Ao criticar decisões do Legislativo e do Judiciário que lhe
desagradam, o presidente Jair Bolsonaro raramente traz argumentos relativos ao
mérito da questão. Em geral, a fala de Bolsonaro consiste em denunciar uma
suposta subtração dos poderes do presidente da República. Nessas críticas,
nota-se um clima de perseguição pessoal. As decisões do Congresso e do Supremo
Tribunal Federal (STF) contrárias ao governo federal são vistas como ofensas
pessoais por Jair Bolsonaro. Eleito com uma campanha antissistema, ele seria
perseguido continuamente pelo tal “sistema”, interessado em não deixá-lo
governar.
Em junho de 2019, por exemplo, Bolsonaro criticou uma lei
aprovada pelo Congresso sobre nomeação de diretores de estatais (Lei
13.848/19), questionando: “Pô, querem me deixar como a rainha da Inglaterra?”
Na ocasião, o presidente apôs vetos a alguns trechos da lei, que foram mantidos
pelos parlamentares.
Neste ano, Bolsonaro intensificou o discurso de que o
Legislativo e o Judiciário o perseguem. “Chegamos no limite”, disse o
presidente no domingo, avisando que “daqui para frente não tem mais conversa”.
Referia-se à nomeação do diretor-geral da Polícia Federal (PF). Na semana
anterior, decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação
de Alexandre Ramagem para a chefia da PF, por entender que a escolha
presidencial contrariava os princípios constitucionais da impessoalidade, da
moralidade e do interesse público. Nesse caso, não houve nenhuma usurpação das
competências do presidente da República. A decisão liminar apenas reconheceu
que o exercício dessas competências deve respeitar a Constituição.
Se estivesse seguro de que a nomeação de Ramagem cumpria os
requisitos constitucionais, o presidente Bolsonaro poderia tê-la defendido
perante o plenário da Corte. Em tese, a Corte poderia adotar um entendimento
diverso do proferido pelo relator em sua decisão liminar. No entanto, antes que
o processo fosse analisado pelo plenário do STF, Bolsonaro revogou a nomeação
de Ramagem, em clara manifestação de que continuava exercendo suas competências
presidenciais. Mesmo assim, valeu-se do caso para atacar o Supremo.
Observa-se uma manipulação da linguagem no modo como o
presidente Bolsonaro se refere à Constituição. “Não só exigiremos, faremos
cumprir a Constituição”, disse Bolsonaro no dia 3 de maio. No entanto, o tal
cumprimento da Carta Magna defendido por Bolsonaro ignora os limites que a
própria Carta delineia. Ou seja, em vez de ser uma defesa da Constituição, o
discurso equivale a negar o texto constitucional.
É uma exigência do Estado Democrático de Direito, tal como
definido pela Constituição de 1988, que o Judiciário e o Legislativo exerçam
controles sobre o Poder Executivo. Um exemplo é o mandado de segurança, remédio
para proteção de direito líquido e certo em caso de ilegalidade ou abuso de
poder. Vale lembrar que também o Executivo exerce controles sobre o
Legislativo; por exemplo, apondo vetos num projeto de lei, aprovado pelo
Congresso.
Ao classificar como abuso de poder qualquer decisão que lhe
imponha freios, Jair Bolsonaro ignora a Constituição, que define limites claros
a todos os poderes. E o pior é que, com frequência, Bolsonaro faz essa
distorção da Constituição apelando a um populismo barato. Em seu discurso,
decisões do Legislativo e do Judiciário que ele entendeu serem contrárias ao
governo federal são apresentadas como manobras para minar o mandato que ele
recebeu do povo. Em sua tresloucada lógica, não basta transformar em afronta
pessoal decisões que simplesmente fazem cumprir a Constituição. Bolsonaro as
qualifica como antidemocráticas.
O voto que Bolsonaro recebeu nas urnas em 2018 deu-lhe o cargo de presidente da República, a ser exercido dentro das regras e limites previstos na Constituição. Por isso, na cerimônia de posse o presidente eleito jura solenemente cumprir a Constituição. Nem o voto nem a Constituição deram-lhe poderes absolutos, o que significa que é do normal funcionamento da democracia que seus atos estejam sujeitos ao controle de constitucionalidade e de legalidade. O presidente da República não é um monarca absoluto.
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