quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

CRISE EM BRASÍLIA JÁ CONSOME CAPITAL POLÍTICO

Cristiano Romero, Valor Econômico

Não se tenha dúvida: o escândalo que provocou a queda de um ministro lotado no centro do poder, em menos de dois meses de mandato, já consumiu um pedaço do capital político do presidente Jair Bolsonaro. Todo o alarido em torno do caso mostra que o governo começou a envelhecer cedo, e o alvoroço não foi o primeiro da nova administração.

Houve antes o caso da investigação de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), senador e filho mais velho do presidente, por movimentação financeira suspeita. Queiroz é próximo dos Bolsonsaros há décadas, uma espécie de faz-tudo da família, e no episódio em questão fez depósito na conta da primeira-dama Michelle. Revelou-se, também, a história da mulher que trabalhou no gabinete de Flávio – quando este era deputado estadual – e cujo filho tornou-se foragido das autoridades por suspeita de envolvimento com milícias no Rio. O “House of Cards” da nova era, pelo jeito, promete.

Bolsonaro elegeu-se presidente da República com 57,7 milhões de votos, desbancando as duas forças políticas que governaram o Brasil por quase 22 anos: o PSDB e o PT. Sua surpreendente e meteórica ascensão, cuja explicação ainda não foi totalmente entendida, atropelou a social-democracia brasileira, cujos fundamentos foram forjados na resistência democrática à ditadura militar e na Constituição “cidadã”, promulgada em 1988.

O mandatário quebrou uma tradição nacional – a não eleição de candidatos com discurso extremista à direita ou à esquerda – e rompeu o “pacto” que consagrou os pilares da estabilidade política e econômica que o Brasil alcançou, a duras penas, em 33 anos de redemocratização. Aquele pacto só rendeu frutos porque, ao jeitinho brasileiro, não rompeu com as estruturas do patrimonialismo reinante no país desde a descoberta da Ilha de Vera Cruz. Seus dois principais expoentes – Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – foram reformistas, jamais revolucionários.

O atual presidente, que tem perfil completamente distinto ao de FHC e Lula, apresentou-se bem cedo – em 2015, quando o governo Dilma Rousseff, no início de seu segundo mandato, naufragava sem chances de salvação – como o político contrário a “tudo o que está aí”. Não se sabe se foi de caso pensado, mas a estratégia teve nuance inteligente do ponto de vista eleitoral: em vez de se mostrar como o antiLula, Bolsonaro vestiu a fantasia do antipetista.

O lulismo é mais forte que o petismo. Lula, mesmo preso em Curitiba, teve 40% da preferência nas pesquisas. O governo ruinoso de Dilma Rousseff, que jogou a economia na mais longa recessão de sua história, com perda de quase 8% do PIB, desemprego recorde e calamidade nas finanças públicas, criou o principal sentimento das eleições de 2018 – o antipetismo. Melhor, então, ser antipetista que antiLula.

Bolsonaro jogou o PT e o PSDB na mesma vala justamente por perceber que os dois tinham características indissociáveis. Em discursos e entrevistas, ministros do novo governo, inclusive Paulo Guedes, liberal da Escola de Chicago que comanda a pasta da Economia, professam fé não apenas contra o PT, a esquerda, o comunismo e o socialismo, mas também em oposição à social-democracia, o que soa ousado nesta Terra de Santa Cruz.

Como costuma dizer o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, no Brasil não há direita nem esquerda. Estamos equidistantes e costumamos ver os extremos com picardia. Isso talvez explique o fato de a maioria não ter compreendido o fenômeno Bolsonaro. A previsão, inclusive do titular desta coluna, era que o então deputado federal, que ninguém levou a sério em 28 anos de Brasília, “derreteria” durante a campanha de 2018.

Bem, se Bolsonaro derrotou a social-democracia, as esquerdas, o centro, enfim, a todos, o que ele quer fazer do Brasil? No discurso, uma pátria liberal, o que implica concluir a “revolução burguesa” tardia, reduzir drasticamente o tamanho do Estado, acabar com os subsídios, privatizar a maioria das companhias estatais e instituir nos trópicos uma economia pró-mercado que nunca tivemos. Tudo isso em meio à debacle do politicamente correto, ao alinhamento automático aos Estados Unidos e à guinada ao conservadorismo no que diz respeito aos costumes.

Um parêntesis: esta é a grande contradição do discurso bolsonarista, afinal, não existe separação entre liberalismo na economia e nos costumes, assim como é inexistente o divórcio entre democracia e liberdade de expressão. Tentativas de se governar a bordo de interesses fortemente dissonantes resultam em fracassos que, na sequência, ameaçam a democracia – Jânio Quadros caiu nessa armadilha.

Bolsonaro nunca foi liberal. Jamais esteve num cargo executivo, o que dificulta a análise. Capitão da reserva, já defendeu o bolivarianismo de Hugo Chávez e entrou na política para defender os soldos e vantagens da carreira militar, sinais da confusão que imperou em sua trajetória política.

Para aprovar a agenda que sua equipe econômica defende, a começar pela reforma da Previdência, o presidente precisará de um estoque de capital político que nenhum presidente brasileiro teve. A agenda econômica é meritória, mas justamente por essa razão esbarra nos interesses arraigados e anacrônicos dos grupos específicos mais poderosos do país, como o funcionalismo público, as grandes empresas privadas, as multinacionais da indústria automobilística, as oligarquias políticas, os bancos e companhias estatais, os sindicatos patronais, os cartéis, os sindicatos patronais e de trabalhadores etc.

O risco de um político popular que perde capital político rapidamente é tornar-se populista. Dilma Rousseff foi um exemplo trágico.
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