Governos arbitrários e regimes autoritários fazem
mirabolantes movimentos para esconder as atrocidades e desumanidades que
cometem. Varrem a própria sujeira para debaixo do tapete da história na tonta
ilusão de que nunca chegará alguém para arrumar a sala. Um belo dia, o destino
recompõe a verdade, como acaba de acontecer com a revelação de trezentas e
trinta e uma cartas enviadas por Olga Benário a seu marido, o líder comunista
Luiz Carlos Prestes, quando ambos estiveram presos, vítimas do nazismo na
Alemanha e da ditadura do Estado Novo implantada no Brasil por Getúlio Vargas.
O destino em questão é um pobre e humilde carroceiro, sem eira nem beira, que
encontrou o pacote com todas essas cartas numa lixeira de Copacabana, no Rio de
Janeiro.
Desconhecendo totalmente do que se tratava, ele, o destino a
puxar carroça, vendeu tal pacote na feira de camelôs e ambulantes da Praça
Quinze. O comprador interessou-se pelos selos e envelopes carimbados com a
expressão “censura” pelos governos do México, Brasil, França e Alemanha, mas
também não atinou com o valor histórico daquilo que possuía em mãos.
Finalmente, o barraqueiro Carlos Otávio Gouvêa Faria percebeu que todo aquele
amontado de papeis era a correspondência de Olga e Prestes — e, imediatamente,
adquiriu todo o material (não revela o quanto pagou). Tudo isso se desenrolou
ao logo de cinco anos, até que a história vem agora a público pelo excelente
trabalho dos jornalistas José Casado e Ascânio Seleme.
Façamos um rápido corte na história das cartas para
situarmos, também rapidamente, os personagens históricos Luiz Carlos Prestes e
Olga Benário. Eles se conheceram na extinta União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, em dezembro de 1934. Por que estavam em Moscou? Prestes era o líder
máximo do Partido Comunista do Brasil, stalinista e membro de destaque do Comintern
(a Terceira Internacional instaurada, nos anos 1920, pelo leninismo). Olga
Benário, de origem judaico-alemã, era uma das mais destacadas agentes
soviéticas. Apaixonaram-se. Casaram-se. Lua de mel? Vieram ao Brasil para
deflagar o levante comunista de 1935 (Rio Grande do Norte, Pernambuco e Rio de
Janeiro) contra o governo de Getúlio Vargas. A derrota se deu de forma
fragorosa. Em 1936 ambos foram presos no Rio de Janeiro, e aí começam as cartas
(voltemos a elas) que, tantas décadas depois, seriam negociadas na Praça Quinze
– e que por pouco não acabaram trituradas em algum caminhão de limpeza urbana.
Elas tornam pública toda a tortura física e mental que Prestes e Olga sofreram,
torturas promovidas e ocultadas pelo nazismo e por Vargas. Agora o tapete da
sala do arbítrio foi levantado.
Em uma das primeiras cartas, jamais recebida por Prestes
porque a ditadura de Getúlio Vargas a bloqueou, Olga informava sobre a sua
gravidez. Mesmo grávida, no entanto, foi deportada por Vargas para a Alemanha
de Adolf Hitler, e lá nasceu em novembro de 1936, em um campo de extermínio, a
filha Anita Leocádia. Olga foi executada em 1942 em Ravensbrück. Prestes
permaneceu preso no Rio de Janeiro por nove anos (sete deles numa solitária),
ganhou anistia em 1945, elegeu-se senador e encontrou Anita, pela primeira vez,
quando a garota já estava com quase dez anos de idade.
Há na história do Brasil muitos outros tapetes que
esconderam sujeiras de regimes de exceção, mas que acabaram erguidos quando se
abriram portas e janelas para o sol da democracia entrar nos aposentos — “o
sol, o melhor detergente”, como o definiu o ex-juiz da Suprema Corte dos EUA
Louis Brandeis. O tapete do golpe militar de 1964 serve de exemplo. No auge da
repressão contra os que se opunham à ditadura, diversos guerrilheiros,
assassinados sob tortura, tiveram os seus corpos enterrados clandestinamente no
cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus. Os coveiros da ditadura
enterraram-nos em valas comuns, junto aos muros, e com os codinomes pelos quais
tais militantes eram conhecidos em suas organizações de guerrilha. Quis o
destino (sempre ele!) que ISTOÉ obtivesse listas com os nomes verdadeiros e
também com os codinomes dessas pessoas. ISTOÉ foi então ao Instituto Médico
Legal. Diante da apresentação dos nomes verídicos, nenhum registro surgiu de
empoierados e cavernosos arquivos. Quando esses arquivos foram consultados
pelos nomes falsos, a verdade berrou: todos os cadáveres enterrados, no
silêncio das madrugadas, no cemitério de Perus.
Igual sujeira, varrida e escondida nessa época, foi a morte
selvagem imposta ao guerrilheiro Stuart Edgar Angel, filho da estilista Zuzu
Angel — ele morreu com a boca acoplada a um escapamento de jipe, do qual saía
gás quando os tortutadores aceleravam o veículo. Zuzu, que chegou a costurar
para a esposa do ditador Arthur da Costa e Silva (o carrasco do AI-5), procurou
saber a verdade sobre a morte de Stuart junto aos próprios militares. Nada
conseguiu. Fez campanha no Brasil, e nada. Fez campanha no exterior, e nada. A
perceber que agentes da repressão começavam a segui-la, e temendo que
provocassem a sua morte em um acidente de carro, distribuiu cartas a amigos,
entre eles o cantor e compositor Chico Buarque, avisando que, se “algo” lhe
acontecesse, os responsáveis seriam “os mesmos que mataram o meu filho”. O
acidente ocorreu em 1976. Duas décadas depois, o próprio governo brasileiro
(gestão FHC) levantou o tapete e admitiu: Zuzu fora assassinada. Para ela,
Chico compos “Angélica”: “(…) quem é essa mulher/ que canta sempre esse
estribilho/só queria embalar meu filho/que mora na escuridão do mar (…)”. Na
quarta-feira 21, a Justiça do Rio de Janeiro suspendeu o leilão das cartas que
estava programado.
E quer saber como essa raridade histórica foi perdida a
ponto de ser encontrada numa lixeira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário