Num mundo marcado juros extremamente baixos, o endividamento
global atinge níveis cada vez mais elevados. No terceiro trimestre de 2019, a
dívida de famílias, governos, empresas não-financeiras e bancos dos principais
países desenvolvidos e emergentes alcançou o recorde de US$ 253 trilhões, o
equivalente a 322% do PIB, de acordo com números do Instituto de Finanças
Internacionais (IIF, na sigla em inglês). A expectativa é de que o
endividamento siga em alta em 2020, batendo em US$ 257 trilhões no primeiro
trimestre, impulsionado pelos juros baixos e por condições financeiras
relaxadas, apontam os analistas do IIF.
Por enquanto, não há temores de problemas imediatos
relacionados a esses níveis globais de endividamento, mas eventuais aumentos
dos juros ou movimentos mais expressivos de moedas podem causar estresse nos
mercados, como destacou o presidente do IIF, Tim Adams, ao repórter Daniel
Rittner, do Valor, em entrevista no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na
semana passada. Como parte das dívidas das empresas está denominada em divisas
estrangeiras, pode haver estragos em caso de desvalorizações cambiais fortes e
abruptas.
Um estudo recente de economistas do Fundo Monetário
Internacional (FMI) trata do endividamento público em cenários de juros baixos
e em que frequentemente é negativa a diferença entre a taxa de juros e a taxa
de crescimento da economia. O relatório recomenda às autoridades cautela quanto
a níveis elevados de dívida, mesmo quando o custo de tomar dinheiro emprestado
é baixo.
Publicado neste mês, o estudo “Dívida não é livre”, dos
economistas do FMI Marialuz Moreno Badia, Paulo Medas, Pranav Gupta e Yuan
Xiang, conclui que a dívida pública “é o mais importante preditor de crises”.
Acima de determinados níveis de endividamento, a probabilidade de problemas
aumenta fortemente, a despeito a diferença entre a taxa de juros e a taxa de
crescimento.
“A nossa análise também revela que as interações entre a
dívida pública com a inflação e os desequilíbrios externos podem ser tão
importantes quanto os níveis de endividamento”, afirmam os autores, que
identificaram 418 episódios de crises fiscais em 188 países, no período de 1980
a 2016.
Para economias desenvolvidas, a chance de uma crise aumenta
significativamente se a dívida externa atinge a casa de 70% do PIB. Para países
emergentes, a probabilidade estimada de um problema fica relativamente estável
para patamares de endividamento externo abaixo de 30% do PIB, mas sobe
fortemente acima dessa fronteira, dizem os economistas do FMI. No caso do
Brasil, a dívida externa pública está na casa de 10% do PIB, e o país ainda é
credor externo líquido (ou seja, os ativos em moeda estrangeira, como as
reservas, superam os passivos).
“Esses resultados, embora não necessariamente impliquem
causalidade, mostram que os governos devem ser cautelosos em relação à dívida
pública elevada, mesmo quando os custos de empréstimo parecem baixos”, reiteram
os economistas do FMI. O ponto, segundo eles, é que “as dinâmicas das crises
são altamente não-lineares” e, no momento em que a diferença entre a taxa de
juros e a taxa de crescimento passar a ser um sinal de alerta, as autoridades
podem estar desprevenidas. “Essas conclusões não significam que reduzir a
dívida é sempre a prescrição adequada. Há claramente casos em que o uso do
endividamento para propósitos contracíclicos, para aumentar o investimento
público ou para enfrentar outras necessidades estruturais é desejável”, afirmam
os autores do estudo, ressaltando, contudo, que a evidência apresentada por
eles indica que a dívida pública não é isenta de problemas.
O texto menciona a avaliação feita em 2019 por Olivier
Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, de que “a dívida pública pode não ter
custo fiscal”, num ambiente em que a taxa de juros tende a ficar abaixo da taxa
de crescimento por longos períodos. O argumento ganha força no debate num
cenário de juros baixos, quando não negativos. Mas o relatório, como fica
claro, não vê com bons olhos a análise benigna de Blanchard e alguns outros
analistas sobre o endividamento público, mesmo num quadro de juros ínfimos.
No Brasil, a dívida de famílias e empresas não-financeiras
voltou a subir na comparação com o PIB nos últimos trimestres, após um período
de redução de endividamento provocada pela grave recessão do segundo trimestre
de 2014 ao quarto trimestre de 2016, mostram os números do IIF. No terceiro
trimestre de 2019, a dívida das famílias equivalia a 28,7% do PIB e a das
empresas não-financeiras, a 42,9% do PIB.
Com a recuperação da economia, a tendência é que os débitos
de pessoas físicas e jurídicas continuem a crescer. Com juros mais baixos e um
crescimento maior, o processo pode ser saudável, num quadro de melhora das
perspectivas para a renda dos consumidores e para a receita das empresas.
Já a dívida pública brasileira, depois do enorme salto
ocorrido a partir de 2014, tem crescido a um ritmo mais fraco, e pode começar a
cair nos próximos anos, especialmente devido à Selic menor, mas também pela
expectativa mais favorável para o PIB. O indicador, que fechou 2013 em 51,5% do
PIB, atingiu 77,7% do PIB em novembro de 2019.
Estimativas como as do Tesouro Nacional apontam para uma
estabilização da dívida bruta na casa de 78% do PIB e uma redução lenta nos
anos seguintes, uma trajetória bem mais otimista que a projetada na virada de
2018 para 2019, por exemplo.
Ainda assim, o endividamento brasileiro é bem superior ao da
média dos emergentes, um pouco inferior a 54% do PIB, segundo projeções do FMI.
Nesse quadro, é importante que o Brasil faça um esforço fiscal para reduzir o
indicador um pouco mais rapidamente nos próximos anos, o que exigirá a geração
de resultados primários positivos (receitas menos despesas, exceto gastos com
juros). A boa notícia é que não terão que ser tão altos como no passado, de
2,5% a 3% do PIB, pois superávits menores deverão ser suficientes para diminuir
a relação entre a dívida e o PIB, desde que os juros de fato permaneçam baixos
e o crescimento seja um pouco mais forte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário