O capitalismo de compadrio do Brasil não se livrou do
mandonismo escravocrata. A propalada “tradição pacífica” dos brasileiros é um
mito, discurso enganoso em uma das sociedades mais desiguais do planeta. Nosso
processo social é conflituoso, com relações violentas entre as classes, ao
longo da história.
Em pleno século XX, a permanência de traços da dominação
sangrenta e despótica é uma negação da República. As milícias, particularmente
fortes no Rio de Janeiro, são expressão dessa barbárie: reproduzem controle e
exploração manu militare. São a contrafação do tráfico armado de drogas,
igualmente autoritário e cruel. Ambos com o êmulo do lucro, do deus Dinheiro.
Todas essas formas de imposição têm por base o controle
territorial a poder de fogo. O Brasil colônia era uma unidade política apenas
nominal: a força local (e “legal”!) era hegemônica e aterrorizante, a cargo dos
capitães-do-mato, capatazes dos “donos de gado e gente”. Os seus chefes, depois
coronéis da República Velha, eram valorizados na ordem vigente: “o ser senhor
de engenho traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado por muitos”,
relatou Antonil, em seu livro sobre as riquezas do Brasil, publicado em 1711.
As milícias diferem dos bandos de traficantes por seus elos
com o poder institucional – e isso lhes dá muito mais poder. O crime do varejo
de drogas ilícitas é desorganizado. O das milícias, não. Daí sua maior
capacidade corrosiva.
O atual presidente Jair Bolsonaro defendeu esses grupos
mafiosos: “em região onde tem milícia paga, não tem violência”, avalizou, ano
passado, louvando os grupos paramilitares. Em dezembro de 2008, quando
destaquei, na Câmara, o relatório final da CPI das Milícias (que Flávio Bolsonaro
nunca apoiou), levado pelo deputado estadual Marcelo Freixo, seu grande
artífice, Jair reagiu: “não é assim, elencar todos os milicianos como bandidos!
(…) Como o PM ou o bombeiro ganha R$ 850 por mês, e tem a sua própria arma, ele
organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com exploração de ‘gatonet’,
venda de gás ou transporte alternativo. Esse relatório está cheio de policiais
e bombeiros que não têm nada a ver. É um relatório covarde, feito em cima do
disque-denúncia”.
É notória a admiração que o clã Bolsonaro tem por aquilo que
já foi chamado de “polícia mineira”, e vários classificam como “autodefesa
comunitária”. São os saudosistas do Brasil oligárquico, do poder coronelista e
dos capangas que protegem suas atividades econômicas.
Essas relações perigosas bordejam a conivência ou
cumplicidade com ações criminosas. Há vínculos suspeitos de Flávio Bolsonaro
com as milícias, prestando homenagens oficiais na Alerj a figuras hoje presas
ou foragidas e empregando mãe e mulher do “patrãozão”, ex-capitão do Bope. A
promotora Simone Sibilio caracteriza Adriano Nóbrega (cuja “dedicação,
brilhantismo e galhardia” o Bolsonaro 01 destacou) como “muito violento e
temido até pelos seus comparsas, que exerce seu poder impondo o terror, e que
precisa ser retirado rapidamente de circulação”. Jair o defendeu, quando
acusado de homicídio, na tribuna da Câmara, além de comparecer ao seu
julgamento.
Está sendo investigada também a ligação dos milicianos
presos na recente operação conjunta do MP e da Polícia Civil com o chamado
“Escritório do Crime”, quadrilha de assassinos suspeita da bárbara execução de
Marielle e Anderson, que completará um ano em março.
A propósito, jamais ouvi de qualquer dos Bolsonaro uma
palavra de repúdio ao crime hediondo, ao contrário da unânime condenação à
estúpida facada que atingiu o atual presidente, em setembro. Desprezando
qualquer sentimento humanitário elementar, seguidores de Bolsonaro quebraram
placa de homenagem a Marielle, com aplausos de quem veio a ser eleito
governador do Rio de Janeiro. Parcerias tenebrosas, tempos atrozes!
Chico Alencar é professor da UFRJ e escritor.


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