Nos EUA, a senadora democrata Elizabeth Warren abriu uma
cruzada contra o Facebook e outros titãs da tecnologia digital (tech industry),
como Amazon e Google. Possível candidata à sucessão de Donald Trump, ela
pretende quebrar os monopólios exercidos por essas empresas.
Do outro lado do Atlântico, a União Europeia (UE) procura
fazer a sua parte. Tentou proibir os gigantes Facebook e WhatsApp (ambos
controlados pelo cyberimperador Mark Zuckerberg) de compartilhar dados sobre
seus usuários, uma prática que, segundo o Parlamento Europeu, violaria as
políticas de proteção de dados do continente e favoreceria ainda mais o mercado
monopolista. A UE também vem exigindo que os conglomerados digitais adotem
medidas mais efetivas contra as fake news, mas não impôs recuos significativos
aos tais titãs.
No Velho Mundo, como no Novo, as democracias ainda estão
longe de enquadrar os conglomerados. Ao contrário, eles é que ameaçam engolir a
democracia de uma vez.
Não é difícil de entender por quê. Se uma sociedade que se
pretende livre deixa os eleitores se afogarem na desinformação, as decisões
aprovadas por esses mesmos eleitores tendem a perder racionalidade,
legitimidade e sustentabilidade. Quando a desinformação é crônica, aflora o
risco real de que o processo decisório da democracia deságue na negação da
democracia. O risco, aliás, já está posto. Em diversos países, líderes
nacionais, depois de ganharem eleições livres, passam a combater a ordem
democrática: em várias partes do mundo a democracia vem gestando seu oposto.
Por certo, são muitos os fatores que concorrem para esse
quadro alarmante, mas, qualquer que seja o prisma analítico, as corporações que
monopolizam as tecnologias digitais e as mídias sociais têm tudo que ver com
isso. Na essência de seu negócio, elas não têm compromisso com a qualidade dos
processos democráticos e com a verdade dos fatos. Isso porque a essência do seu
negócio não é informar. Nunca foi. O negócio delas é capturar o olhar mediante
todo tipo de apelação e, por meio do olhar capturado, extrair os dados pessoais
de cada um de nós – dados que depois serão comercializados, sem que a gente
ganhe um centavo em troca.
Nesse jogo extrativista que fez degringolar o padrão do
debate público o centro do capitalismo se deslocou. Em 1998 as cinco empresas
mais valiosas do mundo eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola.
Na lista, apenas a Microsoft, vendendo softwares, já estava no negócio de
extração de dados pessoais (as outras quatro fabricavam mercadorias palpáveis,
coisas corpóreas e outras antiguidades). Em 2018, passados apenas 20 anos, as
cinco empresas mais valiosas do mundo eram Apple, Amazon (as duas já triscavam,
no ano passado, o valor de US$ 1 trilhão), Alphabet (Google), Microsoft e
Facebook.Todas eram (e são) atratoras de olhar e extratoras de dados pessoais.
A revista The Economist percebeu a mutação do capitalismo
quando estampou na capa, em 6/5/2017, que os dados pessoais eram o novo
petróleo. A Economist também lançava um alerta: a nova economia dos dados pedia
uma nova atitude das regulações antitruste. Quem se habilitou a tomar
providências? Elizabeth Warren? A União Europeia? Até agora, estamos no plano
das boas intenções.
Soltos no vazio legal, os monopolistas do olhar, atuando
acima do alcance das legislações nacionais, desenvolveram escalas de exploração
inimagináveis. Não precisaram contratar assaltantes armados para invadir os
lares e torturar os moradores até arrancar deles os seus segredos mais íntimos,
como seus resultados de exames clínicos, sua fé religiosa, seus amores
secretos, seus perfis de gastos no cartão de crédito, seus itinerários pela
cidade e seus temores inconfessáveis. Em vez de recrutar assaltantes a
domicílio, criaram estratégias sedutoras para que as multidões entregassem tudo
isso e mais um pouco de mão beijada – de livre, espontânea e deslumbrada
vontade.
Num Facebook da vida, o usuário sente-se um rei, como se
recebesse de presente ferramentas maravilhosas para encontrar os amigos de infância
e falar mal dos inimigos de morte. O pobre rei, contudo, não passa de mão de
obra escrava e matéria-prima gratuita. De uma vez só. Enquanto imagina se
divertir, embevecido de si mesmo, trabalha mais do que um remador das galés
romanas. O Facebook não precisa empregar digitadores ou fotógrafos, pois o
usuário faz isso de graça. O Facebook não precisa comprar os dados pessoais dos
seus escravos, a matéria-prima vem sem custo algum, seja nas fotos de prato de
comida, seja nos movimentos dos olhos diante da tela. Depois os dados viram
dinheiro, na casa dos trilhões de dólares, e o usuário lá, rei imaginário, não
recebe nem esmola.
Perto desse novo formato de exploração, o truque infame de
dar espelhinho para índio é um gesto solidário. As crianças que trabalhavam 16
horas por dia nas fábricas infectas do século 19 não eram tão aviltadas em sua
dignidade.
Estamos submetidos a uma ordem totalitária, na qual a vida
privada dos reles mortais é devassada pelo poder dos conglomerados, enquanto o
que se passa no núcleo do poder dos conglomerados é perfeitamente invisível
para os reles mortais. As empresas mais valiosas do nosso tempo sabem tudo de
nós e nós não sabemos nada sobre elas. Mais ainda, o centro dos conglomerados é
opaco para o Estado democrático de direito. O poder legítimo do Estado não sabe
o que se passa dentro deles. Google e Facebook escondem até quanto faturam em
publicidade em países como o Brasil. Não prestam contas às sociedades que
exploram.
E tudo isso para quê? Para espalhar fake news, para deteriorar
a razão dos argumentos na esfera pública, para consagrar líderes que vencem
eleições livres e depois bombardeiam a liberdade. Elizabeth Warren tem razão.
Ou as democracias impõem limites a essas empresas, ou elas vão fazer sangrar
até a morte aquela que, precariamente, teríamos chamado de civilização.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário