Morte de João Pessoa: 90 anos do crime que marcou a
Paraíba e mudou a política no Brasil
O maior fato político da Paraíba no Século XX, também
considerado um dos mais importantes do Brasil pelo menos na primeira metade do
século passado: a morte de João Pessoa, então presidente da Paraíba, completa
90 anos neste domingo (26). O assassinato que eternizou o nome do político na
capital da Paraíba e o luto na bandeira do estado foi o episódio fatídico que
mudou os rumos políticos do Brasil, decretando o fim do período da República
Velha e alçando Getúlio Vargas ao poder.
Crime passional ou homicídio por razões políticas? Embora
haja um acirramento de narrativas para contar as versões do fato, o professor
da UFCG José Luciano de Queiroz Aires, doutor em História pela UFPE e autor do
livro “A Fabricação do Mito João Pessoa: Batalhas de Memórias na Paraíba
(1930-1945)”, propõe uma explicação científica para o assassinato do governador
da Paraíba em 26 de julho de 1930 pelo advogado João Dantas, no Recife, como um
misto das duas versões totalizantes.
O professor e escritor afirma que sem a morte de João
Pessoa, e o tratamento político que foi dado a ela, com a peregrinação do corpo
do presidente da Paraíba por todas as capitais antes de ser enterrado no Rio de
Janeiro, quase como uma santificação do político, Getúlio Vargas dificilmente
teria ascendido à Presidência da República por meio de uma tomada de poder
através do que ficou conhecido como Revolução de 1930.
“A verdade é que João Dantas matou João Pessoa, mas, ao
mesmo tempo, o transformou em um mártir, permitiu que se criasse um mito na
figura do Governador da Paraíba na época. Esse fato histórico muda a História
do Brasil. Ele germina o ‘getulismo’, não podemos subestimar como um crime
passional, muito embora o estopim tenha sido”, explica.
A morte de João Pessoa, que na época tinha perdido as
eleições presidenciais em março de 1930 enquanto vice-presidente na chapa de
Getúlio Vargas para Júlio Prestes, ajudou Getúlio a alimentar uma consternação
popular que, somada à acusação de eleições fraudulentas e ao momento de crise
financeira em consequência da crise de 1929, desencadearia o episódio histórico
que ficou conhecido como Revolução de 1930.
A revolta destituiu o presidente Washington Luís, a quem
João Pessoa se posicionou como oposição política enquanto vivo, impediu a posse
de Júlio Prestes e determinou Getúlio Vargas como chefe do governo provisório
que comandaria o Brasil. “Podemos afirmar que a morte de João Pessoa, com todo
contexto político, econômico e social que existia, foi um dos motivos da
Revolução de 1930 e consequentemente do fim do período que chamamos de
República Velha”, analisou Aires.
Entre julho e outubro daquele 1930, à medida em que o corpo
de João Pessoa peregrinava entre as principais capitais do Brasil para receber
homenagens por conta da morte pretensamente política, seu nome ia batizando
ruas, avenidas e praças pelo país, conta o historiador.
O ritual criado em torno das solenidades fúnebres para João
Pessoa criou um mito, sendo idealizado pelo empresário e comunicador paraibano
Assis Chateaubriand, entusiasta da Aliança Liberal, grupo político que o
governador da Paraíba fazia parte, na análise de José Luciano de Queiroz Aires.
“Não só na Paraíba, quase todos os estados do brasil
colocaram o nome de João Pessoa em algum espaço público. Em vários estados
temos praças, homenagens a ele, mas essa mobilização aqui foi muito mais forte,
com a mudança do nome da capital, da bandeira do estado, e com a criação de
monumentos e de até um hino para a pessoa de João Pessoa”, conclui o professor.
Crise na oligarquia paraibana
Para entender o que pode ter levado João Dantas a puxar o
gatilho do revólver e matar João Pessoa dentro da confeitaria Glória, no Centro
do Recife, em 26 de julho de 1930, o professor e escritor José Luciano de
Queiroz Aires comenta que é necessário antes conhecer o contexto político da
Paraíba no período.
Àquela altura, João Pessoa estava há dois anos como
governador do estado. Apesar de ter saído de uma família que pertencia à
oligarquia paraibana, tentava implementar uma política moderna e centralizante
que rompia com os interesses do grupo político do qual ele saiu.
Nesse modelo de gestão que João Pessoa instalava na Paraíba,
os coronéis da época, como eram conhecidas as lideranças econômicas e políticas
das cidades do interior, começaram a perder poder. O então governador paraibano
trouxe para o aparelho do estado a maior parte das decisões que estavam nas
mãos dos coronéis.
“As obras contra a seca passaram para o estado, ele desarmou
coronéis, criou imposto, uma espécie de pedágio. Criou também uma reforma
tributária para dinamizar o porto e o comércio no estado. As entradas e as
saídas de produtos que vinham de fora, se fosse pelo porto da capital tinham um
valor de tributo, e se fosse direto com Recife, a tarifa era altíssima. Esse é
o fator fundante da política centralizadora”, relata o professor, pesquisador e
escritor.
João Pessoa também cria, em meio a esse panorama político, o
Tribunal de Contas, para fiscalizar as contas das prefeituras paraibanas, que
eram reservas de poder dos coronéis. “Ele não rompe publicamente com os
coronéis, mas submete todos eles a essa centralização. A reforma tributária,
aliás, é o que explica, por exemplo, a Guerra de Princesa”, avalia Aires.
A Guerra de Princesa, como lembra Aires, só viria a acabar -
sem um vencedor na análise dele -, após uma intervenção federal a mando do
presidente Washington Luís, embora não tenha contido a insatisfação dos
coronéis. Além da queixa por conta dos impostos, que prejudicaram os negócios,
as oligarquias paraibanas não aprovaram a vontade política de João Pessoa de
excluir das eleições quadros antigos e consagrados no partido.
Na reunião do Partido Republicano da Paraíba, João Pessoa,
ainda enquanto integrante, havia se posicionado contra as candidaturas de
políticos mais tradicionais, oriundos das oligarquias, como o caso de João
Suassuna, que havia antecedido Pessoa como presidente da Paraíba e que ocupava
o cargo de deputado.
“Na convenção do partido, em 1930, João Pessoa defendeu uma
política de renovação, queria tirar pessoas velhas para botar nomes novos.
Nessa defesa, sacrificou o nome de João Suassuna, que buscava reeleição, mas
manteve o do próprio primo na disputa, Carlos Pessoa de Umbuzeiro, que
representava a velha política”, comentou Aires.
Em meio ao contexto político de conflito interno nas
oligarquias, causado por João Pessoa, uma decisão governamental que causou
contrariedade em outra família, a Dantas, da cidade de Teixeira, foi a mudança
de chefias de cargos públicos importantes. Na época, o presidente (nome do
cargo de então governador do estado) detinha o poder discricionária de mudar peças
em órgãos da administração direta, como ainda é atualmente, e também no
judiciário.
João Pessoa trocou juízes e delegados nas cidades onde as
oligarquias tinham muita influência. No caso de Teixeira, reduto político da
família Dantas, o presidente da Paraíba nomeou um delegado que passou a
perseguir politicamente pessoas daquela família. “Temos registro de prisões de
familiares de João Dantas no período, de mulheres da família, inclusive, fato
que gerou muita indignação”, explicou o professor da UFCG.
A postura assumida por João Pessoa gerou uma rusga com três
das principais oligarquias: Pereira, de Princesa Isabel; Suassuna, de Catolé do
Rocha; e Dantas, de Teixeira. “Todos eram do mesmo grupo, incluindo a família
Pessoa de Umbuzeiro, mas após o governo de João Pessoa acontece esse racha na
oligarquia paraibana, principalmente com essas três famílias tradicionais do
estado”, ressalta José Luciano de Queiroz Aires.
