O Brasil é dirigido por um bando de loucos, afirmou Lula.
Ainda bem que não são cachaceiros, respondeu Bolsonaro. Os dois homens com mais
apelo popular no Brasil falam uma linguagem rude e franca. Sabem que se
comunicam com a maioria e desprezam as nuances sofisticadas para combaterem um
ao outro.
Essa polaridade é um sinal dos tempos. Na verdade, Bolsonaro
é um recém-chegado. Ele explodiu a outra polaridade, entre PSDB e PT, assim
como em muitos lugares da Europa também foi para o espaço a alternância
centro-direita e centro-esquerda.
Bolsonaro procura expressar o que acha ser a aspiração do
homem comum. É disso que se trata: apresentar soluções simples e deixar que a
complexidade fique para intelectuais e especialistas – os suspeitos de estarem
enrolando e mantendo o status quo com suas avaliações mais profundas.
Creio que é dentro desse contexto que é preciso analisar a
disposição de Bolsonaro de reduzir o apoio aos cursos de sociologia e
filosofia. Ele quer se dedicar aos que dão retorno, como os de agricultura,
medicina, administração.
Bolsonaro já foi contestado de muitas formas. Ficou claro
que há uma previsão constitucional amparando esses cursos. A contestação que
deve ter pegado mais fundo é a de natureza econômica: o avanço da robótica, da
inteligência artificial, reacendeu a importância das ciências humanas.
Asfixiá-las seria um lamentável atraso.
O próprio Japão, usado como argumento, já percebeu que os
desdobramentos científicos tornaram um erro a ideia de subestimar as ciências
humanas.
Não sei como essas coisas vão ser elaboradas na cabeça de
Bolsonaro. Sinto que ele exprime uma espécie de senso comum talvez originado na
suposição de que apenas o que se produz materialmente tem valor – outro
equívoco bastante difundido entre as pessoas que buscam líderes simples e
diretos para resolver os problemas do País.
Outra fonte de mal-entendidos é supor que sociologia e
filosofia sejam matérias de esquerda, isto é, conduzam os que se dedicam a elas
inevitavelmente a uma posição contestadora.
Se a direita que apoia Bolsonaro pensa assim e quer suprimir
cursos, ela está, na verdade, capitulando intelectualmente, abandonando um
campo por achar que a partida ali jamais será ganha ou, no mínimo, empatada.
No livro O Povo Contra a Democracia, Yasha Mounk, acho eu,
acerta ao afirmar que esses líderes expressam posições populares e não adianta
vê-los com olhar superior ou classificar seus seguidores como idiotas. Essa é
uma tese que defendo, em termos semelhantes, desde o período eleitoral. O
segredo, para ficarmos numa expressão popular, é mostrar às pessoas como o
buraco é mais embaixo, nem todas as ideias simples são exequíveis.
Bolsonaro vetou um anúncio do Banco do Brasil (BB). Havia
gays, tatuados e negros. Na sua visão estreita, a propaganda do banco é um
instrumento da guerra cultural. O povo não pagará por ideias que confrontam a
família.
A deputada Janaina Paschoal chegou a perguntar por que
estatais fazem propaganda. No caso, o Banco do Brasil é apenas um ator num
cenário competitivo em que estão também os bancos privados. A propaganda é uma
forma de competir e assegurar uma fatia do mercado.
Mesmo aqueles que defendem a privatização do BB – talvez não
seja o caso de Bolsonaro – deveriam estar interessados em que o banco não perca
uma fatia de mercado. Se isso acontecer, sai mais barato, o País receberia
menos por ele.
Tudo isso, na verdade, é apenas uma reflexão sobre a tática,
a possibilidade de progressivamente levar às pessoas uma ideia de que as coisas
são mais complexas, sem que com isso se considerem ludibriadas por um
misterioso e onipresente sistema.
Bolsonaro tem dito que a propriedade privada é sagrada. Hoje
usa esse argumento para refletir sobre a resistência dos fazendeiros às
invasões de terras.
No entanto, há várias situações em que a tese da sacralidade
tem de ser relativizada. Às vezes, um rio que passa na sua sagrada propriedade
privada é o mesmo que passará em outras sagradas propriedades, ou terá de
abastecer os que não têm nenhuma propriedade. É possível, em nome do seu pedaço
de terra, arruinar um patrimônio comum?
Os políticos que propõem soluções simples para os problemas
complexos vencem de goleada no Brasil de hoje. E, diria, em muitos pontos do
globo, na atual conjuntura. O problema com eles é que o tempo vai passando e as
pessoas que esperam soluções simples e rápidas se desapontam com facilidade. E
o capital político escapa pelos dedos.
Os movimentos de Bolsonaro são uma espécie de contraponto à
reforma da Previdência. No momento, é o tema que pode trazer algum alívio à
economia, sem necessariamente despertar entusiasmo popular.
Ele parece atento a esse jogo. Tanto que descartou a ideia
de mais um imposto que atingiria também as igrejas, sobretudo as evangélicas. E
se concentra na guerra cultural, um campo em que as coisas não só se mexem com
muita lentidão, como dependem do confronto de ideias e se realizam com armas
próprias, dentro da diversidade.
A grande tarefa dos intelectuais é convencer as pessoas que
desconfiam da sua atividade e mostrar pacientemente o seu valor. É importante
não perder o vínculo com as pessoas que acreditam, como Bolsonaro, que ciências
humanas não têm retorno.
A convergência das ciências humanas com a inteligência
artificial, que vai revolucionar nossos cotidianos, é um bom argumento. Mostra
que está em jogo o futuro de todos nós. E nos anima a argumentar que a
desconfiança mútua é um fator de atraso.
Intimidar intelectualmente os simpatizantes do populismo não
me parece o caminho adequado. O melhor é mostrar de forma amigável o que às
vezes fazemos com arrogância: que as coisas são mais complicadas do que
parecem.
Artigo publicado no Estadão em 03/05/2019
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