A frase síntese dita pelo presidente – “você tem 27
superintendências, eu quero apenas uma” – é reveladora da obsessão de
interferência na Polícia Federal, mas não só. Mostra uma Presidência insana.
Todos os graves assuntos de Estado para serem enfrentados, mas Jair Bolsonaro
tinha uma preocupação. Era março, quando ele disse isso. A pandemia já estava
infectando brasileiros. Em abril, quando ela se espalhou como uma grande
tragédia humana, Bolsonaro aumentou a intensidade da pressão para nomear, a
qualquer custo, o superintendente da PF no Rio de Janeiro.
No relato do ex-ministro Sergio Moro à Polícia Federal, o
que impressiona é o conjunto e o contexto. O presidente briga, é capaz de
derrubar uma peça-chave de seu governo, para escolher o superintendente da PF
no Rio. Enquanto os governadores e prefeitos decidiam pelo isolamento social,
construíam hospitais de campanha, ampliavam o número de UTIs, tentavam
encontrar respiradores em qualquer lugar do planeta, as empresas doavam, as
pessoas se mobilizavam, os profissionais da saúde iam para o campo de batalha,
alguns para morrer, o que fazia o presidente do Brasil? Ofendia governadores,
fritava o ministro da Saúde, encurralava o ministro da Justiça, participava de
manifestações contra a democracia e continuava querendo interferir na Polícia
Federal.
As versões do presidente para os fatos não ficam em pé. Ele
diz que buscava apenas relatórios de inteligência na Polícia Federal. Ele sabe
a esta altura do mandato a diferença de inteligência policial e inteligência
estratégica. O presidente tem a Abin que dá informação de inteligência
estratégica. Faz parte do SISBIN, Sistema Brasileiro de Informações.
Todos alimentam esse sistema, inclusive a Polícia Federal.
Tudo deságua no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que manda relatórios
diários para a Presidência. Neles, se pode saber antecipadamente os riscos de
fatos como, por exemplo, uma pandemia, para agir preventivamente. Somente
ontem, a propósito, mais 600 brasileiros perderam a vida. Um perito no assunto
me explicou que “quando a inteligência policial produz algo de interesse
estratégico para o Estado, isso é pinçado pelos analistas da Abin para o
relatório ao presidente”. E ele conclui: “Mas o presidente da República não tem
nada com a inteligência policial”, ou seja, a parte investigativa, judiciária.
Ele não tem que ter acesso a uma investigação da polícia judiciária.
Bolsonaro parecia naquele lamurioso pronunciamento, do dia
24 de abril, ter sido surpreendido pela demissão de Moro apresentada numa
coletiva à imprensa. Ofendido com a “traição”. O relato circunstanciado de Moro
mostra que o presidente já sabia que a saída dele era fato consumado, inclusive
porque ele, Bolsonaro, o jogou para fora do governo.
Enquanto Bolsonaro trava uma guerra contra o seu
ex-ministro, na economia, as notícias vão de mal a pior. A produção industrial
despencou 9,1% em março, vindo abaixo do esperado, com uma queda de 3,8% em
relação ao mesmo mês do ano anterior. Nesse tipo de comparação, foi o quinto
recuo consecutivo, o que mostra que o setor já não vinha bem muito antes da
chegada do vírus. No início da noite, a Fitch, uma das três maiores agências de
rating do mundo, colocou sob viés negativo a nota do governo brasileiro. Disse
que houve piora dos quadros econômico e fiscal, e citou a renovação da crise
política, “incluindo as tensões entre o executivo e o congresso e as incertezas
sobre a duração e a intensidade da pandemia de coronavírus”. O Brasil
atualmente é classificado pela agência como BB-, a três degraus do grau de
investimento. Agora, está mais próximo de um novo rebaixamento.
Moro não pode se dizer surpreso. Foi para o governo
Bolsonaro sabendo que seu ex-chefe jamais fora um combatente anticorrupção, que
viveu anos em partidos cujos integrantes ele mesmo condenou. Quando Moro diz
que não está acusando o presidente de crime, ele está se protegendo no campo
que entende muito bem. Mas que crime o presidente pode ter cometido, isso
dependerá da capacidade de investigação da Polícia Federal. Os ministros terão
que depor e, ao contrário do presidente, não têm o direito de fazê-lo por
escrito. A propósito, me disse ontem um procurador, essa prerrogativa do
presidente nem deveria existir.
“Depoimento tem que ser oral.” Hoje, Bolsonaro é um homem acuado. Só resta a ele a grosseria de mandar a imprensa calar a boca. Não será atendido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário