Escrevo este artigo no dia em que, a algumas quadras de onde
trabalho, Trump comemora a primeira fase do acordo selado com a China. A
primeira fase do acordo pouco altera aquilo que já está em vigência. Os Estados
Unidos concordaram em suspender a imposição de tarifas de importação adicionais
aos produtos chineses, reduzir algumas das hoje existentes e manter muitas das
que foram instituídas ao longo da guerra comercial iniciada há dois anos. Em
troca, a China prometeu comprar mais produtos agrícolas dos EUA, além de outros
bens e serviços.
O governo Trump haverá de monitorar o cumprimento do acordo,
mas sem estabelecer critérios claros sobre que tipo de ação poderia provocar o
recrudescimento da guerra comercial com a China, deixando no ar incertezas
consideráveis para o restante do mundo. Nas declarações antes da assinatura dos
documentos, Trump exaltou seu feito dizendo que se abria uma nova era de
comércio livre, justo e recíproco. Há uma falsa qualificação entre os três
adjetivos: livre o comércio com a China não é mais, já que as tarifas médias
passaram de 3% a quase 20% desde o início do governo Trump.
Os dois outros adjetivos, “justo” e “recíproco”, são
interessantes por sua longa história na retórica política e econômica sobre o
comércio internacional. Essa história tem início no fim do século XIX, quando a
grande potência global era o Reino Unido. Embora ainda dono da hegemonia
econômica e política da época, entre 1870 e 1913 o Reino Unido testemunhou sua
perda gradual de importância nos fluxos de comércio com a ascensão de duas
futuras potências industriais: os EUA e a Alemanha.
Ainda que o poder hegemônico dos EUA só viesse a se
consolidar em meados do século XX, suas indústrias ameaçavam o status
britânico, entre outros motivos, porque trabalhavam com tecnologias mais
avançadas e desfrutavam de tarifas protecionistas e da capacidade de formar
grandes conglomerados e cartéis. Ao contrário, o Reino Unido, como guardião do
laissez-faire, não permitia a cartelização e se opunha ferrenhamente ao protecionismo.
E assim foi até o dia em que se deram conta de que o encolhimento de seu papel
global era inevitável. Então surgiram os clamores por “um comércio justo”, por
medidas punitivas ou retaliatórias para os parceiros que burlavam as regras do
livre-comércio.
Os defensores britânicos da justiça comercial e da
reciprocidade queriam uma reforma tarifária que impusesse o protecionismo a fim
de “defender a indústria britânica e os empregos”. Tais clamores não
prosperaram por duas razões: em primeiro lugar, porque, apesar das adesões de
peso a essa visão, muitos ainda se opunham ao protecionismo — políticos,
industrialistas e latifundiários —; em segundo lugar, porque pouco tempo depois
eclodiu a Primeira Guerra Mundial. O ímpeto protecionista ganharia novo fôlego
anos mais tarde, sobretudo depois da Crise de 1929 e da Grande Depressão.
Agora apertem o botão para avançar rapidamente para 2016, o
ano da campanha de Trump. O então candidato atacou o México, denunciou a China
e ergueu o dedo em riste para a União Europeia. Todos esses parceiros, dizia,
não competiam de forma justa com os EUA. Todos, acusava, adotavam tarifas
excessivas, que prejudicavam as empresas e os empregos na “América”. A China,
em particular, provocara enormes danos, bradava. Suas práticas desleais haviam
acabado com a indústria manufatureira tradicional dos EUA, eliminando milhões
de empregos sem que os governos anteriores tivessem feito qualquer coisa para
estancar a sangria. A imagem de um país hemorrágico seria usada novamente no
discurso de posse, em 20 de janeiro de 2017.
É verdade que Trump não foi o único presidente americano a
falar em protecionismo e reciprocidade. Antes dele, Ronald Reagan atacara o
Japão por razões semelhantes às acusações hoje dirigidas à China, pois a
hegemonia dos EUA já estava ameaçada pelos “insurgentes”. Entretanto, pouco
depois, nos anos 1990, o Japão passou por uma longa e profunda crise, da qual
jamais se recuperou por completo. Como o século XIX fora do Reino Unido, e o
século XX dos EUA, o século XXI é o da ascensão chinesa. A perda de status dos
EUA não passará incólume, assim como não passou despercebida a do Reino Unido.
Mesmo gigantes inflam e encolhem. Quando encolhem, o
protecionismo aflora com consequências nefastas. Quando gigantes encolhem, os
motivos para comemoração de anúncios como o acordo China-EUA devem ser vistos
da forma que merecem: com um olhar crítico e bastante cético.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute
for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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