sábado, 30 de abril de 2022

SÉRIO MESMO, ELON ?

Antonio Prata, Folha de S.Paulo

Elon Musk comprou o Twitter, diz ele, por temer o cerceamento à liberdade de expressão. O Twitter, meus amigos? Aquela rinha da trollagem em que vale dedo no olho, chute no saco e dentada na orelha? A ferramenta através da qual a família Bolsonaro corrói diariamente a democracia, ri da tortura, propaga mentiras sobre a pandemia, ameaça jornalistas, ativistas, cientistas, artistas e minorias em geral? Quem sabe o próximo passo do bilionário sul-africano seja comprar o Saara para proteger a areia?

Poucas discussões estão mais mal colocadas, hoje, do que esta sobre a liberdade de expressão. Quando temos bilhões de dólares e a ciência mais avançada (da matemática à psicologia) criando algoritmos que privilegiam, incentivam e propagam em escala global as opiniões mais extravagantes, chocantes e violentas; quando o resultado deste comércio desregulado de ideias é o esgarçamento do tecido social, o afunilamento do espaço público, a polarização política, as guerras culturais, o crescimento vertiginoso da depressão, ansiedade e suicídio entre jovens; quando esse sambalelê civilizacional põe a democracia em risco e se fala em Guerra Civil, nos EUA, e golpe militar, no Brasil, simplesmente defender a liberdade de expressão como um princípio absoluto e pronto, acabou-se, é meter a cabeça num buraco para não ver o que se passa.

É preciso que os autoproclamados liberais mundo afora olhem pela janela (ou mesmo pro celular) e constatem que levantar a bandeira da Primeira Emenda à Constituição Americana, dos enciclopedistas, dos contratualistas, de Bentham, Stuart Mill e outros que pensaram sobre uma arena pública radicalmente diferente da nossa não dá conta do que está acontecendo. É como tentar tirar um parafuso Philips com uma faca de cozinha: você espana o parafuso (confunde os contornos da questão), não o remove (o problema segue inabalado) e ainda destrói a faca (corrompe os autores).

Qual a solução? Mudar os algoritmos? As plataformas melhorarem seus filtros e regras de conduta? Criar-se uma espécie de constituição global para as redes sociais? Não tenho ideia, mas talvez o primeiro passo seja tirar os antolhos da "liberdade de expressão über alles!" e encarar o problema. O mundo está doente. Uma das causas da doença é a transformação da opinião em commodity e a aplicação da lei da oferta e da procura ao campo das ideias, o que faz com que quebrar a placa com o nome da vereadora assassinada eleja um deputado, mas propostas sólidas sobre educação e saúde pública, não.

A distopia das redes sociais nos trouxe para um "freak-show" do século 19, um circo de horrores. Estamos promovendo à fama e levando ao poder a Mulher Barbada, o Homem Elefante, a cabra de duas cabeças, a multidão goza vendo urso "dançar" sobre uma chapa incandescente. O que há de mais próximo deste antigoverno que brotou das redes e joga para elas não é o liberalismo, o conservadorismo nem sequer o fascismo, é a Farra do Boi.

Não é a liberdade de expressão, hoje, quem está correndo o maior risco, como acreditam Elon Musk e tantos outros, mas a democracia, o estado de direito, a declaração universal dos direitos humanos —conceitos que, convenhamos, jamais estiveram, nem de longe, assegurados a todos.

Daniel Silveira, livre pelo indulto presidencial para incitar a multidão contra um ministro do STF e tombar, mais um pouquinho, as nossas cambaleantes instituições, ri da nossa cara posando para uma foto com a placa quebrada da Marielle, emoldurada pelo cúmplice Rodrigo Amorim —um souvenir macabro do lamaçal de onde surgiram.

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário