Vamos a uma comparação em semelhante padrão de desvio de finalidade adotado pelo presidente Bolsonaro para beneficiar seu dileto amigo, Daniel Silveira, e afrontar, como outra face da moeda, o STF: imagine por um momento a ex-presidente Dilma Rousseff recorrendo ao mesmo instrumento da “Graça”, concedendo esse tipo de indulto individual a Lula, José Dirceu, Eduardo Cunha & Cia. Eles seriam automaticamente poupados de cumprir anos de cadeia, como tiveram de enfrentar. Beneficiados pelo mandatário de ocasião, ganhariam uma espécie de licença para delinquir. Ficando claro, nos termos da Lei: é faculdade constitucional do presidente da República dar indultos ou graça.
O primeiro ocorre sempre para um grupo, obedecendo a determinados critérios – como exemplo, “a todos os presos a partir de 80 anos”, etc –, e a ferramenta da graça (que é individual) também necessita seguir a característica da impessoalidade, rotineiramente atendendo a fundamentos específicos. O principal deles: processo de cada indultado deve estar totalmente concluído, com a condenação em curso. Não ocorreu na situação do camarada presidencial, Daniel Silveira. Não há como outorgar perdão a um sujeito que não se encontra com o julgamento encerrado, passado por todas as apelações, recursos e embargos de direito. Sem, por assim dizer na linguagem jurídica, com a sentença “transitada em julgado”. Mas o soberano Bolsonaro achou por bem, de qualquer forma, à revelia da Lei, tomar a dianteira, atropelar trâmites, critérios e princípios, numa deliberação recorde – dia seguinte ao veredicto da Corte – para mostrar quem manda.
Lançou um decreto temporal que precisa ser simplesmente anulado, muito embora ele tenha imposto, em tom de ameaça, que a decisão será cumprida a ferro e fogo, sem discussão. Faltou apenas a coroa para mostrar como ele imagina controlar o Brasil. A verborragia insolente e irresponsável do capitão não elimina o arcabouço legal em vigor. Não é por vontade pessoal de um mandatário que as coisas acontecem. Ao menos não em um Estado de Direito, no qual a Constituição vigora soberana. Bem verdade que Messias Bolsonaro parece estar pouco se lixando para “questiúnculas” como a do regimento de decretos e artigos da Carta Magna. Ele trabalha, minuciosamente, em todos os sentidos, dia após dia, na montagem de um golpe inconstitucional que venha a lhe conceder os poderes absolutistas que tanto sonha. Um objetivo acalentado de longa data.
É um déspota em gestação e ninguém pode ter a mais pálida sombra de dúvidas sobre isso. A busca da ruptura democrática vem no escopo de suas metas desde que tomou posse. Demonstrações nesse sentido não faltam. São claras e constantes, em um sobranceiro atrevimento fora de época, para a perplexidade geral do País e fanatismo em delírio dos seguidores. Como aceitar que um sujeito com índole tão perversa e desestabilizadora continue a comandar os destinos nacionais? Bolsonaro quer a algazarra, criar uma lambança com seguidas confusões e provocações aos tribunais, envolvendo os militares num assunto que é estritamente político, de regramento da democracia, constrangendo as Forças Armadas a lhe dar respaldo em uma aventura fraudulenta. A coação e o envolvimento de uma instituição – que nunca foi poder moderador – para se intrometer em assuntos dessa natureza, são possíveis somente na cabeça doentia de caudilhos.
Bolsonaro não vai parar. Sua claque já torce por anistias, no mesmo modelo equivocado, a Roberto Jefferson, Zé Trovão e Allan dos Santos. Na prática, parece aberta a temporada para a camarilha dos amigos serem libertados de seus crimes, acusações e quetais. A que servirá a Justiça nesse contexto? Restará como um bedel do circo armado para consagrar a impunidade. Depois do enterro da Lava Jato, a nova toada de artifícios para livrar da cadeia contumazes infratores vai tomando corpo. Em outras palavras: não interessam quais desvios ou delitos tipificados cometeram. Caso sejam próximos do soberano da vez podem contar com a benevolência da graça imperial. Serão perdoados. Azar daqueles que não possuem essa influência.
Meros desesperados que subtraem comida nos supermercados para saciar a fome de filhos estão aos montes mofando atrás das grades por décadas, sem ninguém ligar para eles ou um mandatário qualquer se mostrar tão rapidamente prestativo no intento de absolvê-los. O “mito” certamente não vê vantagem alguma em olhar para esse tipo de condenado. Os apaniguados, sim, merecem carinho e proteção. Bolsonaro arquitetou com o seu corpo jurídico uma manobra que tem todos os traços de uma esperteza ilegal com o objetivo de peitar e emparedar a Suprema Corte, no limite do desmonte institucional. Colocou, de novo, o País numa crise insana que destrói a esperada harmonia de poderes para o bom funcionamento da República. Ministros do STF apontam que o presidente vem, com isso, sinalizando a indisfarçável vontade de conturbar o processo eleitoral e a eventual sucessão em caso de derrota. Ele joga pesado para erodir a democracia. A sanha golpista precisa urgentemente ser controlada com respostas firmes. Do contrário, restará a anarquia.
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