quinta-feira, 28 de maio de 2020

SPY X SPY

Ascânio Seleme, O GLOBO

Claro que cabe à Polícia Federal investigar malfeitos de governadores e outras autoridades estaduais, atendendo a determinação judicial. Também é da competência da PF abrir inquérito para apurar ataques contra membros do Supremo Tribunal Federal. As duas ações deflagradas ontem e antes de ontem são, portanto, absolutamente legais. Houve desvio de dinheiro público no Rio e a conduta do governador Wilson Witzel levanta suspeitas. Sobre as fake news contra o STF e seus ministros que infestam as redes sociais não resta qualquer dúvida, faltando apenas descobrir quem as financia, produz e dissemina.

As duas operações da Polícia Federal estão no meio de um redemoinho político. As ações de busca e apreensão feitas em endereços do governador Witzel, inclusive os dois palácios oficiais do governo, ocorrem pouco mais de um mês depois da intervenção do presidente Jair Bolsonaro na PF. Não que a polícia pudesse agir sozinha, mas ordens judiciais só existem porque são obtidas. Há elementos que corroboram a impressão de que houve uma incitação política no caso. Dois deputados bolsonaristas, Carla Zambelli e Anderson Moraes (ambos do PSL), deram declarações informando que haveria operação da PF antes de ela ocorrer.

Há duas semanas, Anderson disse que o “japonês da Federal iria bater na porta de Witzel”. Zambelli mencionou a operação na véspera, numa entrevista à Rádio Gaúcha. Disse que governadores estavam sendo investigados pela PF. Confrontada com o fato, afirmou que havia lido a informação na imprensa. Mentiu. Outro fator foi o apelido dado à operação antes mesmo de ela ser deflagrada. Tanto Zambelli quanto o assessor especial para assuntos internacionais do Palácio do Planalto, Filipe Martins, a chamaram de Covidão. O apelido ganhou as redes, alimentando o bolsonarismo radical.

O próprio Bolsonaro admitiu que a obra é sua. Ontem, ao falar aos seus seguidores na portaria do Palácio da Alvorada, Bolsonaro disse que enquanto for presidente vai ter mais ações como a deflagrada contra Witzel. Ele confessou o crime. Não cabe ao presidente da República determinar que tipo de ação deve fazer a PF nem decidir contra quem ela deve operar. Por esta intervenção indevida o capitão está sendo investigado. A Polícia Federal é uma instituição do Estado brasileiro, não do chefe do executivo.

Nenhuma dúvida de que Witzel tem que responder sobre os crimes cometidos sob suas barbas. Há inúmeros indícios de que ele foi no mínimo conivente na compra superfaturada de respiradores e na contratação esquisita de hospitais de campanha.

Houve desvios, contratos foram assinados mesmo sendo amplamente desfavoráveis ao estado, sete hospitais foram contratados e apenas um foi entregue, e o subsecretário de Saúde está preso. Havia mesmo o que se investigar, mas não precisava do empurrão de Bolsonaro. A ação aparentemente furou a fila e teve motivação política.

Do outro lado, a ação de ontem em endereços de gente como Roberto Jefferson e Luciano Hang, dois dos mais fanáticos apoiadores de Bolsonaro, também tem um componente político, mas não guarda nenhuma semelhança com a incitação provocada por Bolsonaro sobre os desvios no Rio. Neste caso, os ofendidos são os ministros do Supremo, alvos de uma campanha de mentira, difamação e desestabilização sem precedentes nas redes sociais. Mais do que justa, a operação é obrigatória e defende não apenas juízes, mas a instituição e, em última instância, a própria democracia.

Os ataques contra o Supremo atingem a nação inteira. O ex-deputado Roberto Jefferson, um dos principais estimuladores a ataques ao STF, prega a sua dissolução e o compara ao nazismo. Ontem, o ex-deputado, condenado a mais de dez anos de reclusão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, disse que o presidente Bolsonaro deveria aposentar os onze ministros e nomear outros. Pregou um golpe, o aloprado. E, se restava alguma dúvida sobre a legitimidade da ação, ela desapareceu quando Carlos e Eduardo, dois dos três zeros de Bolsonaro, a condenaram.

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