças do Centrão no governo. Fala-se que serão oferecidos aos velhos políticos seis ministérios. Iniciativa que provavelmente consolidará sua base na Câmara dos Deputados. Com isso, as chances de impeachment chegam perto de zero. Salvo, se sua aprovação cair abaixo de 20%, levando os oportunistas do Centrão a retirarem seu apoio, como comenta Luiz Carlos Azedo, no Correio Braziliense (24/01/2021). Hipótese quase inviável. Alguns comentaristas inclusive perguntam, para que impeachment? Para colocar o general Mourão no poder, com risco, diz Lavareda, de ser reeleito presidente em 2022?

Pode-se argumentar que estas iniciativas quebram as principais promessas de campanha: combater a corrupção e renovar a política. Isso significará que sua base se vá? Não necessariamente. Uma parte de sua base já se foi com a saída de Moro e a péssima gestão da pandemia, além da aproximação com o Centrão. Mas, a parte majoritária permanece fiel, assim como a força nas redes sociais, somadas ao ganho de uma parte da mídia tradicional (Record, SBT).

Portanto, os indícios de que o governo esteja em seus estertores não são nada consistentes. Infelizmente. O bom disso tudo é que parte da sociedade civil organizada ou esclarecida começa a se movimentar. Ora, ocupar as ruas, as redes e os meios de comunicação é fundamental para desgastar o Presidente, e vencê-lo eleitoralmente. Sabendo que, nesse caso, haverá confrontos, inclusive armado. Por isso, desgastá-lo junto às mais diversas instituições, sobretudo junto às FFAA, é essencial.

*Elimar Pinheiro do Nascimento,sociólogo político e socioambiental, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas

(1)O que não significa que se deveria ter recusado o benefício. Este é o dilema: trata-se de uma medida humanitária, indispensável, que beneficia aquele que ameaça a democracia. E no presente caso de prolongamento, destroça a economia nacional por de vez.

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UNIDADE E TRANSIÇÃO

Cristovam Buarque, Blog do Noblat - VEJA

Na véspera de iniciar nosso terceiro centenário, precisamos mais que nunca de um presidente capaz de inspirar coesão no presente e rumo para o futuro. Estamos divididos em grupos que não se reconhecem como partes de um mesmo povo, seja pela desigualdade na renda ou pelo sectarismo nas ideias. Estamos ficando para trás na história, sem sintonia com o mundo, por falta de base científica e tecnológica, de capacidade de produzir e poupar, falta de infraestrutura econômica, de solidariedade social e nacional, sobretudo de educação de qualidade para todos. Mas, apesar destes desafios para o terceiro milênio, nossa tarefa imediata é impedir a continuação do atual quadro de divisão sectária, negação da realidade, incompetência gerencial e falta de visão de futuro.

Em 1985, consciente da responsabilidade de impedir a continuação do regime militar, os democratas se uniram, desde os mais progressistas aos mais conservadores, com exceção do PT, que preferiu não votar em Tancredo Neves. A união permitiu cinco anos de democracia, com sucessivas eleições para escolher rumos conforme a proposta de cada candidato. Por nossos erros, nossas divisões, por prioridades e comportamentos equivocados, deixamos que forças autoritárias e retrógradas voltassem ao poder com o voto dos eleitores. Corremos o risco desta interrupção de nossa marcha ao futuro continuar, reeleita pelo eleitor.

Para eleger um presidente que nos conduza ao futuro é preciso primeiro impedir um presidente que só vê o passado e destrói o presente construído nos últimos 35 anos de democracia. Nossa tarefa imediata é impedir a continuação do retrocesso. Elegermos um presidente que permita retomar o debate democrático com bom senso, respeito à verdade e ao contraditório, e então ganharmos impulso para os anos adiante.

Entre 1985 e 1919 fomos capazes de construir uma democracia sob Constituição duradoura; estamos no mais longo período de estabilidade monetária, com uma única moeda; implantamos programas de solidariedade com transferência de renda para os pobres; colocamos quase todas nossas crianças em escolas; mais que dobramos o número de estudantes universitários; conseguimos presença internacional respeitada; demos substanciais avanços nos direitos humanos; mas estamos ameaçados de perder tudo isto.

