Escrever sobre índio é nadar contra a corrente porque os
editores do passado achavam o tema um tédio, os políticos pensam que dá azar e,
no cotidiano, costumamos chamar de programa de índio a algo desinteressante,
sem graça.
O velho líder caiapó Raoni esteve internado em estado grave
e teve alta. Não é Covid, mas a dor universal de perder a mulher com quem viveu
muitos anos está derrubando o guerreiro.
Conheci Raoni em Altamira. Documentei sua amizade com o
cantor Sting e com Anita Roddick, dona da Body Shop. Era uma segunda descoberta
europeia dos índios brasileiros, reunidos ali para protestar contra a usina de
Belo Monte. Agora os viam também como defensores da floresta.
Os viajantes do século XIX, meu tema de estudo, eram
fascinados pela curiosidade de conhecê-los. O príncipe Maximiliano de
Wied-Neuwied e o grande pintor Rugendas, por exemplo, estiveram no Brasil, mas
os procuravam em qualquer ponto do mundo novo. Max, desculpe tratá-lo com essa
intimidade, navegou longamente pelos rios norte-americanos, contraiu escorbuto,
mas não perdia a chance de conviver com os índios.
Rugendas sofreu um acidente na Argentina, um raio o atingiu.
Desfigurado e com dores crônicas, sentiu a proximidade de índios, cobriu o
rosto disforme com um manto negro, tomou uma dose de morfina e cavalgou alguns
quilômetros para pintá-los. E que lindas cores reproduzia em seus desenhos.
O governo brasileiro acha que os índios devem ser
integrados. Um pouco como o Weintraub, mas não tão agressivo como ele, que
dizia odiar a expressão “povos indígenas”.
Na verdade, esse é um sonho de liquidação cultural. No
momento em que a Covid-19 avança pelas aldeias, é também uma destruição física.
Já morreram 500 e, de um modo geral, os mais velhos. São os depositários do
conhecimento, numa cultura oral. O jornal “El País” descreveu precisamente
essas mortes: é como se fossem inúmeras bibliotecas pegando fogo.
O governo não quer dar nem água potável para eles. Os
ianomâmis e os ye’kwanas, lá na fronteira com a Venezuela, estão acossados por
garimpeiros. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já advertiu
o governo brasileiro duas vezes. Na primeira, foi respondida apenas de uma
forma muito geral, insatisfatória.
O fotógrafo Sebastião Salgado fez uma campanha para que os
índios fossem protegidos na pandemia e pela expulsão dos invasores de suas
terras.
Não repercutiu aqui como merecia. Apesar do que pensa o
governo, a Constituição, em dois artigos, reconhece seus direitos não só
culturais, como também territoriais.
O STF, através do ministro Luís Roberto Barroso, tenta fazer
valer o texto da lei, e não os delírios destrutivos do governo. Creio que é
necessário advertir para o que se passa lá fora e seus desdobramentos. A imagem
do Brasil está desgastada pela política ambiental. E também pela política
sanitária, considerada um desastre até pelo presidente das Filipinas, um
exemplo asiático do modelo Bolsonaro.
Esses dois desgastes convergem na questão indígena, onde os
temas sanitários e de defesa da Amazônia se associam.
Bolsonaro foi questionado no Tribunal Internacional pelo PDT
pela sua omissão na pandemia. Como é de se esperar em nossa cultura, o partido
esqueceu os índios em sua denúncia.
A única juíza brasileira que atuou no Tribunal
Internacional, Sylvia Steiner, ao mostrar que o esforço do PDT não teria êxito,
lembrou que a situação dos índios brasileiros era algo que poderia levar
Bolsonaro ao banco dos réus em Haia.
De fato, o artigo que define genocídio prevê a destruição
parcial ou total de uma etnia. Foi por causa disso que o Tribunal aceitou a
acusação contra o presidente sudanês Omar al -Bashir.
É preciso um esforço nacional para evitar que a pandemia
devaste as populações indígenas. Nossa transmissão de vírus e micróbios, algo
que os aniquila desde os tempos coloniais, precisa ser controlada. Se isso
acabar em Haia, sinto que nossa cultura também será julgada, por não termos
conseguido deter o processo.
E quanto aos nossos animados militantes de direita, lembro
que não adiantará insultar o Tribunal pela internet nem fazer grandes bonecos
representando seus juízes. E os nervosos generais que ameaçam com golpe
certamente não devem fazer planos para invadir a Holanda. Um oceano líquido e
mental nos separa.
Artigo publicado no jornal O Globo em 27/07/2020
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