Muita gente do campo democrático anda preocupada em superar
a atual polarização brasileira e encontrar um rumo para o País. Acontece que o
Brasil não vai experimentar nenhuma guinada realmente democrática se não
encarar duas coisas. A primeira, mais imediata e superficial, é que este campo
democrático se empenhe de fato numa releitura rigorosa do que aconteceu de 2013
para cá. A segunda, exigindo mergulho em águas mais profundas, é a necessidade
de repensar a sociedade e reinventar a nação.
Junho de 2013 expressou de forma aguda a crise
representacional do partidocratismo. A chamada “classe política” tinha
simplesmente dado as costas à sociedade. E esta – numa resposta lógica e
natural, mas surpreendentemente enérgica – declarou nas ruas que aquela não a
representava. Infelizmente, a discussão acabou sufocada por dois processos. De
uma parte, o da corrupção, vindo à luz de forma inédita em nossa história. De
outra, o do “impeachment”. E a conversa política mais rica foi adiada. O regime
partidocrata sentiu, aliviado, que podia empurrar a questão com a barriga.
Neste sentido, a campanha presidencial de 2014 foi escandalosamente esperta,
entre a dissimulação e a alienação.
Todos os candidatos – sem exceção – fizeram de conta que
2013 não tinha acontecido. O ideal seria que os partidos tivessem a coragem de
fazer uma espécie de “psicanálise selvagem”, para usar a expressão freudiana
cara a Glauber Rocha. Como isso não acontecerá dentro do atual sistema
político-partidário, teríamos ao menos de rever a peripécia que nos levou ao
fracasso. Ou começaremos mal – se é que será possível falar de começo e não de
mera continuação de tudo. Insistimos que o PT é incapaz de explicitar seus
erros. Mas os demais partidos de esquerda e centro-esquerda, também. Nunca ouvi
uma autocrítica em profundidade do PSDB. De outro ângulo, a Rede precisa
aprender a ser mais conjuntural ou vai se tornar pura fantasia filosófica.
Parece que, hoje, humildade política é um bem bastante escasso no País. Mas
vamos ter de passar por esse cabo das tormentas, se quisermos que ele vire da
boa esperança.
Quanto ao outro lance, o sociólogo Werneck Vianna passou
pelo tema em entrevista recente. Observou que o desentendimento a respeito de
nossa trajetória histórica e dos nossos valores chegou a um ponto agônico:
“Ninguém mais pode reconhecer na nossa história êxitos e sucessos”. Execra-se
até mesmo a Abolição de 1888, luta democrática vigorosa, que se arrastou por
décadas, numa ampla coalizão de classes e cores. Enfim, “tudo que era da nossa
tradição foi depredado, foi jogado no lixo”. Despreza-se a nossa história,
desqualificam-se todos os nossos feitos: o 13 de Maio hoje é “o dia do
taxidermista”. A grande questão é esta: de algumas décadas para cá, temos
submetido a nossa história como povo e nação, a nossa experiência nacional, a
um processo de avacalhação sistemática.
Vou resumir o que aconteceu. A partir da
década de 1970, a esquerda começou a produzir uma espécie de contra-história do
Brasil. E digo contra-história porque era a mesma velha história oficial, que
nos veio de Varnhagen e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, mas com
o sinal algébrico radicalmente invertido: tudo o que antes se celebrava, passou
a ser execrado. E tudo que era desconsiderado, passou a ser glorificado. Com o
tempo, qualquer feito nacional se tornou alvo de agressão, desprezo e chacota.
Na verdade, o que se fez foi substituir mentiras antigas por mentiras novas. O
Brasil passou a ser visto como num antigo filme de bandido e mocinho. E foram
se multiplicando textos e mais textos nessa direção, conformando então uma nova
história oficial do País, desde que ela se gravou nos parâmetros curriculares
do ensino, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso.
E o processo não parou. Foram pilhas e pilhas de livros,
bombardeio diário nas salas de aula. A apresentação da Estação Primeira de
Mangueira, no carnaval deste ano, foi na verdade o desfile desta nova história
oficial. Houve quem chegasse a escrever que a escola de samba estava contando a
história que não se encontrava nos livros. Longe disso: o desfile da Mangueira
foi desfecho de anos e anos de doutrinação, via livros, artigos, panfletos,
cursinhos políticos, pregação em escolas públicas e privadas. Com todas as suas
mistificações, que a esquerda cultua por desconhecimento dos fatos históricos.
Foi assim que vi a ex-ministra da Cultura, minha querida Ana
de Holanda, aplaudindo: vamos, com a Mangueira, saudar os malês. Ora, os malês
nada tinham a ver com liberdade, igualdade, fraternidade. Pelo contrário: seu
projeto, em 1835, incluía fuzilar os brancos e escravizar os mulatos. Como
Zumbi, eram africanos escravistas, que lutavam exclusivamente contra a sua
própria escravização, não contra a escravidão em geral. Esta só foi combatida,
enquanto sistema, pelo movimento abolicionista.
Esta desqualificação da experiência nacional brasileira,
como disse, rola no reino do desconhecimento. E o que é pior: no espaço de uma
sociedade bipolar. Vai-se então da euforia à depressão em fração de segundo,
mas sob os signos constantes do masoquismo e da autodepreciação derivada da
ignorância. Daí que ouçamos frases do tipo “é assim desde 1500, é assim desde
as capitanias”, por exemplo. Mas é ridículo postular uma linha de continuidade
entre Mem de Sá e a Odebrecht. A suposta analogia é fruto apenas da combinação
de ignorância histórica e masoquismo nacional.
Claro que temos um vasto elenco de coisas abomináveis em
nossa história. E ao mesmo tempo temos muito o quê comemorar. Falei já do
movimento abolicionista e de 1888, ainda hoje a nossa maior revolução social.
Mas posso dar vários exemplos e em diversos campos. Vejamos. Enquanto os
norte-americanos atiravam seus índios em reservas estéreis de poeira e cactos,
o Brasil (graças ao general Rondon e aos antropólogos Darcy Ribeiro e Eduardo
Galvão, o autor de Santos e Visagens) criou o Parque Nacional do Xingu, um
paraíso ecológico maior do que Israel, quase do tamanho da Bélgica.
Mesmo nosso tão criticado espírito de conciliação merece ser
visto com outros olhos. Quem o despreza, manifesta-se, admitindo-o ou não, como
se só a guerra fratricida, com cidades bombardeadas e gente metralhada nas
ruas, pudesse ser a glória suprema. Uma celebração bélica que nos vem de
comunistas e do futurista Marinetti – e que aqui podemos encontrar tanto no
Retrato do Brasil do aristocrata Paulo Prado quanto nos delírios mais
extremistas da esquerda. Um sub-romantismo homicida.
Enfim, o Brasil precisa de uma tremenda mudança de
mentalidade com relação a si mesmo. “Metânoia” era a palavra grega para isso,
como aprendemos com a “Septuaginta”. Sim: mudar a mentalidade deve ser o
objetivo maior. E esta será uma tremenda luta ideológica e cultural. Não para
voltar atrás, mas para ajustar as coisas, em leituras mais serenas e menos
sectárias.
Temos de ser claros e críticos diante dos legados
históricos, mas não cegos, desinformados e unilaterais. Porque o que se fez,
com a construção de uma nova história oficial do País, resultou em
autossabotagem nacional. Na banalização do tudo-que-o-Brasil-e-os-brasileiros-fazem
é merda.
Enfim, é isso. Falando da França oitocentista em seu Diário,
Michelet disse algo que se aplica à perfeição à atual conjuntura brasileira:
“De todos os males deste país, o mais profundo, a meu ver, é que ele perdeu a
consciência de si mesmo, a consciência de sua natureza, de sua missão, de seu
papel nesse momento, a consciência histórica de seu verdadeiro passado”. Sem
uma revisão crítica do que levou às manifestações de junho de 2013 e desembocou
na vitória da extrema direita em 2018, de uma parte – e, de outra, sem um
repensamento vertical da nossa história e da nossa sociedade, com vistas a uma
reinvenção da nação, dificilmente iremos a algum lugar.
*Antonio Risério é poeta, antropólogo e romancista, autor,
entre outros, de ‘A utopia brasileira e os movimentos negros’ e ‘A casa no
Brasil’


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