sábado, 25 de fevereiro de 2023

O CARNAVAL DERROTA O PRECONCEITO

Elba Kriss, Thales De Menezes, ISTOÉ

Vitória da Imperatriz Leopoldinense faz do Carnaval uma resposta à xenofobia incentivada por Bolsonaro

A vitória da Imperatriz Leopoldinense no desfile do Rio, levando à avenida Lampião e a cultura nordestina, é resposta às humilhações xenofóbicas de Bolsonaro contra o povo da região, que ajudou a eleger Lula

“O aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarda.” Esse título longo e muito peculiar dá nome ao samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, campeã do Carnaval 2023 no Rio de Janeiro. Por trás dele, duas histórias de redenção: da escola de samba, agremiação muito forte que não vencia um desfile há 22 anos, e do povo nordestino, que viu sua cultura e sua tradição levadas ao mundo inteiro numa exibição primorosa na Sapucaí. Uma vitória do Nordeste, que foi vilipendiado sucessivamente por Jair Bolsonaro durante os quatro anos de seu governo. O autor de seguidos deboches humilhantes a essa região do País agora vive entrincheirado nos Estados Unidos, querendo escapar da prisão. E os nordestinos, que colaboraram em peso para a eleição de Lula, cantam e comemoram.

A proposta da escola foi contar a história do pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, inspirada na vasta literatura de cordel sobre o bandido muito violento que ganhou aura de herói. Os moradores das cidades por quais ele passava com seu bando fortemente armado temiam por suas vidas, mas uma parte da população enaltecia seu nome pela postura de bravura e de honra. O enredo brinca ao dizer que, depois de morto, nem o Céu nem o Inferno queriam recebê-lo.

A rejeição a Bolsonaro cresceu diante das constantes humilhações proferidas pelo ex-presidente, algumas até anteriores à eleição vencida em 2018. Ainda deputado federal, ele declarou: “O voto do idiota é comprado com Bolsa Família. Se você for no Nordeste, você não consegue uma pessoa para trabalhar na tua casa. Você vê meninas no Nordeste que batem a mão na barriga, grávidas, e falam o seguinte: esse aqui vai ser uma geladeira, esse aqui vai ser uma máquina de lavar, e não querem trabalhar. Aqui, ó!”.

No primeiro ano de mandato, em julho de 2019, sentado à mesa com jornalistas para um almoço, Jair Bolsonaro se referiu ao Nordeste como “terra de paraíba”, termo usado neste caso em tom jocoso, para depreciar os nordestinos. Na ocasião, ele aliou o preconceito a um ataque direto ao então governador maranhense, Flávio Dino, hoje ministro da Justiça do governo Lula. “Desses governadores de estados de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão”, afirmou Bolsonaro.

Em uma live promovida pelo então presidente, neste mesmo ano, foi ofensivo a seu convidado, que se transformaria em um de seus mais ferrenhos apoiadores. “Você tem algum parente pau-de-arara?”, perguntou a Tarcísio de Freitas, então ministro da Infraestrutura e hoje governador de São Paulo, que respondeu ter familiares no Piauí e no Rio Grande do Norte. Então Bolsonaro emendou: “Com esta cabeça aí, tu não nega, não”.

Durante visitas ao Nordeste na campanha para reeleição, ele voltou a usar expressões como “cabeça-chata”, “pau-de-arara” e “paraíba” sem constrangimento. A xenofobia de internautas dos estados do Sul e Sudeste, que já era acolhida no mundo digital pela falta de regulamentação nas redes, recebeu esse “incentivo oficial” para ganhar espaço.

“O Nordeste merece toda a nossa gratidão porque, se não fosse ele, talvez a gente estivesse amargando mais um tempo de neofascismo miliciano evangelizador.”

Matheus Nachtergaele, que foi Lampião no desfile da Imperatriz Leopoldinense

O ator Matheus Nachtergaele, que foi o Lampião na Sapucaí, ao lado de Regina Casé como Maria Bonita, falou a ISTOÉ sobre a valorização do Nordeste e a grande maioria de votos alcançados por Lula na região. “O Nordeste merece toda a nossa gratidão porque, se não fosse ele, talvez a gente estivesse amargando mais um tempo de neofascismo miliciano evangelizador. Sai de lá curado pela beleza do espetáculo e do Carnaval da Imperatriz, e pela emoção de estar de novo em grupo nesse que é o maior espetáculo a céu aberto do mundo. Estou bem feliz.”

A representatividade de Lampião como ícone popular é incontestável. Além do desfile campeão no Rio, o “Rei do Cangaço” foi tema no Sambódromo paulistano. A Mancha Verde conquistou o vice-campeonato também com o cangaceiro como tema. No principal carro alegórico da Imperatriz, que trouxe um rosto gigante do homenageado, apareceu à frente com destaque Expedita Ferreira, de 90 anos, a única filha de Lampião e Maria Bonita. Ela também figurou no desfile da Mancha Verde.

A proposta de falar de Lampião abriu espaço para a representação de outros ícones da cultura nordestina. A Imperatriz trouxe à avenida passistas com roupas e maquiagem que remetiam às cerâmicas de Mestre Vitalino, criador de pequenas peças de barro com figuras inspiradas nos personagens do sertão nordestino, como cangaceiros, beatos, retirantes e seus burricos. Morto em 1963, o artesão atravessou as fronteiras de sua terra, Pernambuco, e se tornou uma grande referência mundial na arte em barro, imitado por milhares de artistas. Na Mancha Verde, outros notáveis tiveram suas figuras celebradas em carros alegóricos, como o sanfoneiro Luiz Gonzaga, também pernambucano, e o Padre Cícero, cearense.

Para Rodrigo Rainha, professor de História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, essa revitalização da cultura nordestina tem mensagem clara. “É olhar para as três últimas eleições nacionais e perceber esse posicionamento político e entender: não é um acidente. É um elemento de posição histórica do que representa o peso do Nordeste na cultura brasileira.”

O fato de a Imperatriz ter baseado seu enredo em literatura de cordel é destacado pela socióloga Leandra Brito de Jesus, da Fundação Santo André. “O cordel precisa ser tratado como literatura, não pode mais ser qualificado como algo exótico. Desenvolver um tema com Lampião, Céu e Inferno foi arriscado, se pensarmos que no Rio de Janeiro o conservadorismo evangélico predomina nas periferias.” Para a socióloga, “o Nordeste não é só praia para turista. Essa vitória me parece também um recado, o mesmo que tivemos no primeiro turno da eleição passada, quando foram ridicularizados ou ofendidos por uma parcela conservadora da sociedade: nós temos cultura, não aceitamos imposições. Vocês vão ter que nos escutar.”

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