Muitos dos considerados perseguidos politicamente pelo
governador decidiam pelo exílio político, indo morar em outros estados. A maior
parte deles estabeleceu residência no estado vizinho Pernambuco, como foi o
caso de João Suassuna, pai do escritor Ariano Suassuna, e do advogado João
Dantas, que viria a se tornar no dia 26 de julho de 1930 o assassino de João
Pessoa.
Ataques nos jornais
A crise vivida entre o governador do estado com as
oligarquias gerou constantes discussões públicas por meio dos jornais,
principalmente entre João Dantas, que escrevia para o Jornal do Commércio de
Recife, e de João Pessoa, articulista do jornal do próprio governo paraibano, A
União. Os embates por meio de artigos nos dois periódicos integram parte do
acervo resgatado pelo historiador Wellington Aguiar, em seu livro “João Pessoa:
O Reformador”, de 2005.
O uso do jornal A União para atacar seus desafetos
políticos, aliás, era recorrente por parte de João Pessoa. Entre 20 e 26 de
julho de 1930, data fatídica de seu assassinato, o periódico paraibano,
considerado um dos mais antigos da América do Sul, reservou ataques diretos às
famílias Pereira, Dantas e Suassuna nas manchetes principais.
Além dos ataques públicos às famílias rivais, inclusive como
na capa do jornal de 24 de julho de 1930 quando liga João Suassuna ao movimento
do cangaço no Sertão paraibano, o jornal A União deu publicidade a documentos
retirados a partir de um arrombamento supostamente clandestino feito ao
escritório mantido por João Dantas na capital paraibana, à época ainda cidade
da Parahyba.
A versão que se popularizou foi de que o escritório foi invadido
a mando político de João Pessoa, no entanto, oficialmente, o que se sabe é que
o escritório foi encontrado arrombado e os documentos que nele estavam foram
recolhidos pela polícia estadual da época.
O professor da UFCG, doutor em História pela UFPE, José
Luciano de Queiroz Aires explica que não há mais como confirmar documentalmente
que João Pessoa foi mandante da invasão ao escritório de João Dantas, mas que é
indiscutível o uso político do material que foi recolhido a partir daquela
invasão.
“A documentação sugere que [a invasão] foi feita pela
polícia da Paraíba, inclusive o gabinete onde João Pessoa atendia era na mesma
rua do apartamento que foi arrombado, mas não temos mais como comprovar a
veracidade absoluta”, explicou o historiador.
Parte desses documentos foram publicados pelo jornal A União
sob a manchete “Revelando a alma tortuosa dos conspiradores contra a ordem e a
dignidade de nossa terra - A polícia apreendeu armas e sensacionais documentos
na residência do sr. João Dantas”.
“Investigando sobre o caso, a polícia examinou os papéis
espalhados, notando que entre eles havia documentos profundamente
comprometedores no que se relaciona com a ordem pública e a agitação política
que separou nos últimos tempos parahybanos dignos do grupo de aventureiros e
traidores sem escrúpulos”, diz um trecho da reportagem sobre o episódio
publicada no dia 22 de julho de 1930.
A reportagem inclusive traz que “os documentos encontrados
‘A União’ começará amanhã a publicar, porquanto os mesmos contêm curiosas
revelações sobre os miseráveis modos de agir dos inimigos da Parahyba, dos
quais o tarado João Dantas era uma espécie de espião e cônsul geral nesta
cidade”.
O mesmo assunto estampou a capa do jornal A União nos dias
23 e 26 de julho, e teve publicações de reportagens nos dias 24 e 25 o mesmo
mês. A manchete d’A União de 25 de julho, aliás, cita expressamente que a
família Dantas havia roubado dinheiro dos cofres públicos a partir de obras
estatais contra a seca.
