Bolsonaro aproveitou o último feriado prolongado para avançar em sua investida contra a ordem constitucional e melar as eleições de outubro. Orquestrou com sucesso duas ações para encurralar o Judiciário. A primeira movimentação visou liberar suas milícias digitais. Elas atuam desde o início da gestão, quando o gabinete do ódio montado pelo Executivo passou a atacar sistematicamente os outros Poderes. Foram turbinadas pelo próprio mandatário, que organizou atos, incluindo motociatas, para ameaçar a Constituição (segui-la “embrulha o estômago”, afirmou) e atacar decisões judiciais. Numa iniciativa corajosa e efetiva, o STF não se deixou intimidar e abriu investigações que expuseram os atores dessa escalada autoritária. Esses processos conseguiram na prática frear as investidas e levaram à condenação no dia 20 de abril do deputado Daniel Silveira a 8 anos e 9 meses de prisão, além da perda de mandato e de seus direitos políticos.
Um dia depois, ao invés de acatar a decisão judicial, como manda a Constituição, o presidente encontrou uma maneira para subvertê-la. Ele usou sua prerrogativa de conceder indulto em casos excepcionais (que deveriam ser coletivos e apenas após sentenças transitadas em julgado) para anistiar o aliado. Não se tratou de utilizar o instituto da graça, que é constitucional. Foi uma brecha encontrada para tornar letra morta a decisão da maior Corte do País, abrindo uma avenida para que todo o grupo investigado e punido por tentar acabar com a democracia se beneficie no futuro – a fila é grande. Para aumentar o deboche, Silveira, um ex-policial que já foi processado, preso e enfrentou 60 sanções disciplinares na PM fluminense, revelou que já tinha descartado a tornozeleira eletrônica no dia 17 (medida cautelar que cumpria). Na última quarta-feira, 27, ainda foi brindado com a vice-presidência da Comissão de Segurança Pública e passou a ser titular de mais quatro comissões da Câmara, inclusive a mais importante, a de Constituição e Justiça. Para completar o escárnio, no mesmo dia Bolsonaro patrocinou no Palácio do Planalto um ato para festejar o privilégio concedido ao parlamentar-bufão.
Além de dar essa rasteira no STF, Bolsonaro agiu três dias depois para acuar a Corte também em relação às próximas eleições. Aproveitando uma fala do ministro Luís Roberto Barroso a estudantes de uma universidade alemã, um evento limitado e sem relevância, pinçou uma frase do magistrado e escalou seu ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, para atacá-lo. Barroso havia alertado sobre o perigo de politização do Exército e mencionou que as Forças Armadas “teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia”. Em uma reação desproporcional, o ministro da Defesa divulgou que se tratava de uma afirmação “irresponsável” e “ofensa grave”. Em seguida, os generais palacianos Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos emitiram comunicados também para acuar Barroso.
Foi uma armadilha preparada pelo próprio presidente. Ele conseguiu inflamar e enredar o Exército no embate político-partidário, exatamente aquilo que Barroso criticava. Sem citar o chefe do Executivo, o magistrado apenas verbalizou aquilo que o País acompanha desde o início da gestão: a tentativa do presidente de capturar os militares para seu projeto de poder. Os exemplos são inúmeros. Para lembrar apenas alguns: em um comício na frente do QG do Exército em Brasília, Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso e do STF. No último 7 de Setembro, disse que não obedeceria mais o STF. Seu ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, infringiu o regimento militar ao participar de um comício político e não foi punido pela corporação.
