Com palavras civilizadas, incomuns na atual diplomacia
brasileira, o vice-presidente Hamilton Mourão discursou como representante de
um governo imaginário, ao participar de evento ibero-americano organizado pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele pode ter manifestado suas ideias, ao
falar em compromisso com “parâmetros globais de sustentabilidade” e com o multilateralismo,
mas esses valores têm sido rejeitados, de forma persistente, pelo presidente
Jair Bolsonaro e por vários ministros. A noção de uma ordem multilateral é hoje
igualmente execrada no Palácio do Planalto e na Casa Branca, endereço do guia e
modelo do principal mandatário brasileiro.
“Executamos medidas urgentes para conter o desmatamento e as
queimadas e estamos construindo um planejamento para médio e longo prazos para
a Amazônia Legal”, disse o vice. Ele usou a primeira pessoa do plural, mas
faltou – detalhe importantíssimo – esclarecer a quem se refere o pronome “nós”.
Haverá nesse pronome uma referência ao ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles? Nesse caso, como dar conta de sua tentativa, há
poucos dias, de baixar a meta de redução do desmatamento? Mais difícil, ainda,
é explicar a posição do presidente da República, crítico das informações
ambientais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), protetor do
ministro Salles e apoiador de suas ações contra o Ibama.
Na Amazônia, admitiu o vice-presidente, o desmatamento em 2020
poderá ultrapassar o do ano anterior. Se houver necessidade, acrescentou, o
governo poderá manter até 2022 a ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO),
usando a força militar para proteção do ambiente.
Mas o general Mourão foi além, ao comentar a importância da
preservação ambiental para o sucesso comercial do agronegócio. O aumento dos
crimes ambientais, afirmou, expõe o agronegócio a campanhas difamatórias e a
políticas protecionistas no exterior.
O problema é real. Essas campanhas, no entanto, são favorecidas
por ações e atitudes do presidente e de outras autoridades, pormenores omitidos
pelo vice-presidente. Mas ele mostrou realismo – virtude rara, no governo,
quando se trata dessas questões – ao mencionar a importância, para as empresas,
de apresentar boas “credenciais ambientais, sociais e de governança”.
Além do vice-presidente, só a ministra da Agricultura,
Tereza Cristina, tem mostrado percepção dos problemas criados pelo presidente,
por ministros e por pessoas próximas da Presidência, quando defendem o
afrouxamento da defesa ambiental ou ofendem parceiros comerciais.
Ainda falando em nome de um governo que não deveria ser
imaginário, o vice-presidente mostrou pesar pela morte de mais de 100 mil
pessoas pela covid-19. “São perdas irreparáveis, que colocam toda a nação em
luto”, afirmou. O presidente só mencionou o assunto quando foi inevitável, nos
últimos dias, sempre mostrando impaciência e logo passando a outro tema. “Vamos
tocar a vida”, foi a frase de Bolsonaro, na quinta-feira, logo depois de
comentar com o ministro da Saúde a proximidade do número 100 mil.
O general Mourão mencionou ainda os desafios da recuperação
econômica e falou sobre prioridades da política econômica e sobre a pauta de
reformas. Nessa altura, aproximou-se mais da realidade do atual governo. Isso
em nada enriqueceu o discurso. Poderia tê-lo piorado, se o vice-presidente se
dispusesse a defender, como há poucos dias, a criação de um tributo semelhante
à CPMF.
Esse tributo será necessário, segundo o ministro da
Economia, para permitir a desoneração da folha de pagamentos. O vice-presidente
incorporou esse argumento. Não lhe ocorreram, aparentemente, duas perguntas
simples e óbvias: 1. Por que só a CPMF, uma aberração execrada na maior parte
do mundo e condenada, no Brasil, por economistas de primeiro time, tornará
possível aquela desoneração? 2. Foram examinadas outras soluções?
Mas o discurso ficou longe desses detalhes. Assim, pôde soar
como se refletisse ideias e atitudes de um governo organizado, moderno e guiado
por valores civilizados.
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