A publicação das cartas de João Dantas cessou na edição de
26 de julho, quando na edição do dia seguinte, a cobertura jornalística do
periódico do governo paraibano passou a se dedicar a reportar a morte de João
Pessoa e seus desdobramentos. Porém, ao fim da publicação dessa edição, o
jornal A União traz o seguinte trecho:
“No cofre marca ‘Torpedo’ encontrado no quarto do bacharel
João Dantas a polícia achou notas redigidas pelo próprio punho do espião com a
narrativa de atos amorosos pelo mesmo praticados. Tais notas não podem ser
publicadas porque ofendem ao decoro comum. Mas quem quiser vê-las o pode fazer
na delegacia”.
Logo em seguida, reproduz um poema escrito por João Dantas
intitulado Sangue de Cangaceiro. As notas citadas na reportagem são as cartas
de amor trocadas entre o advogado paraibano e a professora
Anayde Beiriz, que em meio a essa briga política entre seu namorado e o governador
do estado, teve sua honra ultrajada a partir da exposição de sua
intimidade perante uma sociedade paraibana moralista e pouco afeita às mulheres
que assumiam posturas sociais mais modernas.
‘Um crime pessoal’
O mesmo jornal A União que trazia o relato das notas imorais
de João Dantas e indicava que estavam disponíveis na delegacia da capital
paraibana, avisava que o presidente João Pessoa estaria no Recife, capital
pernambucana, para visitar um amigo, o dr. Cunha Mello, que se convalescia de
uma cirurgia. De toda forma, o poder tinha sido entregue ao vice-presidente
Álvaro de Carvalho.
Se a nota no jornal influenciou nos planos de Dantas, não há
como saber, porém após a sequência de ataques promovidos no jornal oficial do
governo paraibano, o historiador José Luciano de Queiroz Aires comenta que é
possível inferir que houve um contexto passional por parte do desafeto de João
Pessoa.
“A exposição da intimidade do romance dele com a professora
Anayde Beiriz pode ter sido um fato determinante nesse crime. A verdade é que a
morte de João Pessoa foi um tiro que saiu pela culatra entre os perrepista
[membros do Partido Republicano, rival ao de João Pessoa]. João Dantas criou um
herói, houve uma mitificação. Os próprios perrepistas caíram em desgraça depois
disso, passaram a ser perseguidos”, explicou.
O historiador comentou que não entende o crime meramente
como passional, nem como apenas político. “Foi um crime de honra, como se dizia
antigamente, para lavar a honra, foi por uma vingança em nome da honra. Havia
uma sequência de problemas políticos, mas não foi um crime passional, foi um crime
pessoal”, define o historiador doutor pela UFPE.
João Dantas e seu cunhado, acusado como cúmplice no
assassinato, foram presos e posteriormente encontrados mortos dentro da cela em
que ocuparam no Recife. A versão de suicídio de ambos não é aceita pela literatura
histórica, que, segundo Aires, considera relatos de testemunhas de que o irmão
de João Pessoa e um policial teriam sangrado João Dantas e seu cunhado no
cárcere.
Anayde Beiriz, vítima indireta de todo esse acirramento
político, após a morte de João Dantas, sabendo que a polícia estava à sua
procura, se refugiou no Asilo Bom Pastor, no Recife. As freiras contam que
quando ela chegou ao local já havia ingerido veneno, no dia 19 de outubro.
Segundo a carta da Madre Superiora enviada à família, ela sofreu muito. Morreu
rezando o Pai Nosso, no dia 22 de outubro de 1930.
João Pessoa, o presidente da Paraíba morto a tiros na
confeitaria Glória no Recife, entrou para a história como mártir. Seu corpo
peregrinou de porto em porto no Brasil, e foi enterrado no Rio de Janeiro. A
comoção popular após sua morte gerou em setembro de 1930 a mudança do nome da
capital da Paraíba e a adoção de bandeira vermelha e preta com o termo Nego,
representando o luto e a luta.
“Não se pode subestimar a morte de João Pessoa. Foi um fato político mais importante para que ocorresse o fim da República Velha, para que mudasse para sempre os rumos da política do país”, concluiu José Luciano de Queiroz Aires.
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