O maior risco às democracias hoje, como se sabe, não são
golpes ou revoluções, mas a corrosão lenta, gradual e metódica de seus pilares
por parte daqueles (governantes, partidos, legisladores, juízes, procuradores)
que deveriam zelar pela sua preservação.
Com um governo como o de Jair Bolsonaro, de propensão
abertamente autoritária, opaca e antidemocrática, o risco é diário, inclusive
nas ações que outras forças (Poderes, instituições, grupos políticos) tomam
para tentar contê-lo.
Diz o dito popular que o uso do cachimbo deixa a boca torta.
O expediente de recorrer a artifícios legais e a medidas extremas sob o
pretexto de conter ilegalidades ou extremismos alheios acaba igualando a todos
num fumacê perigoso e atentatório às liberdades.
Na mesma semana, um ministro do Supremo Tribunal Federal
determinou o banimento de bolsonaristas das redes sociais sob a justificativa
de que é necessário conter crimes de ódio, um levantamento mostrou o recorde de
ações da Polícia Federal baseadas na Lei de Segurança Nacional e foi revelada uma
investigação secreta do serviço de inteligência do governo Bolsonaro contra
integrantes de grupos antifascistas. Se isso é plena vigência do Estado
Democrático Direito, o que seria atentar contra ele?
Quando o plenário do STF chancelou, por 10 votos a 1, o
tentacular inquérito das fake news estavam subjacentes dois entendimentos: 1)
mesmo aqueles ministros que viam abusos no procedimento o engoliram porque
reconheciam a necessidade de dar uma resposta à escalada golpista de Bolsonaro
e seus apoiadores; 2) a partir dali, o feito seria “saneado”, e suas ações,
mais transparentes.
Depois de alguns dias de calmaria, o relator, Alexandre de
Moraes, determinou nesta semana uma das medidas mais radicais entre várias
tomadas por ele no âmbito desse procedimento que já censurou a imprensa,
vasculhou casa de internautas e colocou gente na cadeia.
É evidente que há indícios de crimes encobertos sob o manto
da liberdade de expressão sendo cometidos nas redes sociais, e que isso vem de
uma teia muito bem estruturada, principalmente financeiramente. Mas a decisão
de Moraes não evidencia quais são esses crimes ao determinar a retirada do ar
das contas do fã-clube bolsonarista.
Em mais de três páginas são expostos tuítes dos atingidos
pela medida. Há ali memes, bravatas, bobagens, desinformação e incitação a
manifestações, mas é difícil sustentar que haja cometimento de crimes. Ainda
mais sem o link essencial para configurar a tese que está em apuração: que
empresários financiam destruição de reputações, influenciam em resultados
eleitorais, custeiam treinamento de extremistas e manifestações pelo fechamento
do STF e do Congresso.
Esses todos são crimes evidentes e tipificados, e há
indícios de que tenham sido cometidos, mas precisam estar demonstrados. Há um
caminho para isso: quebras de sigilos primeiro, a obtenção de dados de empresas
em seguida (o ministro diz na decisão que solicitou informações ao WhatsApp e
fez o mesmo com a auditoria do Facebook que baniu perfis inautênticos) e,
depois, o cruzamento dessas informações.
O que há na decisão de Moraes são organogramas atribuídos a
laudos periciais da PF que qualquer nerd de redes sociais faz a partir da
análise de interações: quem usa qual hashtag, quem segue e compartilha quem,
quem dita o discurso. O “siga o dinheiro” não chega nem perto de ser
demonstrado ali, nem os crimes efetivos.
Todo democrata do Brasil quer ver a sanha golpista e os crimes de responsabilidade de Bolsonaro contidos e investigados e, caso não cessem, interrompidos pelos sistemas constitucionais. Mas fumar o mesmo cachimbo que ele até a boca entortar não é o caminho para que isso seja feito.
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