É bom lembrar que o próprio presidente demitiu a cúpula das Forças Armadas em março do ano passado para exigir alinhamento a ele, na maior crise militar desde 1977. Na ocasião, o general Braga Netto foi alçado ao Ministério da Defesa. Poucos meses depois, o militar, provável vice de Bolsonaro na chapa reeleitoral, condicionou a realização de eleições à aprovação do voto impresso. Para intimidar o Congresso por essa mudança, o mandatário organizou um desfile de blindados na Praça dos Três Poderes. Depois, organizou uma live bombástica para desacreditar as urnas eletrônicas, anunciando denúncias de fraude que se mostraram apenas embustes. Nesse evento, afirmou que o Exército identificou “dezenas de vulnerabilidades” nas urnas. Na comemoração do Dia do Exército, dia 19, voltou a colocar em dúvida a lisura do sistema eleitoral, sem apresentar evidências. Portanto, há excesso de provas sobre a interferência para cooptar os militares e questionar o processo eleitoral. Como disse Barroso aos estudantes, existe uma tentativa de levar as Forças Armadas ao “varejo da política”. É exatamente isso o que Bolsonaro faz. A bufonaria é uma prática antiga e calculada dele.
Nunca houve fraudes com as urnas eletrônicas, como Barroso lembrou mais uma vez. A ironia é que o magistrado elogiou os militares em sua fala e disse que eles têm sabido se preservar. Mas essa ação institucional e quase evangelizadora dos valores democráticos do ministro virou, ao contrário, uma oportunidade para atacar o Judiciário. Isso mostra o dilema sobre as ações da Corte. Visando a garantir a lisura das eleições, o magistrado e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) têm sido impelidos a uma verdadeira campanha contra a desinformação. Com o objetivo de assegurar a transparência e evitar questionamentos sobre o voto eletrônico, o TSE criou um comitê que ouviu 44 sugestões para seu aperfeiçoamento de universidades, organizações públicas e da OAB. As Forças Armadas foram convidadas e contribuíram com seis sugestões, sendo uma delas acolhida. A própria iniciativa de chamar os militares a participar do debate, com o objetivo de garantir o seu apoio ao processo, virou uma armadilha. Quando eles aceitaram, passaram a ser atores das decisões referentes às eleições, como deseja Bolsonaro.
“Preocupa vermos as Forças Armadas participando ativamente do processo político e eleitoral, num claro e perigoso desvio de finalidade”, alertou Roberto Freire, presidente do Cidadania. Parece óbvio, mas é preciso reafirmar que não cabe a Exército, Marinha e Aeronáutica fiscalizar, muito menos vigiar, o processo eleitoral. Para comprovar essa arapuca, o próprio presidente disse em seu evento-provocação contra o STF: “Eles convidaram as Forças Armadas a participar do processo eleitoral. Será que esqueceram que o chefe supremo das Forças Armadas se chama Bolsonaro?” Ele aproveitou a ocasião para lançar novas suspeitas sobre as urnas e dizer que as próprias eleições podem ser suspensas “se tiver algo anormal”. Defendeu ainda que o Exército faça uma apuração paralela dos votos. É preciso desenhar as intenções do presidente para o pleito de outubro?
O general Santos Cruz minimiza o risco constitucional. “As Forças Armadas não podem ser utilizadas como instrumento de pressão política. É claro que existe por parte de alguns um comportamento que procura confundir as Forças Armadas com o governo, mas eu confio plenamente na postura institucional dos militares.” Para Eloísa Machado, professora de direito constitucional da FGV Direito-SP, a anistia concedida pelo presidente a Daniel Silveira é inconstitucional. Ela diz que o presidente tem prerrogativa para conceder a graça, mas não com o intuito de se favorecer, beneficiar aliados ou desgastar o tribunal. “Isso representa abuso de poder e violação da impessoalidade que deve reger todos os atos do presidente. Impessoalidade significa não instrumentalizar a administração pública a partir de interesses pessoais. Não bastasse, a graça foi concedida a uma pessoa que ainda não foi condenada juridicamente. Um erro crasso.”
Essas prerrogativas presidenciais já foram usadas abusivamente antes. O ex-presidente Lula, por exemplo, negou em 2010 a extradição de Cesare Battisti, que pertenceu a um grupo terrorista de esquerda e vivia um doce exílio no Brasil. Atacava a Justiça italiana por tê-lo condenado por assassinatos cometidos nos anos 70. Quando finalmente foi extraditado, após ser capturado fora do Brasil, reconheceu que havia cometido os crimes, mostrando que os petistas haviam sido ingênuos – ou enganados. Em 2018, Fernando Haddad declarou que pretendia anistiar Lula das penas na Lava Jato se fosse eleito, o que seria igualmente uma afronta ao STF.
Enquanto a Justiça dialoga com a sociedade, Bolsonaro insiste em disseminar desinformação e dúvidas, pois teme perder as eleições em outubro. Bolsonaristas viram no episódio Silveira uma reafirmação do poder do presidente, capaz de se sobrepor às decisões do Judiciário. A deputada bolsonarista Carla Zambelli logo apresentou um projeto de lei para ampliar a anistia a todos que tiverem praticado desde janeiro de 2019 “atos que sejam investigados ou processados sob a forma de crimes de natureza política”. Esse salvo-conduto para crimes contra a ordem democrática não deve prosperar no Congresso, mas também aí o presidente conseguiu avançar em sua estratégia.
Ao proteger um deputado, Bolsonaro contou com o corporativismo no Legislativo. O presidente da Câmara, Arthur Lira, tenta evitar a cassação automática de Silveira, garantindo essa prerrogativa para o Legislativo (a questão deverá ser dirimida pelo próprio STF). Apesar de reprovado pela maioria dos colegas, o ex-PM pode ser beneficiado no Plenário pelo espírito de corpo dos colegas. Mesmo assim, deputados já ensaiavam nos bastidores um recuo, dizendo que Silveira poderia ser retirado da Comissão de Constituição e Justiça da Casa. Na mesma direção, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tentou guardar distância de Bolsonaro. Disse que as crises frequentes entre os Poderes são como “cortina de fumaça para os verdadeiros problemas do Brasil”. Aí está um dos cernes para as motivações do presidente. Ao fabricar instabilidades em série, ele desvia o olhar para o caos da sua administração, inclusive afastando investidores e provocando novas disparadas do dólar. A população sente na pele os efeitos da crise econômica, com uma inflação que já superou os 12%. A moeda americana voltou a superar a barreira dos R$ 5. O preço do gás de cozinha é o maior do século, comprometendo quase 10% do salário mínimo.
E esse esgarçamento institucional só vai crescer à medida que as eleições se aproximam. O presidente voltou a ameaçar descumprir decisão do STF sobre a demarcação de terras indígenas. A consequência dessa barafunda jurisdicional são instituições debilitadas e mais polarização, exatamente o que Bolsonaro deseja. Esses últimos acontecimentos são ilustrativos da sua estratégia para tensionar a relação com os Poderes, um jogo de morde-e-assopra para avançar cada vez mais em suas pretensões autoritárias.
Bolsonaro segue o manual dos autocratas, usando as próprias instituições para esmagar o sistema de freios e contrapesos democráticos, como ensinaram Hugo Chávez (Venezuela), Viktor Orbán (Hungria) e Donald Trump. Faz parte desse guia o “jogo duro constitucional” (“Constitutional Hardball”), estratégia cada vez mais frequente descrita pelo jurista Mark Tushnet em 2004, quando políticos forçam a mudança dos entendimentos constitucionais por meio de confrontos no Executivo e do Legislativo. Ao aceitar o jogo duro para evitar uma ruptura, as instituições acabam naturalizando as investidas antidemocráticas. Foi o que ocorreu neste cerco ao STF.
É assim que as democracias morrem. É esse o alerta que Barroso fazia a estudantes num ambiente acadêmico. Usando sua própria expressão, é preciso evitar a todo custo o “retrocesso cucaracha”. “Se um presidente abusa de seus poderes e comete reiterados crimes de responsabilidade sem ser contido pelo Congresso, afirmando que não cumprirá decisões judiciais do STF, se as Forças Armadas participam ativamente do governo e se colocam no papel de fiadoras do processo eleitoral em que esse mesmo mandatário pretende a reeleição, me parece que a ruptura constitucional e institucional já aconteceu”, resume Eloísa Machado, da FGV. O golpe já está normalizado.
Em busca da graça
Políticos que desafiaram o STF sonham em se beneficiar do mesmo indulto recebido por Daniel Silveira
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