terça-feira, 28 de janeiro de 2020

UM MUNDO CADA VEZ MAIS ENDIVIDADO

Sergio Lamucci, Valor Econômico
Num mundo marcado juros extremamente baixos, o endividamento global atinge níveis cada vez mais elevados. No terceiro trimestre de 2019, a dívida de famílias, governos, empresas não-financeiras e bancos dos principais países desenvolvidos e emergentes alcançou o recorde de US$ 253 trilhões, o equivalente a 322% do PIB, de acordo com números do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês). A expectativa é de que o endividamento siga em alta em 2020, batendo em US$ 257 trilhões no primeiro trimestre, impulsionado pelos juros baixos e por condições financeiras relaxadas, apontam os analistas do IIF.
Por enquanto, não há temores de problemas imediatos relacionados a esses níveis globais de endividamento, mas eventuais aumentos dos juros ou movimentos mais expressivos de moedas podem causar estresse nos mercados, como destacou o presidente do IIF, Tim Adams, ao repórter Daniel Rittner, do Valor, em entrevista no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na semana passada. Como parte das dívidas das empresas está denominada em divisas estrangeiras, pode haver estragos em caso de desvalorizações cambiais fortes e abruptas.
Um estudo recente de economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) trata do endividamento público em cenários de juros baixos e em que frequentemente é negativa a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento da economia. O relatório recomenda às autoridades cautela quanto a níveis elevados de dívida, mesmo quando o custo de tomar dinheiro emprestado é baixo.
Publicado neste mês, o estudo “Dívida não é livre”, dos economistas do FMI Marialuz Moreno Badia, Paulo Medas, Pranav Gupta e Yuan Xiang, conclui que a dívida pública “é o mais importante preditor de crises”. Acima de determinados níveis de endividamento, a probabilidade de problemas aumenta fortemente, a despeito a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento.
“A nossa análise também revela que as interações entre a dívida pública com a inflação e os desequilíbrios externos podem ser tão importantes quanto os níveis de endividamento”, afirmam os autores, que identificaram 418 episódios de crises fiscais em 188 países, no período de 1980 a 2016.
Para economias desenvolvidas, a chance de uma crise aumenta significativamente se a dívida externa atinge a casa de 70% do PIB. Para países emergentes, a probabilidade estimada de um problema fica relativamente estável para patamares de endividamento externo abaixo de 30% do PIB, mas sobe fortemente acima dessa fronteira, dizem os economistas do FMI. No caso do Brasil, a dívida externa pública está na casa de 10% do PIB, e o país ainda é credor externo líquido (ou seja, os ativos em moeda estrangeira, como as reservas, superam os passivos).
“Esses resultados, embora não necessariamente impliquem causalidade, mostram que os governos devem ser cautelosos em relação à dívida pública elevada, mesmo quando os custos de empréstimo parecem baixos”, reiteram os economistas do FMI. O ponto, segundo eles, é que “as dinâmicas das crises são altamente não-lineares” e, no momento em que a diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento passar a ser um sinal de alerta, as autoridades podem estar desprevenidas. “Essas conclusões não significam que reduzir a dívida é sempre a prescrição adequada. Há claramente casos em que o uso do endividamento para propósitos contracíclicos, para aumentar o investimento público ou para enfrentar outras necessidades estruturais é desejável”, afirmam os autores do estudo, ressaltando, contudo, que a evidência apresentada por eles indica que a dívida pública não é isenta de problemas.
O texto menciona a avaliação feita em 2019 por Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, de que “a dívida pública pode não ter custo fiscal”, num ambiente em que a taxa de juros tende a ficar abaixo da taxa de crescimento por longos períodos. O argumento ganha força no debate num cenário de juros baixos, quando não negativos. Mas o relatório, como fica claro, não vê com bons olhos a análise benigna de Blanchard e alguns outros analistas sobre o endividamento público, mesmo num quadro de juros ínfimos.
No Brasil, a dívida de famílias e empresas não-financeiras voltou a subir na comparação com o PIB nos últimos trimestres, após um período de redução de endividamento provocada pela grave recessão do segundo trimestre de 2014 ao quarto trimestre de 2016, mostram os números do IIF. No terceiro trimestre de 2019, a dívida das famílias equivalia a 28,7% do PIB e a das empresas não-financeiras, a 42,9% do PIB.
Com a recuperação da economia, a tendência é que os débitos de pessoas físicas e jurídicas continuem a crescer. Com juros mais baixos e um crescimento maior, o processo pode ser saudável, num quadro de melhora das perspectivas para a renda dos consumidores e para a receita das empresas.
Já a dívida pública brasileira, depois do enorme salto ocorrido a partir de 2014, tem crescido a um ritmo mais fraco, e pode começar a cair nos próximos anos, especialmente devido à Selic menor, mas também pela expectativa mais favorável para o PIB. O indicador, que fechou 2013 em 51,5% do PIB, atingiu 77,7% do PIB em novembro de 2019.
Estimativas como as do Tesouro Nacional apontam para uma estabilização da dívida bruta na casa de 78% do PIB e uma redução lenta nos anos seguintes, uma trajetória bem mais otimista que a projetada na virada de 2018 para 2019, por exemplo.
Ainda assim, o endividamento brasileiro é bem superior ao da média dos emergentes, um pouco inferior a 54% do PIB, segundo projeções do FMI. Nesse quadro, é importante que o Brasil faça um esforço fiscal para reduzir o indicador um pouco mais rapidamente nos próximos anos, o que exigirá a geração de resultados primários positivos (receitas menos despesas, exceto gastos com juros). A boa notícia é que não terão que ser tão altos como no passado, de 2,5% a 3% do PIB, pois superávits menores deverão ser suficientes para diminuir a relação entre a dívida e o PIB, desde que os juros de fato permaneçam baixos e o crescimento seja um pouco mais forte.
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