Temos a obrigação de voltarmos a nos unir em 2022, para elegermos um presidente comprometido em recuperar as conquistas dos últimos 35 anos. Para enfrentar o presidente atual, precisamos apresentar um candidato único, desde o primeiro turno, com baixa rejeição entre os eleitores. Os atuais candidatos precisam deixar seus projetos, metas e interesses nacionais e pessoais para a eleição seguinte; se unirem agora em torno àquele que assuma o compromisso de manter os acertos da democracia e que tenha as melhores condições para atrair os eleitores, graças à menor rejeição ao seu nome, e assuma o compromisso de apenas um mandato. Os demais candidatos adiam suas disputas para 2026 ou assumem o risco de verem 2022 repetir 2018. Os candidatos naturais em 1985, grandes líderes, entenderam o que a história precisava e adiaram suas candidaturas para 1989, dentro do marco democrático. Fizeram unidade e garantiram transição.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

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PALAVRAS E SILÊNCIOS

Dorrit Harazim, O GLOBO

‘Kintsugi’ (algo como reparação dourada) é a arte japonesa de devolver vida a objetos de cerâmica quebrados, remendando-os com pó de ouro. Essa centenária artesania nasce da ideia de que, ao aceitarmos imperfeições e falhas, ao mantermos visível a cicatriz, podemos criar algo ainda mais forte, ainda mais belo do que o original único agora despedaçado. Nada mais atual, eterno e multiuso do que essa arte, visto que ela pode ser aplicada tanto a um pote quebrado como a pessoas, à democracia estalante de hoje e à própria vida. Quando exigimos a perfeição em tudo e todos, inclusive em nós mesmos, acabamos criando um mundo cruel em que recursos e possibilidades são descartados.

Só que, para recorrer ao restauro, é necessário, antes, reconhecer que algo quebrou. Nos Estados Unidos e no Brasil, passou da hora de reconhecer que as normas democráticas racharam fundo sob Donald Trump e Jair Bolsonaro. Lá, o recém-empossado Joe Biden tenta iniciar o remendo sem estardalhaço, mas com gravidade, pois a hora é mesmo grave. Ao contrário do antecessor, Biden assina sua aguardada cota de decretos executivos como se fosse um burocrata apressado em carimbar formulários inúteis. É o oposto. Alguns desses decretos têm consequências planetárias, visam a corrigir cursos que apontavam para o abismo na questão climática. Outros abrem caminho para reparar desigualdades gritantes no próprio país.

Talvez algum dia venham a ser olhados como obra de kintsugi da democracia trincada, mas por enquanto são apenas decretos, sem a permanência de leis, e nenhuma garantia de que o remendo trabalhado não seja obstruído. Têm muito a conspirar contra. Continua intacta a dependência dos republicanos da máquina eleitoral fiel a Trump. O arrojo do extremismo branco aumentou desde o ataque do dia 6 contra o Legislativo. O Capitólio e seu entorno permanecem enjaulados por precaução. A deputada de primeiro mandato Lauren Boebert, conspiracionista fervorosa, já anunciou que não abre mão de circular pelo Capitólio com sua pistola Glock carregada, e Marjorie Greene, também eleita em 2020 por apoiadores da seita QAnon, já elogiou quem defende “enfiar uma bala na cabeça” da presidente da Casa, a democrata Nancy Pelosi. É da própria Pelosi, a frase da semana que melhor exprime a preocupação com as instituições do país: “O inimigo está dentro da Câmara de Representantes”. Terrível para a nação fundadora do sonho democrático moderno.

O labor pela democracia nunca acaba, ensinou Walt Whitman. O grande poeta da Guerra Civil Americana repetia que a palavra é grandiosa, mas sua história permanece em branco, porque ainda precisa ser encenada. Algo como o tempo passado e o tempo futuro lutando pelo controle do presente, definiu o maravilhoso Lewis H. Lapham, fundador e alma da “Lapham’s Quarterly”.

No Brasil, o pote está tão esmigalhado que é difícil ver algum remendo no horizonte. Faltam vacina e decência, sobram condenados à morte por asfixia. Pela peculiaridade da Covid-19, são perdas silenciadas atrás de portas de hospitais, de casas funerárias, de cemitérios, enterros em covas onde o distanciamento já não cabe mais. Um horror amplificado pelos pequenos horrores do cotidiano nacional, como um hospital federal que sofre queda de energia e compromete 720 doses da vacina da vida.

Por sistêmicas, as indignidades infligidas à vida brasileira já fazem parte do esperado. Só vez por outra o caldo ferve no cidadão obrigado a economizar energia para aguentar o amanhã. Na quarta-feira passada, a mais recente patifaria verbal de Jair Bolsonaro entornou um desses caldos de indignação. Ela merece registro neste espaço por dizer o essencial sobre a excrescência que habita no Palácio da Alvorada. No evento fechado de uma churrascaria de Brasília, o presidente estava de pé, microfone em mãos. Sentados em mesas abarrotadas, a ruidosa confraria de áulicos, que incluía o chanceler Ernesto Araújo. Explodiram de gáudio quando Bolsonaro respondeu assim a críticas recebidas por gastos alimentícios do governo: “E, quando eu vejo a imprensa me atacar dizendo que comprei 2 milhões e meio de latas de leite condensado, vai pra puta que o pariu. Imprensa de merda essa aí. É pra enfiar no rabo de vocês aí…”. O perigo à democracia brasileira já não é mais o Mito. São os adoradores decididos a perpetuar o mito.

Melhor procurar refúgio noutro marco da cultura japonesa: o caractere Ma, que representa a arte do silêncio, o espaço sagrado do silêncio em todas as atividades humanas. No Ocidente, sentimos desconforto quando se estabelece um vazio durante uma conversa a dois ou uma reunião em grupo. Nossa tendência é preencher esse vazio com qualquer abobrinha. Para japoneses, não se trata de um vazio, e sim de uma forma sublime de se conectar através desse espaço silencioso. O que seria da música sem os silêncios que conectam os sons? Não seria música, seriam apenas sons. Bonito, não?

Por aqui, estamos em outro diapasão.

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UM SINAL DE ALERTA

Merval Pereira, O GLOBO

Muito tem se falado ultimamente sobre a possibilidade (necessidade) de impeachment do presidente Bolsonaro, ou, na pior das hipóteses, em sua derrota na disputa pela reeleição no próximo ano. As pesquisas de opinião mostram que sua popularidade é cadente, e as eleitorais indicam que ele, no momento, perderia para vários de seus potenciais adversários: Ciro, Moro, Lula, Mandetta, Haddad. O Atlas Político indica também que ele venceria Marina, Dória, Joaquim Barbosa e Huck.   

Interessante nessa pesquisa recente é que o espectro ideológico não faz diferença, Bolsonaro perde e ganha para nomes, não para partidos. Mesmo o temor, expressado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de que venha a ter vantagem caso o adversário do segundo turno seja um petista numa sensação generalizada, e creio que até mesmo desejada por Bolsonaro, não se reflete na pesquisa.

O receio é de que, se o adversário do segundo turno for um petista, se repetirá a mesma solução que o eleitorado encontrou em 2018. Acho que em boa parte do eleitorado isso pode acontecer, mas creio que muita gente que escolheu Bolsonaro como “o menos ruim” tenha já informações suficientes para rejeitar essa alternativa.

Não é, no entanto, descartável a hipótese de que Bolsonaro venha a se reeleger, pois, apesar de tudo, conta ainda com cerca de 30% do eleitorado, com tendência de queda. O governo detém maioria no Congresso, pelo apetite de seus parlamentares, tem a admiração e identificação das patentes inferiores das Forças Armadas e até polícias militares e bombeiros de todo o país, que podem ser transformados em milícia armada do Estado. Amanhã, a menos que ocorra um fato extraordinário que mude o curso das negociações, deverá eleger os presidente da Câmara e do Senado.

Um amigo, preocupado com esse futuro possível (provável?), reuniu uma relação de acontecimentos políticos tão improváveis quanto a eleição de Bolsonaro para a presidência da República. São fatos conhecidos, mas que, reunidos, nos revelam como distorções políticas podem se impor em momentos em que o caldo de cultura com ingredientes como corrupção sem controle, valores nacionais enfraquecidos, profunda desigualdade social, insegurança, violência, crise econômica, pode criar um ambiente político para a aceitação de anormalidades. O amigo não quis aparecer, pelo cargo que ocupa em Brasília.  

Vamos aos fatos históricos: “Eva Duarte Peron era uma ignorada locutora de radionovela quando conheceu o general Juan Domingo Peron. Em pouco tempo, já era a “mãe dos pobres” e protetora dos desvalidos. O pacto que a cultura argentina tem com as tragédias fez de sua morte uma bandeira mística para o peronismo, de esquerda ou direita, que está no poder há 70 anos. O Papa Doc, no Haiti, também começou como um humilde médico de província, até reinar sobre um estado de terror e horrores. Portugal não deixou por menos, Antônio de Oliveira Salazar fez carreira no fascismo começando como um professor de economia, em um país dominado pela corrupção e ignorância. O exemplo maior é de um cabo (nem capitão chegou a ser ) do exército alemão, que tal qual Bolsonaro o quer, criou uma milícia uniformizada, superior a Wehrmarchat. Hitler é o exemplo perfeito de um déspota venerado, que chegou ao poder pelo voto popular e criou um fascínio na cultura alemã, que a fez cúmplice no holocausto”.

