Há uma outra Val na complicada vida política da família
Bolsonaro. Se a primeira era uma suposta funcionária fantasma lotada no
gabinete de Jair Bolsonaro quando deputado federal, a nova Val exibe ligações
muito mais explosivas e perigosas. Quando foi desencadeada a operação “Quarto
Elemento”, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco)
e do Ministério Público do Rio de Janeiro, já era sabido que dois dos
milicianos presos, os gêmeos Alan e Alex Rodrigues Oliveira, eram irmãos de Valdenice
de Oliveira Meliga, e que ela era lotada no gabinete do então deputado estadual
e hoje senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). O que não se sabia — e ISTOÉ revela
nesta reportagem – é que Valdenice, a Val Meliga, era tão merecedora da
confiança de Flávio que ele entregou a ela a responsabilidade pelas contas da
sua campanha ao Senado. Val Meliga, irmã dos milicianos, assinou cheques de
despesas da campanha em nome de Flávio. ISTOÉ obteve dois cheques: um de R$ 3,5
mil e outro no valor de R$ 5 mil. Dona de uma empresa de eventos, a Me Liga
Produções e Eventos, Val era uma das pessoas a quem ele deu procuração,
conforme documento enviado à Justiça Eleitoral, para cumprir a tarefa. Mas não
só. Aos poucos, Val Meliga revela-se uma personagem que pode ser tornar
“nitroglicerina pura” para Flávio Bolsonaro. Ela é uma das pontas de um
intrincado novelo que une as duas maiores fragilidades que hoje fustigam o
filho do presidente da República e seu partido, o PSL: além do envolvimento com
as milícias do Rio de Janeiro, o uso de supostos laranjas e expedientes na
campanha para fazer retornar ao partido dinheiro do fundo partidário.
Explica-se: um dos cheques assinados por Val, no valor de R$ 5 mil, é destinado
à empresa Alê Soluções e Eventos Ltda, que pertence a Alessandra Cristina
Ferreira de Oliveira. O pagamento é referente ao serviço de contabilidade das
contas de Flávio Bolsonaro. Ocorre, porém, que Alessandra era também
funcionária do gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa, com um salário de
R$ 5,1 mil. Estava vinculada ao escritório da liderança do PSL na Alerj,
exercida por Flávio. E, na época da campanha, exercia a função de primeira
tesoureira do PSL. Mais do que isso, sua empresa não foi contratada para fazer
somente a contabilidade de Flávio Bolsonaro. Ela, a primeira-tesoureira do PSL,
ou seja, a pessoa a quem cabia destinar os recursos, fez, por meio de sua empresa,
a contabilidade de 42 campanhas eleitorais do PSL do Rio. Ou seja: cerca de um
a cada cinco postulantes a um cargo político pelo PSL do Rio deixou sua
contabilidade aos serviços da Alê, empresa de Alessandra, tesoureira do
partido. Assim, a responsável por entregar e distribuir os recursos do partido
tinha parte do recurso de volta para as contas de uma empresa de sua
responsabilidade.
Para atrair os candidatos, Alessandra ofereceu um pacote
mais barato do que o que eles encontrariam no mercado. Normalmente, uma empresa
de contabilidade cobra R$ 4 mil pela administração das contas de uma campanha.
Ela cobrou dos candidatos menores R$ 750. Para os candidatos com chances
médias, R$ 3 mil. Para as candidaturas mais fortes, como a do próprio Flávio,
R$ 5 mil. Ganhou no atacado, não no varejo. Ao todo, sua empresa recebeu das
campanhas R$ 55 mil.
O “combo”
Em mais uma ponta do novelo de recursos que vão e voltam
para pessoas do próprio PSL, Alessandra atuou em conjunto com o escritório
Jorge L.A. Domingues Sociedade Individual de Advocacia, que tem como um dos
sócios o advogado Gustavo Botto. Na prestação de contas à Justiça Eleitoral,
Gustavo Botto também aparece como um dos administradores das contas de Flávio
Bolsonaro. No combo que coloca Alessandra como contadora e Botto como
advogados, estiveram 36 campanhas do PSL. Seus serviços também variaram entre
R$ 750 e R$ 5 mil. No total, renderam ao escritório R$ 38 mil.
De todas as aspirantes a cargos eletivos que contrataram
Alessandra, mais de 95% conquistaram menos de dois mil votos. Candidatas do PSL
ouvidas por ISTOÉ relatam que, ao final, praticamente os únicos gastos que
efetivamente fizeram na sua campanha foram com a empresa de Alessandra e o
escritório de Botto. Foi o caso de Karen Valladares, que obteve 2,5 mil votos
no Rio e recebeu do PSL R$ 2,8 mil para a campanha. Ela pagou às duas empresas
e com o que sobrou contratou duas pessoas para cuidar das suas redes sociais.
