O governo deu um passo na reforma da Previdência, mas
continua no clima de barraco eletrônico, com grupos internos se atacando.
Não entro em detalhes, nem me interesso por personagens.
Persigo um quadro um pouco maior.
Nele, a primeira ideia que surge dessas incessantes brigas é
a ausência da oposição, ocupando ampla e seriamente o seu espaço. Na falta
dela, o governo não tem com quem brigar e resolve brigar consigo próprio.
A cena agora revela mais abertamente uma tensão entre
presidente e vice. É uma dupla singular para quem observa o recente período
democrático. Na última viagem a Brasília, o fotógrafo Orlando Brito me mostrou
a imagem da posse de Fernando Henrique Cardoso. No carro aberto, o vice Marco
Maciel levantava a mão, de olho na altura da mão de Fernando Henrique. Ele não
queria que acidentalmente seu braço estivesse mais elevado.
Marco Maciel era rigoroso na interpretação do papel do vice.
Entre Temer e Dilma, houve um período em que a relação esquentou, terminando
com aquela carta em tom de bolero: você não se importa comigo, sou apenas um
vice decorativo.
Era, na verdade, uma carta de despedida. Temer já se
preparava para substituir Dilma.
No caso Bolsonaro-Mourão, teoricamente tinham tudo para se
complementar. Poderiam ter até combinado uma divisão de trabalho: Bolsonaro
falaria para seus adeptos; Mourão faria a ponte com os setores que, por pura
rejeição ao PT, votaram sem concordar com tudo.
Mas a política não se faz apenas com teorias. Ela é mediada
por nossas paixões humanas. Sem combinar suas posições, agindo
desorganizadamente, acabaram caindo na armadilha de sempre: até que ponto o
vice pode ser protagonista?
No princípio da campanha, Mourão parecia tão ou mais
conservador que Bolsonaro. Com o tempo, foi abrandando seu discurso, voltado
para o mercado financeiro, a imprensa, a diplomacia.
Até que ponto Mourão quis apenas manter a amplitude da
frente que elegeu Bolsonaro, até que ponto seu protagonismo é a maneira de se
diferenciar dele, mostrar-se como uma alternativa?
Isso dá margem para tantas nuances interpretativas que
prefiro avançar um pouco na tese inicial. Não importa o que aconteça com
Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas
tensões internas, sobretudo pela ausência de uma forte oposição. Um efeito
colateral dos confrontos entre alas do governo é o tiroteio contra as Forcas
Armadas. O que se diz sobre os militares em posts e lives da direita, não se
dizia nem nos panfletos da extrema esquerda no tempo da Guerra Fria.
Não me importo com textos que tentam interpretar o golpe de
64 como algo realizado pelos civis, muito menos com a afirmação de que os
militares destruíram os políticos de direita.
O mundo da internet é recheado de interpretações, eletrizado
por teorias conspiratórias. Por que perder tempo em desfazê-las?
As coisas mudam de figura quando os ataques às Forcas
Armadas são postados na conta do próprio presidente da República.
É algo tão grave, em termos políticos, como a postagem do
golden shower. Não creio que Bolsonaro compartilhe realmente da tese de que as
Forcas Armadas no Brasil são uma nulidade. Todo os que viajam pelo Brasil podem
testemunhar a ação positiva do Exército. Se quiser reduzir o aprendizado a duas
situações, basta ir à fronteira com a Venezuela, ou mesmo às cidades mais secas
do Nordeste, onde o Exército organiza o abastecimento de água.
Quem gosta de ler também pode ter acesso às obras que
militares têm publicado. Outro dia, resenhei o livro do coronel Alessandro
Visacro sobre “A guerra na era da informação”. Acabo de receber o livro
“Direito internacional humanitário”, do coronel Carlos Frederico Cinelli. Um
estudo sobre a ética em conflitos armados.
As Forcas Armadas não divagam sobre filosofia ou política,
mas cuidam de temas ligados à sua atividade principal.
Quem escolheu um general como vice foi o próprio Bolsonaro.
Tem de arcar com sua escolha. Se quiser trocar de vice, que o faça em 2022, se
for candidato.
A comparação das fotos de posse de Fernando Henrique e
Bolsonaro é sintomática. No carro de FH, Marco Maciel obcecado em ser discreto;
no carro de Bolsonaro, a ausência. Em seu lugar, Carlos Bolsonaro, protegendo o
pai.
O protagonismo de Mourão foi suprimido no ritual. Naquele
momento, o drama, como dizia o poeta Drummond, já se precipitava sem máscaras.
Era só olhar.
Artigo publicado no Globo em 29/04/2019
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