A naturalização dessas aberrações desidratam a democracia. Como aliás já está acontecendo entre nós. Em qualquer país do mundo civilizado, um presidente que fizesse um pronunciamento como aquele de Bolsonaro na churrascaria, seria imediatamente processado. Ao contrário, vemos ministro de Estado, como o antichanceler Ernesto Araújo, gritando “Mito, Mito, Mito”, numa falta de compostura que também mereceria uma punição.

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O ABISMO DAS ESQUINAS - CONEXÕES ENTRE INDIGNAÇÃO E POLÍTICA

Paulo Fábio Dantas Neto, Democracia Política

Na coluna da semana passada procurei economizar em análises para fazer uma exortação a quem ocupa um lugar na sociedade civil e não apenas no eleitorado. Ela foi no sentido de não permitir que a vontade política de se livrar de um presidente extremista e inimigo da república desconecte-se da prudência recomendada pelas urnas de 2020, pelas quais os eleitores indicaram rotas de responsabilidade administrativa e despolarização política.

Hoje retorno a um esforço mais analítico, com argumentos ancorados em dois pontos de observação. O processo sucessório nas duas casas do Congresso Nacional e os movimentos de forças governistas. A intenção é fazer conexões entre eles para avaliar a distância entre o desenrolar de certos fatos e a percepção que motivou a exortação da semana passada.

Sobre as sucessões no Congresso os prognósticos predominantes são de vitória do governo na Câmara e de um acordo interpartidário no Senado, que vai bem além do governismo e inclui não só independentes, como a oposição. Tende a acontecer no Senado uma convergência política maior do que a prometida pela frente partidária que lançou, há pouco mais de um mês, a candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB) na Câmara.

O senador Rodrigo Pacheco (DEM) caminha para a eleição, tendo ao seu lado um arco de forças centrado nos maiores partidos, indicando que sua virtual gestão será marcada por equilíbrio e não, como se propala, por governismo ou submissão institucional. A candidatura oponente, da senadora Simone Tebet (MDB), noves fora seus méritos pessoais, terminou circunscrita a uma minoritária convergência entre antigos “cardeais” do Senado, partidos médios e políticos outsiders. Dentre eles o grupo defensor da CPI da Lava Toga, que faz o discurso da “nova política” emergente das eleições de 2018, relevante na ascensão de Davi Alcolumbre à presidência, há dois anos. Entre os “cardeais” destaca-se Renan Calheiros (MDB), que passou a ver em Tebet e nos órfãos do pragmático Alcolumbre, a chance de dar o troco a esse último e recuperar o Senado para um outro MDB, paralelo ao da Câmara. Essa compreensão do processo diverge da que ganhou a mídia, ou seja, a de que Tebet foi “traída” pelo MDB. Na verdade, ela se tornou pré-candidata por apoios fora do seu partido, por isso quase foi acolhida por ele, mas perdeu a queda de braço. Sua candidatura começou avulsa e terminou avulsa porque o MDB é um partido relevante. Ao apoiar Pacheco, terminou seguindo, apesar do paralelismo de suas bancadas, o rumo seguido na Câmara, aliando-se ao DEM, PSDB e PT.  A política tem uma proficiência que a razão proficiente desconhece. O Senado, que teve dois terços de sua composição alterados no ambiente extremado das eleições de 2018, parece que seguirá, no próximo biênio, script oposto ao daquelas eleições. Enquanto isso, na Câmara, onde prosperou, desde 2019, sob a liderança de Rodrigo Maia, uma estratégia prudencial de política positiva que obteve claro aval nas urnas de 2020, no momento da sucessão de Maia, em que essa política poderia se consolidar, cedeu espaço à lógica polarizadora de 2018, tendo como pano de fundo dessa guinada, o mantra do impeachment.

