Diante da violência generalizada por bandidos armados, os
eleitores foram às urnas para eleger um candidato que defendia autorização para
facilitar a posse de armas. Com a ilusão de que arma guardada em casa impede
bandido, o eleitor teve razão no seu voto, e o presidente eleito, comprometido
com sua promessa, tem razão em cumprir seu compromisso. As urnas pediram armas.
Os eleitores sempre têm razão, mas nem sempre estão certos.
A razão vem do clima de desconfiança e do desespero, mas estar certo depende
dos resultados que serão obtidos: nada indica que o armamentismo vai reduzir a
violência no presente, e tudo indica que vai trazer consequências negativas no
futuro.
Precisamos de polícia armada para nos defender, não de nos
armarmos para reagir a ruídos na porta, desentendimento no trânsito, rejeição
de atendimento a um familiar doente nas portas de hospitais. Em outubro, armas
e urnas casaram, mas não darão bons frutos.
Um mínimo de lucidez sem demagogia permite imaginar os
negativos resultados do armamentismo individual: aumento no desprezo e na falta
de respeito aos policiais e soldados; mais armas nas mãos de bandidos que se
dedicarão a roubar pessoas de que eles desconfiem ter armas; pessoas decentes
que em momento de raiva se transformarão em assassinos; risco de nas mãos de
crianças de famílias descuidadas provocarem tragédias definitivas. Autorizar
posse de arma não combate a violência, expande-a, leva-a para dentro de casa,
nas mãos de menores curiosos, de maridos violentos, de vizinhos nervosos.
Num tempo em que não se confia na polícia e nos policiais,
nem em outras forças armadas e profissionais da segurança, o eleitor votou no
que lhe parecia ser o melhor caminho para se defender. Sobretudo quando os
próprios governantes recomendam não confiar na polícia nem nos policiais e
autorizam cada um a comprar sua arma.
O eleitor iludido tem razão, mas comete um equívoco; o
governante ilude e compromete a segurança, no lugar de enfrentá-la. A solução
correta seria recuperar a confiança do eleitor na polícia e nas forças armadas,
mas preferiu-se a solução simplista e demagógica de concordar com o cidadão
para manter o desprezo à polícia e assumir o papel de defender pessoalmente a
si e sua família.
O voto foi democrático, o presidente cumpre sua promessa de
campanha, mas eleitores e ele estão errados, porque em política nem sempre ter
razão é estar certo. Ter razão vem dos argumentos que ouvimos e nos convencem,
estar certo decorre dos resultados positivos que ocorrerão em função da decisão
tomada.
Pior é que esse armamentismo dificilmente será revertido.
Uma vez armados, brasileiros nunca mais serão desarmados. Os que têm dinheiro
para comprar armas e balas vão adquirir o direito e, no Brasil, direito
adquirido fica pétreo para os ricos. Não faltarão políticos demagogos e
populistas para serem aplaudidos ao proporem juros baixos para os pobres
comprarem armas e “bolsas-bala” para municiá-las.
Além disso, medidas simplistas como essa tendem a impedir
debates sérios. Iludem, ofuscam e fogem de perguntar por que o país que antes
instigava pela tolerância agora intriga por substituir o diálogo pela
intolerância; que aceitava e até se divertia com suas divergências, agora
transforma as divergências em disputa, brigas, guerras.
O país que instigava pela tolerância é o campeão mundial de
mortes violentas com mais de 60 mil assassinatos por ano, é campeão de
concentração de renda e de desprezo aos professores; último colocado na
qualidade de suas escolas e pior na desigualdade como suas crianças são
educadas.
Não se debate como foi possível manter a persistência da
pobreza ao longo de décadas, sem renda suficiente, água, esgoto, cultura; como
deixamos nossas cidades se transformarem em “monstrópoles”, no lugar de
metrópoles; como perdemos o controle e deixamos continuar o desmatamento da
Amazônia, a contaminação dos rios, a sujeira nas ruas; sobretudo não nos
perguntamos por que ficamos violentos, achando que o problema decorre da falta
de armas nas mãos dos cidadãos e não do excesso delas na sociedade desigual,
descontente, desconfiada.
No lugar de buscarmos soluções definitivas, o armamentismo
aparece como opção simplista que não resolve e muito possivelmente agravará o
problema. No lugar de entendermos o porquê da violência e como construir
harmonia, estamos preferindo iludir o eleitor com a demagógica e grosseira
falta de lucidez de que mais armas constrói paz e reduz mortes. (Correio
Braziliense – 15/01/2019)
Cristovam Buarque, senador pelo PPS-DF e professor emérito
da UnB (Universidade de Brasília)
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