O mercado de crédito responde a riscos. Maior o risco, em
particular o de inadimplência, mais caro e mais escasso o crédito. Esse é o
mecanismo que garante que os recursos – captados do público pelos bancos ou de
investidores pelas fintechs – sejam aplicados de forma segura e sejam
canalizados para investimentos com maiores chances de vingar. Vem daí a
contribuição do mercado de crédito para o desenvolvimento econômico e para o
aumento do bem-estar das pessoas.
No Brasil, há episódios recentes em que se tentou desvirtuar
esse mecanismo, forçando a desconexão entre risco, preço e volume de crédito e
impondo redução de juros via bancos públicos ou financiando projetos e empresas
a juros subsidiados. Esses, na melhor das hipóteses, poderiam ter sido
financiados a juros de mercado. Na pior, nem deveriam ter sido financiados.
Nessa ilusão de que intervenções diretas no mercado de crédito funcionam, o que
se conseguiu ao final foi: i) transferência da inadimplência do sistema para os
bancos públicos (e portanto para o Tesouro Nacional) e ii) uma contração maior
do mercado de crédito do que seria esperado em condições normais de
funcionamento. Vivemos hoje a maior crise da nossa história.
Aliam-se à crise de saúde uma crise econômica sem
precedentes e uma crise política desnecessária, mas infelizmente presente e
grave. Nada mais natural do que a proatividade na busca de saídas e ações de
resposta por parte dos nossos agentes públicos. A maioria deles com a melhor
das boas intenções. A bola da vez agora é o mercado de crédito. Sabemos que ele
é um importante motor de crescimento e pode ser, quando escasso e caro, um
fator adicional de agonia e angústia num momento tão crítico. Mas não se pode
abandonar os conceitos quando se busca uma solução, sob o risco de se provocar
uma grande desorganização do mercado de crédito e adicionar um fator adicional
de instabilidade, ao criar um risco sistêmico que pode agravar ainda mais a
atual crise.
A crise na economia real resvala no mercado de crédito por
meio do aumento da inadimplência. Foi assim em 2015, por exemplo. Ali, foram
observados aumentos de 85% e superiores a 100% na inadimplência de pequenas e
médias empresas e de grandes corporações, respectivamente. A atual crise tem
características distintas, mas é claramente mais profunda e espalhada.
Considerando-se o movimento de expansão de crédito observado pré-covid, não é
errado supor que um impacto ainda mais forte possa ser observados sobre as
carteiras de crédito atuais.
É possível, com base em cenários de estresse, estimar esses
números. Esses exercícios indicam que o impacto nas carteiras deve significar
um aumento substancial nas provisões, que podem superar os R$ 400 bilhões. Esse
número não difere muito do que o próprio Banco Central apresentou no Relatório
de Estabilidade Financeira, divulgado no final do mês passado. Como nosso
sistema bancário é capitalizado, o risco sistêmico está controlado na medida em
que os bancos possam responder com a contração de crédito necessária para
contrabalançar a perda de crédito que se seguirá do aumento da inadimplência,
mantendo assim a higidez do sistema e protegendo os recursos dos depositantes.
Mas, aos olhos da sociedade, isso não parece ser o melhor
cenário. Afinal, estamos vivendo um período de exceção, com grandes perdas
econômicas e um aumento brutal da desigualdade. Lidar com restrições de crédito
nesse momento parece ser cruel e desumano. E, de fato, é. Mas é aí que mora o
perigo das boas intenções. Interferir diretamente no mercado de crédito – a
exemplo do que quer fazer o projeto de lei do senador Álvaro Dias, que limita
juros e congela limites – significa emperrar essa roda e adicionar ao cenário
um novo risco: o de uma desorganização do mercado de crédito, com impactos
futuros que, na melhor das hipóteses, comprometerão ainda mais nossa capacidade
de crescimento. Na pior, poderá gerar uma crise financeira sistêmica,
fragilizando o mercado, gerando maior concentração e eliminando do setor
participantes novos que vinham trazendo competição, eficiência e inclusão
financeira à população de mais baixa renda.
O que fazer, então, para se conseguir alívio sem interferir
nos mecanismos que garantem o bom funcionamento do mercado de crédito? Um
caminho é partir de uma avaliação do potencial problema de crédito já
contratado, com base nos cenários possíveis de estresse, e desenhar um amplo
programa de apoio ao crédito. Programas pontuais e setoriais, como os já
anunciados pelo governo, Banco Central e bancos foram e são adequados para
lidar com a crise emergencial de liquidez. Mas podem não ser suficientes para
dar conta de uma eventual crise de solvência, abrindo caminho para a
proatividade bem intencionada do Legislativo e também do Judiciário. Mas temos
que ter mais do que boas intenções para desenhar políticas públicas corretas e
eficazes. Até porque, de boas intenções, o inferno está cheio.
*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.
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