O retrato está na primeira página do Estadão de ontem. A
foto, assinada por Dida Sampaio, estende-se de fora a fora e mostra um
amontoado de homens engravatados, sorridentes e agitados. Quatro deles
reproduzem, uns com as duas mãos, o gesto que foi a marca registrada do
candidato vencedor na campanha eleitoral de 2018: o indicador rijo (dedo duro)
apontado para a frente e o polegar espetado para cima simulam um revólver
pronto para disparar. Esses senhores parecem festejar dando tiros imaginários
para o alto. São os pistoleiros do apocalipse.
No meio deles, cabeça baixa, curvado sobre uma mesa, o
presidente da República também sorri. Ele apenas reclinou o tronco para assinar
um papel: o decreto que facilita ainda mais o registro, a posse, o porte e a
comercialização de armas de fogo para colecionadores, atiradores esportivos e
caçadores (o texto menciona ainda praças das Forças Armadas e militares inativos).
Conforme saiu publicado no Diário Oficial, o decreto também franqueia o porte a
políticos, motoristas de veículos de carga, proprietários rurais e outras
categorias profissionais. Por isso, aquela falange masculina em torno do chefe
de Estado se rejubila. O grupo lembra uma torcida que comemora um gol. Uns e
outros parecem gritar de euforia. De outro lado, há algo naqueles homens que os
assemelha a crianças que acabam de ganhar um brinquedo novo. O brinquedo que
tanto os excita é um aparelho de matar gente.
Uma segunda notícia que despertou alguma atenção por estes
dias foi a denúncia que parlamentares brasileiros protocolaram na ONU contra o
governador do Rio, Wilson Witzel. Os denunciantes afirmam que o número de
mortes em confrontos com policiais no Estado bateu um recorde no primeiro
trimestre de 2019. Falam em “agenda genocida”. Witzel, a propósito, filmou a si
mesmo a bordo de um helicóptero armado de metralhadora de grosso calibre
prometendo “acabar de vez com essa bandidagem que está aterrorizando a nossa
cidade maravilhosa de Angra dos Reis”. O vídeo é forte. Talvez não seja
recomendável para menores de 18 anos. Ou de 25 anos. O governante esbraveja e
exulta. Parece crer que o chumbo libertará os balneários.
Imagens explícitas da fusão doentia entre virilidade e
pólvora nunca foram tão obscenas – e tão oficiais – no Brasil. Nunca a política
esteve tão entregue ao tiroteio. Nem mesmo no tempo da caça a Lampião. Nem
mesmo nas excursões armadas que dizimaram os domínios de Antônio Conselheiro. A
macheza fumegante ocupa o topo da pirâmide das virtudes políticas. Perto de
personagens assim, o pobre ditador João Figueiredo, que dizia “eu prendo e
arrebento”, é uma indefesa Madre Teresa de Calcutá.
Enquanto isso, no Ministério da Educação o tempo vai fechando.
Segundo informou na terça-feira a Agência Brasil, o ministro Abraham Weintraub
vituperou uma vez mais contra as universidades públicas e os cursos de
humanidades. Segundo se lê no informe da agência – controlada pela estatal EBC
–, Weintraub teria dito que “apenas 13% da produção na área de Ciências Sociais
Aplicadas, Humanas e Linguística têm impacto científico” e que, apesar disso,
“a maioria das bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes) vão para estudantes da área de Humanas”, num “investimento não
traz retorno efetivo ao País”. Com esse tipo de “análise”, o ministro defende
cortes orçamentários no ensino público.
Você pode até dizer que são notícias desimportantes. Talvez
sejam mesmo. Diante das urgências clamorosas que reclamam soluções da gestão
pública neste país, os trejeitos machistas do entorno do presidente da
República, as bravatas facínoras do governador do Rio ou as selvagerias verbais
do ministro da Educação, haveremos de convir, são episódios menores. Não
obstante, importam. É por esses episódios menores que o caráter do poder que aí
está se revela sem reservas. É nos excessos despudorados dessas autoridades que
podemos vislumbrar a face crua de um estado de coisas que promove a
multiplicação das armas de fogo, ao passo que amaldiçoa a circulação de livros
e ideias.
Para a onda autoritária em ascensão, esta que aí está, só a
violência pode organizar a vida. Para o bolsonarismo, a reflexão filosófica é
perda de tempo (“não traz retorno”) e os cursos de humanas são centros
geradores de “balbúrdia”. Estamos assistindo, com alguma passividade, a uma
reprise de filmes antigos cujo final já conhecemos. Esses governantes não
suportam a dissidência, a diversidade, a discordância, a liberdade individual
de dar curso ao desejo, tenha ele a forma amorosa que tiver. Eles não gostam de
democracia, na verdade. Eles detestam os livros. Eles são fascinados por armas
fálicas.
Os pactos autoritários tiram seu vigor da obediência, da
adesão e da renúncia de cada um à autonomia crítica. Não por acaso, é isso o
que o bolsonarismo requisita a seus seguidores. A ordem democrática, ao
contrário, extrai energia das diferenças. A obediência mata as sociedades
democráticas, pois mata, dentro delas, os princípios que favorecem a alternância
do poder na esfera política, a inovação na área industrial e a arte
desestabilizadora no campo da cultura. A obediência – tão cara ao bolsonarismo
– clama por tiranias, assim como o exercício da liberdade clama por democracia.
Não há mais como ter dúvidas: o que está em formação no
Brasil é um pacto autoritário, de viés fascistizante, que anuncia aos súditos
uma bonança que será produzida por tiros de fuzil. Nesse pacto, as bibliotecas
serão banidas como focos de subversão e os quartéis serão transformados em
catedrais da moral. O poder que se vai formando entre nós é o poder das
desumanidades armadas.
Faz muito tempo, o escritor Monteiro Lobato escreveu que “um
país se faz com homens e livros”. Hoje olhamos para os palácios no Brasil e
constatamos a escassez do que nos torna humanos, seja no plano das ideias, seja
no plano dos sentimentos. Um país se desfaz.
*JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
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