“Instituir uma renda mínima para todas as famílias
brasileiras.” O leitor pode se surpreender, mas uma renda universal era uma das
propostas do plano de governo oficial do candidato Jair Bolsonaro. Com adeptos
em diversas ideologias, o debate sobre renda universal ganhou força nos últimos
dias, na esteira da aprovação do auxílio emergencial de R$ 600 pelo Congresso –
destinado a trabalhadores informais prejudicados pela crise.
Ela é conhecida à direita pela proposta de “imposto de renda
negativo” do ícone liberal Milton Friedman, que advogava que famílias abaixo de
um nível de renda não deveriam pagar imposto, mas receber transferências até
alcançar o nível determinado. E é conhecida da esquerda pela Renda Básica de
Cidadania, proposta histórica de Eduardo Suplicy aprovada no Congresso em 2004
– o “direito de todos os brasileiros receberem anualmente um benefício
monetário”. Jamais foi implementada.
Nos Estados Unidos, chamou a atenção quando Hillary Clinton,
fazendo a autópsia da sua candidatura presidencial, alegou que quase anunciou a
renda universal como sua plataforma eleitoral contra Trump. Teria desistido por
não conseguir desenhar a implementação. Nas primárias democratas deste ano, o
tema não animou os candidatos mais progressistas, mais focados em políticas de
mercado de trabalho.
A renda universal ainda não foi adotada em país algum, pelo
seu custo proibitivo. Como alternativa, muitos prescrevem algo mais viável e
focalizado: a renda garantida. Trata-se de um benefício só para quem vive
abaixo de um limite de renda, em valor suficiente para que esse mesmo limite
seja superado.”
Esse é o caso do auxílio emergencial aprovado pelo
Congresso: R$ 600 para quem vive com menos de meio salário mínimo.
Rigorosamente, ele não seria então uma “renda universal” ou uma “renda básica”,
porque não é destinado a todos. É mais próximo do imposto negativo do que do
benefício de Suplicy. É como um Super Bolsa Família, embora a nova roupagem
ajude a superar o estigma que essa transferência de renda aos muito pobres têm.
Propostas de fato universais foram discutidas pelo Congresso
recentemente, para grupos específicos da população: o benefício universal
infantil, aprovado pelo Senado, é voltado às crianças. Já na Câmara, o deputado
Pedro Paulo, no âmbito da reforma da Previdência, apresentou proposta da “renda
básica universal” para o idoso e pessoas com deficiência.
O debate expõe uma fragilidade da Constituição de 1988. Se
ela conseguiu ampliar a proteção à saúde, que deixou de ser direito somente dos
trabalhadores com emprego formal e carteira assinada, não fez o mesmo com a
proteção à renda. Os benefícios aos formais custam na ordem de R$ 800 bilhões
por ano, e a crise da covid-19 evidencia como larga parcela da população vive
vulnerável e sem contar com esses recursos.
O modelo constitucional deixa tanta gente às margens que se
estima que mais da metade da população brasileira pode ser beneficiada direta
ou indiretamente pelo auxílio emergencial aprovado ontem – voltado a informais
e desempregados sem seguro-desemprego.
Mesmo no melhor momento do mercado de trabalho no fim de
2014, o emprego formal era escasso para jovens, nordestinos, mulheres, negros e
brasileiros com ensino médio incompleto. Mesmo então, esses grupos ficavam às
margens da proteção da Carta Cidadã e da festejada legislação trabalhista. A
carteira de trabalho é um homem branco paulista.
Para além da realidade desnudada pela pandemia, esse
arcabouço também é desafiado pela tendência estrutural trazida pela
transformação tecnológica. A CLT e a proteção trabalhista e previdenciária são
baseadas ainda em um modelo industrial, de vínculos estáveis e homogêneos, com
jornadas fixas e voltado para um único provedor no domicílio – o homem pai de
família. O novo modelo, mais heterogêneo, exigiria um arcabouço mais amigável à
formalização e proteção dos grupos mais vulneráveis: talvez com uma reforma do
instituto do microempreendedor individual (MEI).
O MEI foi criado no governo Lula e expandido no governo
Dilma e pode acabar fazendo mais pela inclusão no mercado de trabalho e
proteção à renda do que a própria reforma trabalhista. Afinal, a erradicação da
pobreza e da marginalização é talvez o principal fim da Constituição de 88. O
auxílio emergencial da pandemia durará três meses: ao seu término, a sociedade
ainda terá um encontro marcado com essa questão.
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