Antigamente, o sonho de um filho era se emancipar da figura
paterna. Não falo de Freud e dos desejos de “matar” o pai. Falo de algo mais
simples como sair de casa, construir uma vida pelas próprias mãos, sair da
sombra do progenitor.
Isso não significa “matá-lo”. Pelo contrário —só
por meio dessa emancipação é possível amá-lo realmente, nas suas forças e
fraquezas.
Eu tentei. Acho que consegui. Meu pai era advogado. No
início, cursei direito, por breves meses. Imagino que, para o meu pai, ter um
filho a quem pudesse legar o escritório era uma perspectiva agradável.
Não era para mim. Detestei o curso. Mas detestava ainda mais
o futuro previsível, em vários sentidos da palavra “previsível”.
Desisti de direito, mudei de curso, mudei de vida. E até de
cidade. O amor pelo meu pai, que aliás me apoiou nessa mudança, aumentou à
medida que me tornei adulto. Longe dele e sem precisar de seu nome.
Hoje, a geração “snowflake” (floco de neve) parece
deficitária nesse quesito. Sim, todos conhecemos os estudantes que, em contexto
universitário ou até laboral, procuram recriar o ambiente seguro da casa
paterna.
Mas há várias formas de ser “snowflake”. Um exemplo: que
dizer dos filhos
do presidente Trump,
que parecem incapazes de ter vida própria longe do pai? E que dizer, já agora,
dos filhos
do presidente Jair Bolsonaro,
que padecem da mesma moléstia?
Pensei nisso quando lia, divertido, o tuíte analfabeto
de Carlos Bolsonaro.
O Brasil só terá mudanças rápidas por vias não democráticas?
Ah, pobrezinho. Se ele soubesse alguma coisa de alguma
coisa, saberia que foi em democracia que os países ocidentais tiveram os
progressos mais notáveis de suas histórias. Os regimes autoritários, com poucas
exceções, levaram os respectivos países para o buraco.
Mas divago. Porque o ponto é outro —à primeira vista, nada
mais longe de um “snowflake” do que o clã Bolsonaro. Eles usam pistola e falam
grosso!
E, no entanto, há a mesma incapacidade de serem adultos por
seus próprios meios, sem usarem e abusarem do oxigênio do pai.
Mas existem outras semelhanças entre a nova direita e os
“snowflakes” que ela tanto critica. Em matéria de liberdade de expressão, por
exemplo.
Sim, também todos conhecemos o desejo histérico dos
“snowflakes” de esquerda de censurar as vozes conservadoras incômodas. Mas
será que a nova direita é assim tão diferente com as vozes progressistas
incômodas?
O Brasil é novamente um caso de estudo com a tentativa do
prefeito do Rio em banir uma HQ com um beijo gay. O problema do gesto não está
apenas na incompreensão básica de uma sociedade livre e pluralista. Isso é
óbvio.
Menos óbvio é que, do ponto de vista estratégico, as
tentativas de censura normalmente rebentam na cara de quem as comete. Posso
contar uma história a respeito?
Em 1992, em Portugal, um membro do governo de direita vetou
o romance “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José
Saramago, para o Prêmio Literário Europeu. Nas palavras do iluminado
governante, o livro de Saramago atacava o patrimônio religioso dos portugueses
e não podia ser representante da literatura lusa. Sabe o que aconteceu a
seguir?
O caso foi noticiado nos jornais. Espalhou-se pelo mundo
inteiro. O romance virou best-seller nacional e internacional. E Saramago
emergiu como um escritor “perseguido” na sua própria terra.
Por coincidência ou não, decidiu deixar Portugal e viver na
ilha espanhola de Lanzarote. Exato, como um “exilado”. Seis anos depois, o
prêmio Nobel de Literatura chegava.
Simplifico? Claro que simplifico: a censura a Saramago não
retira o mérito literário da obra, sobretudo
em grandes romances como “Memorial do Convento” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (o meu preferido).
em grandes romances como “Memorial do Convento” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (o meu preferido).
Mas não é absurdo conjecturar que a censura oficial deu uma
preciosa ajuda na consagração de Saramago.
Se a nova direita brasileira persistir na censura e na
sabotagem de autores de esquerda, isso pode ser uma derrota para a liberdade de
expressão.
Mas, quem sabe, talvez assim o Brasil tenha finalmente o
prêmio Nobel com que sonha há vários anos.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade
Católica Portuguesa.
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