Muito me espantou o artigo (“Déjà-vu”) publicado
nesta Folha, do professor Sandro de Souza, mencionando uma suposta
defesa minha do criacionismo em substituição à teoria da evolução, repetindo
uma inverdade que ele mesmo plantou em outro artigo há
mais de uma década (fake news não são um fenômeno tão recente).
Em tempos em que o culto ao obscurantismo ascende ao poder,
torna-se imperativo um debate sem rotulações e ancorado em investigações
isentas, ou seja, um debate verdadeiramente científico. Rotulações caluniosas
são a base da indústria da intolerância, que hoje polui o ambiente da
democracia e só serve àqueles que buscam “construir por oposição” —no dizer
popular, só se levantam derrubando o outro.
Atualmente, em todo o mundo, mais de 3 bilhões de pessoas
têm a fé e a crença na transcendência como um componente essencial de suas
vidas. São expressões diversas das formas de ser e estar no mundo que têm
atravessado a história da espécie humana e que, certamente, merecem
respeito.
A fé, a arte e a filosofia antecipam ideias que a ciência
explora com seu rigor metodológico e, ainda que sejam de natureza completamente
distintas, como disse Jean Ansaldi (2003), “podem se estimular mutuamente, se
interpelar, se convidar a ir mais adiante e mais fundo nas suas respectivas
direções”.
A fé não se submete à ciência, nem esta àquela. Há uma
colaboração entre as diferentes áreas do pensamento humano na construção dos
saberes. A história mostra como esses processos criativos e sinérgicos resultam
em maior riqueza da atividade intelectual. Não vejo isso apenas nos livros, mas
na minha vida: sou uma pessoa de fé e de ciência.
Sempre pautei minha atuação pública, como parlamentar,
ministra ou ativista, valorizando o saber científico e em permanente contato
com as instituições acadêmicas e a comunidade científica, sem deixar de
valorizar o diálogo respeitoso entre os saberes. Não há em minha trajetória
qualquer marca de instrumentalização das atribuições públicas para fins
religiosos. Infelizmente, não é a primeira vez que alguém tece inverdades sobre
minhas falas públicas —quando deveria ser fiel ao fato, como a ciência
ensina.
Mais uma vez, vou repetir: o que defendi, de verdade, foi
que nas escolas declaradamente confessionais, que transmitem os conteúdos do
criacionismo, se ensinasse também o evolucionismo. Essa é a minha visão: a
educação, em escola laica ou religiosa, deve se dar em ambiente de liberdade,
promovendo o desenvolvimento de todos os potenciais da inteligência de um ser
humano e respeitando suas características pessoais, sociais e culturais.
Não por acaso, foi o apóstolo Paulo, profundo estudioso das
diferentes formas de conhecimentos disponíveis em seu tempo, que nos estimulou
a “olhar de tudo e reter o bem”. E o bem, tanto na ciência como na fé, é a
verdade não apenas como resultado mas como meio de busca e procura. Quem quiser
discordar do que eu digo tem o meu total respeito, mas, por favor, faça-o sem
distorcer a realidade.
Marina Silva
Ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008, gestão Lula),
ex-senadora (1995-2011) e candidata à Presidência da República pela Rede em
2018, pelo PSB em 2014 e pelo PV em 2010
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