Quatro meses e mais de 74 mil mortes por Covid-19 separaram
audazes e intrépidos médicos, empresários e políticos cloroquinistas dos
céticos e prudentes pesquisadores, adeptos da preservação das estratégias de
isolamento social. Ao longo do tempo, as ideias circulantes se coagularam em
torno da oposição entre a prática, observações pessoais e as evidências
científicas. Uma falsa dicotomia. Como se a adesão a comprimidos conferisse
audácia e euforia; e a insistência nas medidas preventivas, covardia e
pessimismo.
Na vida real, os impulsos se misturaram com experiências
concretas e conferiram concretude a pelo menos três condutas assistenciais.
Políticos, propagandistas de medicamentos, recebem pílula, dois
eletrocardiogramas diários e acompanhamento médico. Pacientes acessam serviços
de saúde públicos ou privados do circuito medicina-pesquisa e obtêm explicações
sobre proteção e adoecimento. Parcela da população é beneficiária de pacotes
com comprimidos, supostamente eficazes, entregues em casa, espaços públicos
improvisados e algumas empresas de planos de saúde.
Presidente da República e prefeitos que recomendam remédio
antimalárico e distribuem vermífugos omitem a parte principal da história:
quando ficam doentes, correm para hospitais privados de excelência,
prestigiados inclusive porque pararam de incluir essas drogas em seus
protocolos. Valentes libertários, defensores da liberdade inclusive para se
tornar doente e infectar os demais, não usam apenas comprimido e copo com água,
contam com uma potente retaguarda. O ímpeto de estar no front de peito aberto é
aparente, tanto quanto ilusório o enunciado de vivência pessoal favorável ao
medicamento.
A cronologia de declarações favoráveis à hidroxicloroquina
mostra a dianteira de Trump como charlatão oficial. Em 19 de março, o
presidente dos EUA disse que o medicamento poderia “mudar o jogo”. O mandatário
brasileiro imitou o americano. Em 21 de março anunciou aumento da produção de
cloroquina. Ambos os presidentes disseram terem tomado o remédio. Trump
assegurou no início de junho que não teve efeitos colaterais, e Bolsonaro se
dirigiu “aos que torcem contra o uso da cloroquina, mas não apresentam
alternativa” para informar que está muito bem.
Celebrar as interações humanas movidas por vontades
individuais tem efeitos deletérios sobre a configuração institucional. O sumiço
do Ministério da Saúde foi ocupado por novos arranjos institucionais. Empresas
de saúde cloroquinistas se uniram a burocratas de ocasião, ocupantes de cargos
no Ministério da Saúde que irradiam orientações para a prescrição de remédios
para médicos, redes sociais e prefeituras.
Outro enclave reúne hospitais filantrópicos privados de São
Paulo, que atendem a estratos de maior renda, com grandes empresas e algumas
instituições públicas. Recursos doados foram aplicados para a expansão da
oferta de leitos permanentes e em hospitais de campanha, telemedicina,
aquisição de equipamentos e testes. São diretrizes de ação distintas. A
primeira cruzada tem como missão levar medicamentos para todos. A segunda
concentra-se em torno de lacunas assistenciais. Entretanto, nenhum dos esforços
empresariais é capaz de desempenhar o papel de coordenação de estratégias
populacionais com as iniciativas de assistência individual — reservado a
autoridades sanitárias públicas.
A desconfiguração do SUS exponencia as assimetrias
“naturais” de poder e desigualdades, faz do estado de natureza um ideal de
sociabilidade. A briga não é entre sujeitos individuais arrojados contra
cientistas hesitantes. A defesa da espontaneidade, do apelo aos instintos,
ocorre em meio à dissolução dos nexos normativos e regulatórios estatais. Sem a
esfera pública, não há autocontenção e reconhecimento dos danos que podemos
infligir aos demais.
Esse legado de destruição, se não isolado, pode contaminar os processos científicos públicos de avaliação, que determinam a segurança e efetividade de medicamentos, e vacinas que asseguram avanços no controle de doenças. Otimistas são os que não se conformam com uma mortandade de rebanho.
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