Outro dia, uma simpática leitora me escreveu, dizendo que eu
estava em cima do muro. Não é exatamente isso o que acontece. Estou na mesma
posição que estarei depois das eleições: independência crítica.
Não gosto de muros, tanto que, quando caiu o de Berlim,
mudei-me para lá com a família, para acompanhar as consequências. Nem todo muro
dá para aceitar. Nas eleições municipais do Rio, recusei a alternativa que a
maioria dos eleitores me apresentou.
Recusá-la agora não significa desrespeito às grandes
multidões que escolhem Lula ou Bolsonaro. Pelo contrário, uma oposição
consciente pode ser uma forma de valorizar essa escolha.
A amiga pede que eu rejeite apenas Bolsonaro. É ameaçador
para a democracia. Ela leu nos jornais que o PT, ao contrario, tem um forte
compromisso com a democracia.
Respeito sua posição e a dos jornalistas. No entanto, era
deputado federal no período do mensalão. Discutir com fantoches comprados pelo
governo era para mim um arremedo de democracia.
Creio que passa por aí nossa divergência. No meu entender, a
ameaça à democracia não se resume hoje ao clássico golpe militar, com tanques
na rua. Ela pode ser subvertida por dentro, envenenada aos poucos.
Talvez a amiga precise de um pouco de paciência não só
comigo, que não aceito esse muro, como também com as pessoas que realmente
estão ainda em cima dele, por indecisão. Se ajudar, recomendo o livro de John
Gray — “A alma da marionete, um breve ensaio sobre a liberdade humana” — que
acaba de ser lançado aqui. Entre outras coisas, ele diz: “não é a
autoconsciência, mas a divisão de si mesmo que nos torna humanos.”
Isso não quer dizer que não fazemos escolhas. Caso
contrário, não estaríamos onde estamos hoje. Lembro que há pouco mais de 20
anos brincava sobre o tema, com Luís Eduardo Magalhães. Ele, presidente da
Câmara; eu, o único deputado do PV. Ele dizia, para me ironizar: como vota sua
bancada? Eu dizia: a bancada tem apenas uma pessoa, por sinal bastante
dividida.
Compreendo que a pressão é natural. Muitos artistas já estão
mergulhados no dilema de declarar voto.
Infelizmente, não sou artista, mas apenas alguém com uma
experiência política de pouco mais de meio século. Minha análise me conduz à
oposição, não importa o que sair desse duelo entre Lula e Bolsonaro.
Só que, nas circunstâncias nacionais, terá de ser uma
oposição construtiva e cuidadosa, exatamente porque me preocupo com a
democracia.
Há algum tempo que procuro conhecer os programas de governo
do PT e de Bolsonaro. São vagos o bastante para não rejeitá-los em bloco, mas
contêm várias armadilhas.
Na verdade, não há ainda programa real de governo. Há
intenções, acenos contraditórios. A necessidade de seduzir o centro ainda pode
trazer novidades.
O choque de personalidades ofuscou o confronto entre
programas. Não só os que estão no muro como os que recusam o dilema eleitoral
representam um estímulo para que os candidatos sejam mais explícitos em suas
propostas, moderados em sua retórica.
Mesmo com um conhecimento precário dos verdadeiros
programas, esquerda e direita terão muitas dificuldades para implementá-los.
Como impor uma agenda liberal a um país dividido, como impor uma agenda como a
dos anos petistas?
Não, se conseguirmos deter a intolerância entre os
contrários. Mas outra busca é possível: deter a intolerância contra quem
simplesmente não toma o partido de um dos lados.
Ao invés, é essencial evitar a potencial tragédia no choque
entre eles.
O período que vem por aí é muito difícil, desses em que você
não inveja os vencedores. A economia patina, o Congresso não se renova, e as
eleições sempre trazem grandes expectativas.
Não esperava encarar isso nos primeiros anos de
democratização. Mas é preciso olhar de frente. Para mim, o Galeão não é saída
porque leio o outro nome dele, Antonio Carlos Jobim, e me lembro da beleza e do
talento que o país abriga.
Será apenas uma longa fase de sufoco.
Artigo publicado no O Globo em 01/10/2018
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