A cena foi digna de um filme sobre tempos obscuros em alguma
ditadura recém-instaurada. Inspetores entram em salas de aula e, sem nenhuma
explicação, ordenam aos alunos que entreguem suas cartilhas escolares, que são
jogadas em sacos de lixo.
Embora não exista nenhum registro fotográfico desse momento
patético e triste da educação brasileira, a imagem foi relatada por vários
professores da rede estadual de ensino.
“Parecia coisa de filme. Só fomos entender quando vimos a
cópia de um comunicado da diretoria de ensino, que mandava colocar o material
‘em caixas ou sacos pretos [de lixo]'”, conta um professor que não quis se
identificar com medo de represália (Folha, 4/9).
O prejuízo dessa ação na formação dos jovens é incalculável
e vai muito além de os ter privado de uma cartilha, felizmente apenas por
alguns dias, pois o Poder Judiciário determinou que o material fosse devolvido.
O que será que se passou pela cabeça de um adolescente de 14
anos ao ver, sem nenhum diálogo ou explicação razoável, um material didático
fornecido pela própria escola sendo jogado em um saco de lixo?
Nessa idade, própria da rebeldia adolescente, a
agressividade em relação à escola e a contestação ao processo de aprendizado
crescem acentuadamente.
O diálogo franco entre professores e estudantes é
absolutamente fundamental para se alcançar os resultados educacionais
esperados. Mas como dialogar quando uma ordem superior, desprovida de sentido,
desorganiza todo o planejamento e organização pedagógica?
Ao determinar o recolhimento de 330 mil exemplares de um
livro escolar de 144 páginas, que tratava de oito disciplinas (português,
matemática, geografia, história, ciências naturais, inglês, arte e educação
física), o governador João Doria (PSDB) extrapolou suas atribuições e cometeu
um abuso de autoridade.
Não é competência de um governador definir o conteúdo do
material escolar entregue aos alunos nem interferir de forma abusiva no que
acontece em sala de aula.
Em publicação em rede social, forma inadequada de tratar de
assuntos ligados às políticas públicas, o governador afirmou que foi
"alertado de um erro inaceitável no material escolar dos alunos do 8º ano
da rede estadual”, que solicitou ao secretário de Educação “o imediato
recolhimento do material e apuração dos responsáveis” pois “não concordamos e
nem aceitamos apologia à ideologia de gênero”.
Acrescentou ainda que “tomou a decisão sem sequer ter visto
o material”. Se não viu e não gostou, deve ter tomado a decisão baseado apenas
em critérios políticos e não científicos ou pedagógicos. Afinal, foi alertado
de um erro inaceitável no material por quem?
Como Dráuzio Varela afirmou em sua coluna na Folha (15/9),
a ideologia de gênero “nunca foi mencionada em artigos científicos nem nos
livros de psicologia ou de qualquer ramo da biologia”.
De modo didático, o médico explicou para o grande público,
de maneira aprofundada, o mesmo conteúdo que as três páginas do segmento de
ciências, que trata de ‘sexo biológico, identidade de gênero e orientação
sexual’, na cartilha colocada no “index”, informava aos alunos.
O episódio mostrou que o governador, ao tentar disputar o
eleitorado conservador, aderiu às teses anticientíficas defendidas pelo núcleo
duro do bolsonarismo e pelo guru Olavo de Carvalho.
Revela ainda que desconhece os procedimentos administrativos
e jurídicos básicos da gestão pública e que seus impulsos autoritários,
expostos inúmeras vezes quando prefeito de São Paulo, continuam presentes nas
suas atitudes e no seu modo de governar. Mostra, enfim, que Doria se iguala a
Bolsonaro no que há de pior.
Talvez o único ganho desse episódio seja a oportunidade para
professores e alunos dialogarem sobre o que significa autoritarismo, ditadura,
ideologia de gênero e Escola sem Partido. E para conversarem sobre a
importância da independência do Legislativo e do Judiciário para se contrapor
às tentativas de exercício de poder absoluto por parte dos governantes.
Nabil Bonduki
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP,
foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.


Nenhum comentário:
Postar um comentário