Há 1.813 militares infectados e sete óbitos, num efetivo de
cerca de 390 mil nas Forças Armadas. A proporção de casos (0,5%) é dez vezes
maior que o contágio do total da população brasileira. O elevado número de
contagiados reflete a exposição dos militares em operações de combate à
covid-19, da desinfecção de hospitais e higienização de áreas de grande
circulação ao transporte de alimentos e equipamentos hospitalares. A
mortalidade entre infectados, por outro lado, é um milésimo daquela observada no
país, resultado, em grande parte, do monitoramento precoce dos casos e
atendimento nos hospitais militares.
Alguns desses números foram expostos no tenso encontro que,
no fim de semana, reuniu os comandantes do Exército, da Marinha e da
Aeronáutica ao Palácio da Alvorada com o presidente da República e seus
ministros militares. Na véspera, o general Edson Leal Pujol e todo o generalato
presente à cerimônia de transmissão do Comando Militar do Sul haviam dobrado o
cotovelo ante um presidente surpreendido.
Com os números, ofereceu-se uma explicação. Para continuar a
colaborar com o combate à covid-19, que hoje mobiliza 29 mil militares em todo
o país, os militares precisam se cuidar. Os comandantes bateram na tecla, que
vêm pautando as portarias militares desde o início da pandemia, de que devem se
proteger para proteger o país.
No dia seguinte, o comandante supremo estamparia o divórcio.
Desceu a rampa do Palácio do Planalto para mais um da série
de espetáculos que protagoniza nesta pandemia. Cotovelos, naquele domingo, só
entraram em cena para seus apoiadores baterem em jornalistas. Sem civismo, mas
com muito cinismo, sugeriu que as Forças Armadas partilhariam consigo a
paciência esgotada com as instituições e vazou a saída Pujol do comando.
Tratava-se de um balão de ensaio, mas tinha gás suficiente
para aumentar a insatisfação dos oficiais da ativa com o presidente da
República. O comandante que expunha as tropas ao risco de contágio, visto que
se trata “da maior missão” de sua geração, estaria, de fato, com seu cargo em
risco? Não. Tratava-se apenas de um presidente que resolvera regar de baciada a
semente da indisciplina nos quartéis, praga da República brasileira da qual ele
é apenas o mais recente representante.
É sua maneira de reagir ao cordão de isolamento que as
instituições começam a apertar em torno de seu pescoço. O decano do Supremo
Tribunal Federal é o puxador desse cordão. O depoimento do ex-ministro Sergio
Moro frustrou muita gente mas não ao ministro Celso de Mello, que lhe deu
publicidade bem como a todo inquérito.
Foi além do procurador-geral da República ao pedir a busca e
apreensão do celular do ministro e estabelecer prazo para a tomada de
depoimentos das testemunhas e a entrega do vídeo da reunião em que Moro disse
ter sido tratada a substituição da superintendência da Polícia Federal no Rio.
Alguns dos intimados não gostaram da advertência do decano
de que a resistência das testemunhas em marcar o dia, a hora e o local para
serem ouvidos pode resultar em condução coercitiva. Depois que o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva foi tirado de sua casa de madrugada para depor no
aeroporto de Congonhas, o Supremo resolveu limitar o instrumento.
Réus não lhe estão mais sujeitos, mas o depoimento “debaixo
de vara” continua valendo para testemunhas, mesmo que, entre elas, estejam três
generais da reserva na função de ministros (Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos
e Walter Braga Netto), um dos quais, da ativa.
Advertência no mesmo tom foi usada contra o secretário-geral
da Presidência, Jorge Oliveira, e o secretário de Comunicação Social da
Presidência, Fábio Wajngarten. Além do prazo de 72 horas para a entrega do
vídeo da reunião, eles foram lembrados de que a eventual adulteração do
material está sujeita a penalidades previstas na lei.
Um influente general da reserva viu na decisão do decano uma
afronta à presunção de inocência, mas Celso de Mello não parece preocupado com
as reações. Não foi por decisão dele que generais deixaram as Forças Armadas
para servirem a um governo que tem Jair Bolsonaro como presidente da República
e Wajngarten como chefe da comunicação.
O decano chegou ao Supremo no governo José Sarney, quando a
democracia parecia consentimento de uma ditadura insepulta. Parece confiar no
compromisso das Forças Armadas com a defesa da Constituição ao encurtar a vara
com a qual intimou os servidores militares lotados no Palácio do Planalto. A
quem serão leais, ao presidente, às Forças Armadas ou à lei máxima do país? A
evolução do inquérito mostrará se as três lealdades terão como ser conjugadas.
Nas mais de três décadas em que os militares se ocuparam
exclusivamente de profissionalizar as Forças Armadas, só deveram satisfação à
justiça fardada. Foi a militarização deste governo, pela tese já nocauteada da
tutela, que inverteu esta situação. Na ditadura, o Supremo Tribunal Federal
teve acanhado desempenho, com honrosas exceções, como o ministro Ribeiro da
Costa, que contestou o julgamento do governador deposto Miguel Arraes pela
justiça militar. Hoje não há submissão possível.
No limite, o presidente da Corte e seu ex-assessor, o atual
ministro da Defesa, movem as peças da contemporização. Se as Forças Armadas têm
números a mostrar de sua participação no combate à covid-19, a Corte também os
tem. Foram 1.660 processos e 1.473 decisões em torno da pandemia. Dias Toffoli
reabilitou a Ordem do Dia de 31 de março, Fernando Azevedo e Silva entronizou a
Constituição. Ambos repudiaram a violência contra jornalistas.
Não chega a ser um dueto, mas é um diálogo que pode manter Bolsonaro sob o cerco da Constituição. Ontem Toffoli definiu o Supremo como a última trincheira. A ver como dará cabo de um presidente que, na definição de um fardado, continua a ser o pentatleta da academia militar. Aquele que, quando a corda arrebentar, se manterá em pé com um pedaço dela nos dentes e os cotovelos em riste.
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