A princípio, a de Baleia Rossi era candidatura em defesa do Legislativo, voltada a mobilizar a maioria dos deputados para isolar a tentativa de sua instrumentalização pelo Executivo, sinalizada pela candidatura de Artur Lira. Formou-se ampla frente partidária para preservar a independência da casa, que se mostrara essencial no enfrentamento – objetivo e não apenas retórico – da pandemia e das ameaças à democracia. Tudo a ver com o script vitorioso nas urnas de 2020. Mas a campanha seguiu a rota da polarização e, em vez de isolamento do governismo, provocado por energias agregadoras, assistiu-se à ampliação de sua margem de manobra, graças a lógicas centrífugas que marcaram a conduta de vários setores da frente. Paulatinamente forjou-se uma imagem de Baleia como candidato de oposição. A guinada significou o abandono de uma estratégia promissora.

É compreensível a dificuldade de políticos se conservarem “maricas” num contexto em que a indignação comanda. De fato, com os desmandos políticos e administrativos cometidos pelo governo no contexto da pandemia, dramatizados pela falta de vacinas e pela crise de Manaus, o medo geral e a indignação começaram a comandar os sentimentos públicos na sociedade civil, cutucando a vontade política da oposição e criando uma sinergia contestatória que se apresentou como capaz de comover também o eleitorado e criar condições para um impeachment.  Pode ser que mais adiante se chegue a isso, mas essa perspectiva não se concretizaria a tempo de interferir na solução da sucessão na Câmara em favor da alternativa independente. Essa é tributária da persistência da estratégia maricas, que os sentimentos públicos difusos na sociedade civil demonizaram como de conivência com o crime. Nada tinha disso, mas e daí? Cada vez mais vozes somaram-se contra ela entre os apoiadores de Baleia e aos poucos o próprio Rodrigo Maia inclinou-se mais a ouvi-las. Parecendo cansado do modo Tancredo de ser, ele entrou no modo Ulisses de 1973, quando o futuro Senhor Diretas foi anticandidato contra o Gal. Geisel, no Colégio Eleitoral.  Fazer campanha nesse tom, quando os eleitores reais são um corpo político em que a oposição é minoria, explica boa parte das dificuldades eleitorais da candidatura.

A farra de emendas e cargos que o governo promove na Câmara responde, é verdade, pela outra parte da explicação.  Mas o que há mesmo de inédito nisso?  Temer não agiu assim para conseguir se blindar no Congresso? Dilma, que não conseguiu, acaso fez diferente? A pergunta não é por que o governo usa essas armas pois a resposta é óbvia. A pergunta é por que, ao que parece, está tendo sucesso? A resposta, aparentemente óbvia também, de que tem sucesso porque a maioria da Câmara apoia os crimes de Bolsonaro é escapatória ideológica tosca. O bom senso manda buscar e contar outra. Arrisco-me a dizer que o virtual êxito de Lira decorre de que quem opera em seu favor, dentro do governo, já não opera como agente de Bolsonaro. E desse modo chego ao segundo ponto de observação que anunciei na abertura deste texto: os movimentos das forças governistas, a saber, o Presidente e a militância-milicia que o sustenta nas redes, os militares que o cercam no palácio, os políticos e os empresários que apoiam um governo que é cada vez menos seu.

Minha atenção está cada vez mais concentrada no general Hamilton Mourão. Insinua-se, em torno dele, a tortuosa e duvidosa construção de uma saída conservantista para a crise. Se essa percepção for verossímil, Artur Lira, se realmente vencer a disputa pela Presidência da Câmara, trabalhará por essa saída. Em vez de biombo de Bolsonaro seria ele o encarregado da missão de colocar, sobre o pescoço do presidente, uma espada ou uma guilhotina que podem fazer dele um Dâmocles ou um Robespierre.  Faltaria a um herdeiro da política positiva de Rodrigo Maia poder de persuasão para que o capitão se retirasse com medo da sua espada civil e maioria qualificada para mandá-lo à guilhotina do Senado.  Artur Lira, como bom político do chamado centrão, não tem nem uma arma nem outra, assim como é desprovido de linha política. Mas terá, nas retaguardas do presidente, quem lhe empreste uma espada para dissuadir suas resistências. E não lhe faltarão na Câmara os votos para fazê-lo sair por mal. Afinal, se o start vier do próprio centrão, – diria Silvio Lamenha – ser contra quem há de?

