O foco de nossas discussões hoje no Brasil tem sido o governo: atacar
ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou manter Bolsonaro de pé.
No entanto, há uma crise de grandes proporções no horizonte. Não
importa quem estiver em Brasília, enfrentará um enorme desafio para
simultaneamente amparar os mais vulneráveis e fazer o País andar.
Para o economista Armínio Fraga, é profundo o tamanho do buraco. Ele
calcula que será necessário, em recursos, o equivalente a oito pontos do PIB
para sairmos dessa.
Nesse ponto é que uma reflexão política pode ajudar. O governo segue
dois caminhos perigosos. Ambos tornam a tarefa mais difícil.
A visão atrasada da política ambiental pode ser um obstáculo decisivo,
pois consegue, ao mesmo tempo, afugentar investidores internacionais e desvalorizar
os produtos brasileiros lá fora. Ou, no limite, até tornar alguns inviáveis.
A política sanitária negacionista completa esse quadro. O desempenho
brasileiro no combate ao coronavírus também não ficará barato para a Nação.
Pontualmente, o mercado da carne foi atingido. Mas o turismo dificilmente se
recupera rápido. O fato de sermos uma região onde o vírus não é controlado
significa inúmeros transtornos, que repercutem até na dificuldade do Flamengo
de contratar um técnico de futebol no exterior.
A existência de um governo com essas características torna a tarefa de
recuperação, com a demanda de recursos que implica, gigantesca, quase
impossível.
O ponto central no momento é a reforma tributária. O pulo do gato é um
imposto sobre transações eletrônicas, bastante aceleradas sobretudo depois que
a pandemia se instalou no País. É uma CPMF adaptada às condições da nova
situação criada pelo coronavírus e que, de certa maneira, já se verificava como
consequência da revolução digital.
Aí reside outro nó político. Como convencer a sociedade, devastada pela
crise sanitária, a pagar um novo imposto, ela que já o recusou em outras
circunstâncias?
A única possibilidade de atenuar a resistência será um esforço visível
do governo para reduzir os custos da máquina. Nos cálculos de Armínio Fraga,
isso poderia representar três pontos do PIB, sem perda de eficácia da máquina.
A própria ordem dos fatores dificulta essa saída. O governo, primeiro,
pensa em introduzir um novo imposto. Só depois, possivelmente, falará em
reforma administrativa. Mesmo assim, não se conhece em detalhes o que ele pensa
sobre isso. Haveria mesmo uma racionalização convincente da máquina, uma
certeza cristalina de custos menores pela prestação dos serviços públicos?
A previsão é de que, mesmo sem orçamento de guerra em 2021, o governo
seja pressionado a gastar. A dívida no longo prazo torna-se problemática e a
tendência será buscar dinheiro com prazos cada vez mais curtos.
Tudo isso é um grande problema no médio prazo. Uma razão a mais para
pedir uma verdadeira política ambiental, uma guinada no negacionismo sanitário,
uma ampla reforma da máquina administrativa.
Mas que sucesso teriam essas demandas num governo que cultiva o
isolacionismo e a negação?
Breve teremos eleições nos Estados Unidos. Existe uma possibilidade
concreta de vitória de Joe Biden. Bolsonaro embarcou cegamente na canoa de
Donald Trump.
Esse deslumbramento provinciano é inadequado para um presidente do
Brasil. Mas agora já aconteceu. Existem quadros na diplomacia brasileira que
poderiam atenuar o impacto negativo dessa política. Mas o atual ministro é o
símbolo dessa política que vê em Trump a salvação dos valores ocidentais –
embora quase todos saibamos que, se dependessem de Trump, os valores ocidentais
já estavam destruídos.
Quando articulo todos esses elementos de análise, concluo que
dificilmente este governo tem condições de superar a crise no horizonte.
Derrubá-lo num movimento traumático abalaria em muitos dos seus
eleitores a confiança na democracia. Daí não vejo outro caminho senão abordar a
crise com propostas positivas e, simultaneamente, mostrar aos eleitores
bem-intencionados que não há solução com Bolsonaro. As coordenadas para tirar o
Brasil da crise chocam-se diretamente com sua visão de mundo.
Quanto mais rápido se completar esse movimento, mais tempo teremos para
abordar a crise de forma criativa, aplicando no futuro não só as lições do
passado, mas, acima de tudo, aquelas que se tornaram evidentes durante a
pandemia.
As diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a
ideia de que é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe
um consumo de qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público:
saneamento, educação, sistema de saúde universal e bem equipado.
A enorme potencialidade do Brasil, popular, intelectual, científica,
enfim, todos esse fatores que o governo despreza precisam estar juntos de novo
não apenas para derrubá-lo, mas para enfrentar seu legado negativo no processo
de reconstrução. São dois momentos diferentes, reconheço. Mas deveriam estar,
dentro do possível, entrelaçados, pois nunca atravessamos uma tempestade tão
perfeita.
Artigo publicado no Estadão em 24/07/2020
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