O Brasil e o mundo já viveram crises combinadas antes, de
diferentes naturezas e gravidades. Em 2008, a crise dos subprime nos Estados
Unidos engolfou as economias de vários países ao redor do globo. No Brasil, a
Lava Jato e a reeleição de Dilma Rousseff provocaram um vórtex de recessão
econômica, corrupção sistêmica e inviabilidade política de um governo, levando
ao impeachment.
Mas o que está em curso em 2020, aliás, desde o advento Jair
Bolsonaro, tem características inéditas e com pitadas de surrealismo.
Não serei a primeira a comparar o atual governo do Brasil a
um regime digno das distopias literárias e cinematográficas mais conhecidas,
mas, agora, é como se os roteiristas tivessem resolvido forçar a mão para além
da verossimilhança.
Ao mesmo tempo há pitadas de filme-catástrofe, com uma
epidemia, a do novo coronavírus, que se espalha pelo planeta sem que se saiba
ao certo sua gravidade e duração, e uma crise econômica também global,
associada ao surto. Para fechar o clichê distópico, o Brasil tem no comando
(sic) dessa situação caótica um presidente disposto a avançar dia a dia no
propósito de implodir as instituições. Não há Posto Ipiranga que dê jeito numa
pane dessas proporções.
Bolsonaro, apenas nesta Quaresma, mandou vídeos convocando
para os atos a favor de seu governo, mentiu em rede nacional ao negar tê-los
enviado, colocou um humorista no carro oficial para distribuir bananas a
jornalistas e se esquivar de responder sobre o PIB insuficiente de 2019, fez
discurso num púlpito para convocar para o ato que negara estar inflando, mandou
três projetos de lei do Congresso (PLNs) para o Legislativo como parte de um
acordo para ter seu veto mantido, depois exortou o Congresso a rejeitar os
mesmos PLNs que mandou, excluiu um jornal de uma cobertura e, como se já não
fosse demais, disse que a eleição vencida por ele há menos de dois anos foi
fraudada.
Não há como examinar tal portfólio e não enxergar que ele
está testando a aceitação de parte da população que lhe dá suporte a um
arreganho golpista. E a resiliência ou o temor dos demais Poderes e das outras
instituições a essa ameaça.
É por isso que são francamente insuficientes e acovardadas
as reações dos comandantes dessas instituições a tamanha ousadia autoritária.
Não adianta Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre ou Dias Toffoli
argumentarem que cabem a eles ter frieza, pregar o diálogo e não agravar ainda
mais a situação.
Tal receita faz sentido num ambiente de normalidade civil,
mas não em um em que o presidente, em pessoa ou por meio de ministros de
Estado, familiares, parlamentares e milicianos digitais, está emparedando a
democracia um pouco a cada dia.
Estrangular a imprensa, militarizar a política ao mesmo
tempo em que politiza os meios militares, ignorar os riscos de uma epidemia
mundial em nome de guerra política e colocar em xeque a lisura do próprio
sistema eleitoral não são brincadeirinhas de um presidente humorista, mas, sim,
golpes desferidos sistematicamente em pilares do estado democrático de direito.
Se as lideranças nacionais que têm a responsabilidade de
frear os ímpetos imperiais de Bolsonaro não cumprirem seu papel, ele logrará
êxito em seus intentos. Os atos do dia 15 colocarão mais lenha na fogueira em
que arde a credibilidade do Legislativo e do Judiciário. Podem, de quebra,
impulsionar um surto até aqui razoavelmente bem contido do novo coronavírus.
E a narrativa mentirosa da fraude eleitoral, se não for
desmontada com vigor até aqui não visto em notas protocolares, pode ameaçar a
realização dos próximos pleitos. E aí os cruzados bolsonaristas terão derrubado
os portões da cidadela e chegado ao castelo a partir do qual pretendem tomar a
democracia de assalto.
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