O presidente Jair Bolsonaro vive num mundo só dele, que não
é bem o país que governa. É difícil fechar um diagnóstico sobre as razões, mas
é possível identificar os sintomas de que idealizou uma agenda, um governo e um
Estado centralizador e agora se vê diante de uma realidade muito diferente
daquela que imaginava. Primeiro, a agenda do país não é a sua, focada nos
costumes e nos interesses imediatos de sua base eleitoral. Já lidava com
dificuldades na economia quando a pandemia de coronavírus virou tudo de pernas
para o ar.
Todas as suas prioridades foram alteradas. Ninguém sabe
exatamente quando e como voltaremos à normalidade, mas sua insistência em
antecipar esse processo de retomada da economia, num momento de aceleração da
epidemia, vem se revelando um desastre do ponto de vista da saúde pública. É
como aquele sujeito que erra de conceito: seus bons atributos, como iniciativa,
coragem, combatividade, criatividade, força etc. só servem para aumentar o
tamanho do desastre. A agenda do país é epidemia, epidemia e epidemia, pelo
menos nas próximas duas semanas.
Também idealizou um governo no qual seu poder seria
absoluto, como vértice do sistema. Está descobrindo que não é assim que
funciona. Na democracia, há uma tensão permanente entre os que governam e a burocracia
de carreira, responsável pela legitimidade dos meios empregados na ação
político-administrativa. A ética das convicções, que motiva os políticos, não
basta; ela é limitada pela máquina do governo, que foi organizada, treinada e
instrumentalizada para observar as leis antes de agir, ou seja, zelar pela
ética da responsabilidade. Bolsonaro não consegue lidar com isso. Em todas as
frentes, tenta atropelar, substituir ou desmoralizar os que não aceitam
decisões que são equivocadas tecnicamente e/ou contrariam a boa política e o
interesse público.
Bolsonaro também tem dificuldade de lidar com os mecanismos
de freios e contrapesos do Estado democrático de direito. Ontem, levou uma
invertida do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes,
que sustou a nomeação do novo-diretor da Polícia Federal, Alexandre Ramagem,
por desvio de finalidade. Diante da decisão, revogou a nomeação para mantê-lo à
frente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o que gerou uma situação
de perda de objeto da ação do mandado de segurança acolhido por Moraes. Foi por
essa razão que a Advocacia-geral da União desistiu de recorrer ao plenário do
Supremo. Mesmo assim, Bolsonaro não caiu na real de que a Polícia Federal (PF)
é técnica e judiciária, em cujas investigações não pode interferir.
Ontem, após a decisão do ministro do STF, mesmo assim,
Bolsonaro disse que pretende recorrer da decisão do ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e voltar a nomear Alexandre Ramagem
como diretor-geral da Polícia Federal. “Eu quero o Ramagem lá. É uma
ingerência, né? Vamos fazer tudo para o Ramagem. Se não for, vai chegar a hora
dele, e vamos colocar outra pessoa”, declarou. Questionado sobre o
posicionamento da AGU, disse que recorrer é um “dever do órgão”. E disparou:
“Quem manda sou eu”. Se isso ocorrer, é muito provável que haja uma decisão
unânime do STF contra a nomeação.
Recado claro
O que houve, ontem, foi um recado do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o sistema de freios e contrapesos da Constituiçao de 1988 está funcionando e que o Supremo ainda exerce o papel de Poder Moderador, em decorrência do fato de que cabe àquela Corte dar a palavra final em matéria constitucional. Como o STF é um poder desarmado, Bolsonaro provavelmente não se conforma muito com isso. Afinal, historicamente, esse papel foi exercido pelos militares, tanto na República Velha quanto na Segunda República. E seu governo tem mais generais do que qualquer outro no primeiro e no segundo escalões, mesmo comparado aos do regime militar. Quando diz que ainda vai nomear o Ramagem para o cargo de diretor-geral, Bolsonaro desnuda sua inconformidade, nos dois sentidos.
O que houve, ontem, foi um recado do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o sistema de freios e contrapesos da Constituiçao de 1988 está funcionando e que o Supremo ainda exerce o papel de Poder Moderador, em decorrência do fato de que cabe àquela Corte dar a palavra final em matéria constitucional. Como o STF é um poder desarmado, Bolsonaro provavelmente não se conforma muito com isso. Afinal, historicamente, esse papel foi exercido pelos militares, tanto na República Velha quanto na Segunda República. E seu governo tem mais generais do que qualquer outro no primeiro e no segundo escalões, mesmo comparado aos do regime militar. Quando diz que ainda vai nomear o Ramagem para o cargo de diretor-geral, Bolsonaro desnuda sua inconformidade, nos dois sentidos.
No Estado de direito democrático, uma decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) não se discute, cumpre-se. Quando isso não acontece, é
um mau agouro. No governo Castello Branco, ou seja, após o golpe militar de
1964, o primeiro conflito sério com o Supremo ocorreu em 19 de abril de 1965. A
Corte concedeu um pedido de habeas corpus impetrado pelo famoso jurista Sobral
Pinto, católico e liberal, em favor do ex-governador de Pernambuco Miguel
Arraes, que estava preso na ilha de Fernando de Noronha, na costa daquele
estado, desde a deposição do presidente João Goulart. Dias antes, o coronel
Ferdinando de Carvalho, já prevendo a decisão, havia transferido o político
pernambucano para a Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói (RJ).
O chefe do estado-maior do Exército, general Édson de
Figueiredo, recusou-se a cumprir a decisão. O presidente do STF não teve outra
alternativa a não ser mandar prendê-lo, o que provocou uma crise, somente
debelada devido à intervenção pessoal de Castello, que chamou o magistrado e o
general para uma conversa a três. Nesse meio tempo, um grupo de militares da
chamada “linha-dura”, liderado pelo coronel Osneli Martinelli, sequestrou
Arraes e levou-o para um quartel da Polícia do Exército. Foi preciso que
Castello interviesse novamente, mandando soltá-lo. Arraes, que não era bobo,
vendo que havia em marcha um golpe dentro do golpe, liderado pelo ministro da
Guerra, o general Costa e Silva, tratou de pedir asilo na embaixada da Argélia.
Era o começo de um processo que desaguou no Ato Institucional No. 5, em 13 de
dezembro de 1968, mas isso isso já é outra história.
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