sexta-feira, 10 de julho de 2020

UM CONSENSO AMAZÔNICO

Artigo de Fernando Gabeira

Numa semana em que esperava olhar um pouco para a frente, com Bolsonaro mais quieto, eis que ele contrai o novo coronavírus e retoma todo o seu discurso de negação e irresponsabilidade. Ele se contaminou na semana em que vetou a obrigatoriedade das máscaras em lojas, templos e presídios, contrariando a orientação científica internacional.

Fica difícil olhar para a frente com o caos criado no Ministério da Educação. Como retornar às aulas em escolas públicas sem um plano adequado? Algumas não têm sequer saneamento básico. E grande parte dos alunos não se pode integrar ao ensino a distância por falta de meios.

Mas o futuro, de certa maneira, pede passagem, na voz dos investidores internacionais e dos grande grupos econômicos do Brasil: eles não aceitam mais a política ambiental do governo para a Amazônia. Há quem ache estranha a procedência desse apelo pela floresta.

A ecologia, sobretudo nos Estados Unidos, sempre foi vista como uma dimensão da luta anticapitalista. Os próprios partidos verdes sempre se voltaram para a esquerda na suas alianças, muitos considerando o socialismo como o horizonte de suas aspirações.

Mas esse consenso de que ecologia e capitalismo não se encontram nunca vem sendo quebrado há muito por filósofos conservadores, como o inglês John Gray, por exemplo. O primeiro contato que tive com sua agenda verde para o conservadorismo foi em 1993, no livro Para Além da Nova Direita, uma crítica ao neoliberalismo. Gray formulava uma agenda para a Grã-Bretanha e partia do princípio de que havia muitas convergências entre o pensamento conservador e os teóricos verdes. Na verdade, ele acha que o berço de algumas ideias aceitas pelos ecologistas podem ser encontradas em pensadores como Edmund Burke.

Uma delas é de que o contrato social não envolve apenas anônimos e efêmeros indivíduos, mas gerações passadas, presentes e futuras. O diálogo da visão conservadora de Gray com a filosofia verde naturalmente passa por críticas ao anticapitalismo que despreza alguns benefícios das instituições do mercado e subestima os custos do planejamento central e seus efeitos catastróficos no meio ambiente, como, por exemplo, na antiga União Soviética.

O livro de Gray é só uma das indicações de que conservadores buscam convergências com o movimento verde.

De modo geral, associa-se a visão conservadora ao neoliberalismo, abstraindo sua visão cética sobre o progresso, com suas ironias e ilusões. Aqui, no Brasil, assim como em muitos países do mundo, há a ideia de que o capitalismo, ciente da finitude dos recursos naturais, quer explorá-los o mais rápido possível, consumir tudo antes que a vida humana se torne impossível no planeta.

Essa visão, hoje, na Amazônia, é das forças bolsonaristas compostas por desmatadores, grileiros e garimpeiros, que têm pressa em retirar todos os frutos da floresta, destruindo-a e aos seus habitantes tradicionais. Infelizmente, uma concepção de defesa nacional, no meu entender anacrônica, fortalece esse caminho.

Fica evidente, pela posição dos fundos de pensão e dos grupos econômicos internos, que não é essa a alternativa que aprovam e, nessas circunstâncias, há uma convergência com as bandeiras verdes. Esses grupos financeiros e econômicos não tiraram suas ideias de um mundo abstrato, mas da observação das sociedades onde atuam e prosperam. Nesse sentido, estão em sintonia com instituições brasileiras como o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público, este pedindo abertamente a demissão do ministro do Meio Ambiente por sua política anti-histórica e destrutiva, que, afinal, é também a política de Bolsonaro.

Os grupos econômicos brasileiros decidiram enviar seu apelo ao vice-presidente Hamilton Mourão, que se tem mostrado em sintonia com a política de Bolsonaro na Amazônia. É uma política predatória, que acaba favorecendo os fora da lei que queimam, desmatam e invadem terras públicas e áreas demarcadas para as comunidades indígenas.

Uma consideração sobre o futuro tem de ser, certamente, muito mais ampla do que um simples exame da política amazônica. Há esperanças, no entanto, de uma composição com o enfoque conservador. A vulgaridade da visão de progresso das forças bolsonaristas não pode ser considerada como um produto único do capitalismo. Na verdade, ela é mais a expressão do banditismo e da rapina, de um capitalismo ultrapassado que o mundo contempla com horror, num momento de crise ambiental planetária.

Certamente o edifício reacionário é mais complexo e diverso do que sua expressão amazônica. Mas se ele pode ser rompido em algum ponto onde apodreceu, a ponto de reunir forcas heterogêneas numa frente pela vida, ele pode ser rompido por aqui.

Desse ponto se pode achar um atalho para uma frente pela vida na política contra a pandemia do coronavírus, um consenso sobre a ênfase na educação abandonada; enfim, uma ampla reforma nesse prédio corroído pelo cupim da ignorância e do despreparo. É uma agenda mínima para pensar no futuro para além das peripécias de um governo que não sabe para onde ir.

Artigo publicado no Estadão em 10/07/2020

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