“Foi praticamente uma troca. O valor que a gente recebeu, praticamente teve que
devolver. Nem deu para fazer campanha”, diz ela. “Eu não tinha experiência
nenhuma, com campanha. Então, para não ficar andando de um lado para o outro,
resolvi logo essa questão da contabilidade no partido”, conta outra candidata,
Ana Thaumaturgo, que teve 771 votos. Uma candidata, Heliana Souza, recebeu os
mesmos R$ 2,8 mil do PSL. Pagou R$ 750 a Alessandra e R$ 750 ao advogado. O
restante, ela devolveu para os cofres do Fundo Especial de Financiamento
Eleitoral. Ou seja, Alessandra e Botto fizeram a contabilidade e a defesa de
uma campanha que, na prática, não gastou mais um centavo sequer e que,
portanto, não existiu.
Endereço fantasma
Há outros aspectos estranhos que envolvem a empresa de
contabilidade de Alessandra. A Alê Soluções foi constituída em maio de 2007. E,
no começo, era somente uma empresa de eventos, como a de Val Meliga. Segundo,
porém, o registro junto à Receita Federal, existem dez atividades econômicas
secundárias mais tarde incorporadas à empresa. O mais próximo de contabilidade
que aparece são “Serviços combinados de escritório e apoio administrativo”. A
empresa tem capital social de R$ 60 mil. Para a Receita Federal, a Alê Soluções
está localizada na Estrada dos Bandeirantes 11216, na Vargem Pequena. Talvez
seja só coincidência, mas a Vargem Pequena, em Jacarepaguá, é uma das áreas
cariocas dominadas pelas milícias. Para o Tribunal Regional Eleitoral, no
entanto, o endereço anotado é Avenida das Américas número 18000 sala 220 D, no
Recreio dos Bandeirantes. Esse é simplesmente o endereço da sede do PSL do Rio.
Situação semelhante acontece com o escritório Jorge L.A.
Domingues Sociedade Individual de Advocacia. Para a receita, o endereço
informado é uma casa em Vila Valqueire. Para a Justiça Eleitoral, foi novamente
a sede do PSL do Rio. Por curiosidade, todos os endereços mencionados ficam em
Jacarepaguá. Onde também mora o ex-motorista Fabrício Queiroz, o desaparecido
primeiro suposto laranja ligado a Flávio Bolsonaro. E onde atuam as milícias.
ISTOÉ apurou que, durante a campanha, a Alê só trabalhou na
contabilidade dos candidatos. Entre maio de 2007 e agosto do ano passado, a
empresa emitiu 183 notas fiscais eletrônicas, conforme os registros do número
das notas concedido ao TRE. Uma média de 16 notas por ano. Somente durante a
eleição foram 46 notas em 4 meses. Notas sequenciais, o que indica o serviço
exclusivo para as campanhas. Apenas no dia do primeiro turno da eleição, 7 de
outubro, foram emitidas 18 notas fiscais entre as 21h31 e as 22h43. Uma média
de uma nota fiscal a cada 4 minutos. Houve caso de notas fiscais emitidas em um
tempo inferior a 2 minutos entre uma e outra.
Procurada, Alessandra Oliveira disse não enxergar conflito
ético no fato de ser ao mesmo tempo tesoureira do partido, funcionária de
Flávio Bolsonaro e ter contratado sua empresa para fazer a contabilidade das
campanhas. Segundo seu raciocínio, o recurso do Fundo Partidário não é do PSL
Estadual do Rio de Janeiro, mas do PSL Nacional. Ela afirma ter fundado a
empresa junto com seu ex-marido. Depois que se separou dele, mudou o nome.
Segundo ela, inicialmente a empresa funcionava na casa dele. Na campanha,
mudou-se para uma sala no mesmo prédio onde funciona o PSL. Há, aí, uma
contradição, porque o endereço declarado é o do PSL, inclusive a sala. E
Gustavo Botto afirma que trabalhava de fato na sede do partido para, segundo
ele, “facilitar a administração e resposta de eventuais comunicações processuais”.
Em resposta à ISTOÉ, Botto acrescentou que não houve conflito ético na atuação
dos advogados pelo “simples fato de que não há oposição de interesses entre
partido e candidatos. Ainda que porventura existisse uma divergência entre uma
candidata e o partido, tal atuação não se encontraria no escopo da assessoria
jurídica prestadas às candidatas, pois cuida-se somente de questões relativas à
campanha eleitoral”. Botto também esclarece que o trabalho de advocacia ocorreu
em parceria com outros três advogados e, para isso, foi utilizada a empresa
Jorge L.A.Domingues Sociedade Individual de Advocacia. A assessoria de Flávio
Bolsonaro não se manifestou.
Quando o Congresso aprovou, em 2015, a extinção do
financiamento privado de campanhas eleitorais, o ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF) e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar
Mendes, previu: “O Brasil vai ganhar a Copa do Mundo das Laranjas”. Os casos
que vão se revelando sobre o PSL parecem demonstrar que, nesse caso, o ministro
infelizmente parece ter razão.
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