A suposta saída conservantista passaria pela derrota de Baleia Rossi, pela implosão da frente que Maia articulou – e não se sabe se ainda lidera -, pelo derramamento espetacular de Leite Moça em telas de variados tamanhos, pela persistência do impasse econômico, pelo agravamento da crise sanitária, e, por fim, pelo impeachment. Muita coisa para uma estratégia só, daí ser ela tortuosa, duvidosa e obrigada a contar, inclusive, com reações anticapitolianas da turma do capitão. Mas, ao mesmo tempo, torna-se crível pela cada vez mais nítida percepção de que Bolsonaro é muito forte para um primeiro turno em 2022, mas um azarão para o segundo turno. Considero improvável que quem divide com ele o palácio resigne-se a cair com ele, nas urnas, a via que existe hoje para oposições o derrotarem. A do impeachment depende de adesão de parte relevante do governismo.  Essa última é o atalho que poderia nos livrar mais cedo da serpente e ao mesmo tempo, a brecha pela qual poderemos herdar os ovos em nosso ninho, por tempo indeterminado.

Se a lógica permite, sigamos na especulação de cenários, já que nos falta a faculdade da adivinhação.  Uma “fase 2” começaria pelo clássico “voto de confiança”, que se deveria ao tampão para tirar o país do caos. Prosseguiria em acomodações regionais de apetites políticos, criando a base nacional para a conversão do tampão em candidato à reeleição. O processo poderia ser coroado e abençoado nas eleições de 2022 se o primeiro turno fosse, mais uma vez, um cemitério de alternativas fragmentadas, restando dentre elas a de uma esquerda afirmativa, adversário ideal no segundo turno. Eis o preço político possível do “alívio geral” resultante do cartão vermelho a Bolsonaro. Depois que tirarem o bode da sala, a formação de uma frente conservantista, em torno de Mourão. O centro se dispersaria de novo e quem ficará contra isso? A esquerda. Estará refeita a polarização e com ela, a reeleição de um governo. É pra esse leito que iremos se a sinergia entre oposição política e sociedade civil montar no cavalo da indignação e não no da pacificação.

Claro, isso que acabo de alinhavar não é o futuro. Mas é o tipo de projeto de futuro cujo quartel general só pode ser o palácio. Além desse projeto, só prospera, no momento, como alternativa ao capitão, o “Fora Bolsonaro” que ecoa na sociedade civil. Mas esse caminho, na falta de resposta mínima a uma pergunta (“para que?”) feita pelo jornalista Élio Gáspari, termina sendo, apesar da sua aparência contestadora, um apêndice do pré-projeto que parece se desenhar no palácio.

Uma de várias objeções que podem ser legitimamente levantadas contra essa especulação é a de que seria necessário combinar com o soberano, sem cujo voto, em 2022, a estratégia seria engenhosa, mas inócua. É possível que muitas pessoas imaginem que, nem se todas as vacas tossirem durante os próximos dois anos, o general Mourão se tornará popular a ponto de se eleger. Em tese, há também muitos outros óbices.  A começar pela farda mal lavada dos crimes do passado que já se vê implicada, nos de agora. Segue pelas desconfianças da banca quanto à firmeza liberal desse militarismo planaltino sempre afeito a “projetos estratégicos” e ávido por dirigismo estatal e prebendas do erário. Vai mais longe com a urticária que políticos civis e oficiais militares provocam uns nos outros. Com a imprensa, que deve saber de onde podem partir tentativas de cerceá-la. Por fim, com a pecha de traidor e golpista que lhe seria imputada em todos os espaços que o bolsonarismo pudesse alcançar, com o agravante de que o grito não seria só militante, como foi o do PT, mas teria capacidade de inquietar quarteis pela subversão da disciplina.  

Longe de mim enfrentar essa pauta ainda neste texto. Por ora, vou apenas anunciar que procurarei, na próxima coluna, por em questão a premissa de que o atual vice não poderá se tornar um candidato competitivo. Farei isso partindo da imagem que hoje ele tem, segundo uma pesquisa do Atlas Político, recentemente divulgada. Pelo que até aqui pude analisar dessa pesquisa, ele e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta são as personalidades políticas cujas imagens públicas mais facilitam que se tornem candidatos competitivos numa eleição em dois turnos.

Por hoje, fico no seguinte: Mandetta e Mourão são nomes emblemáticos da esquina política em que o país se encontra. Se pensados como candidatos presidenciais, e não apenas como personalidades políticas, o primeiro é compatível com a estratégia independente, ou oposicionista moderada, que manda levar o barco devagar até 2022. O segundo é a encarnação do impeachment.  Quem força a barra para essa via deve contar com a hipótese de que Mourão não será apenas um tampão. Na dobrada imprudente da esquina, um tiro ao alvo aleatório entre interesses arrivistas e vontades indômitas fará da Constituição de 88 uma candidata a ser a próxima vítima.  

*Cientista político e professor da UFBa.

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