É de percepção geral o fenômeno das fake news. Fake news
como notícias falsas, literalmente. Ainda que tal desencontro com a verdade não
seja total. Ou aconteça por modo tão completamente voluntário quanto apenas em
parte, ou até mesmo sem nenhum ingrediente subjetivo de parceria com a
inverdade. De toda maneira, notícias falsas que se espalham instantaneamente e
em escala planetária, porquanto formatadas sob essa revolucionária forma de
mensageria em rede que toma o nome técnico de “comunicação de dados”.
Compreensível, pois, que se pressione o Estado para editar
leis de enfrentamento eficaz desse recorrente fenômeno. É o pano de fundo do
Projeto de Lei número 2.630, em tramitação pela Câmara dos Deputados e sob a
ementa de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na
Internet”. A exigir a lembrança de que boa parte dos temas ali tratados tem o
seu regime jurídico diretamente estabelecido pela Constituição da República.
Logo, um regime que não pode deixar de se pôr como obrigatório parâmetro para
toda e qualquer lei de escalão infraconstitucional.
Essa advertência começa pela necessidade de se entender o
que não sejam fake news. Por ilustração, elas não correspondem às categorias
constitucionais da liberdade de “manifestação do pensamento” e da “expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. Tampouco mantêm
identidade com o direito de “acesso à informação”. Antes frustram o direito de
todos ao mais livre acesso a um tipo veraz de informação, pois somente ele é
que se põe como direito fundamental (por isso que bem de personalidade). E
quanto à tarefa de dizer em que as fake news consistem, é preciso ver se elas
já se encaixam nesse ou naquele molde legal de infração penal. Ou se é possível
tomá-las como hipótese de incidência de um novo ilícito. Mais ainda, importa
saber se a perpetração de fake news expõe o(s) seu(s) agente(s) à vedação de
protagonizar futuras e distintas relações de internet. O que, data venia de
entendimento contrário, me parece juridicamente descabido.
São aspectos que, junto a muitos outros de idêntica
relevância – a partir do caráter jurídico totalmente privado das relações de
internet -, não têm como ser dissecados num breve artigo de jornal. Por isso me
limito a pinçar do projeto em causa todo o artigo 10.º, que me parece mais
vistosamente destoante da Constituição. É que ele instaura um regime de
rastreamento sobre as pessoas naturais que termina por lhes recusar os direitos
fundamentais à “intimidade” e à “vida privada” (inciso X do artigo 5.º). Vida
privada num plano intersubjetivo ou social, vida privada num plano espacial ou
geográfico. Além de submetê-las a um tipo de investigação que, por independer
do caso concreto e da apuração das coisas em autos oficiais, ignora os
pressupostos também diretamente constitucionais da investigação criminal e da
instrução processual penal.
Deveras, penso que esse artigo 10.º inverte as coisas.
Investigação criminal e instrução processual penal não se instauram senão
documentalmente. Assim como não são abertas a partir do nada. Ambas pressupõem
a ocorrência de algo sinalizador, em sua materialidade, de infração penal. Algo
já abstratamente definido como ilícito penal e a ser apurado quanto à
respectiva materialidade. Isso na perspectiva da identificação do respectivo
autor. Um só autor, ou mais de um, contanto que essa coautoria seja passível de
quantificação ou determinação numérica. Não em aberto, porque, senão, a essa
indeterminação subjetiva passa a corresponder uma permanente situação de
suspeita criminal sobre todo mundo e um Estado-polícia por definição. Como se a
máxima de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (Thomas Jefferson)
não fosse cunhada a favor dos particulares e contra ele mesmo, Estado. Não o
contrário.
Claro que não se está a desconhecer o vínculo funcional
entre o combate às fake news e a concreção do bem jurídico fundamental da
“segurança pública”. Ainda assim, que esse imbricamento se faça a partir do
recorte que o artigo 144 da Constituição já fez quanto a dois literais sujeitos
jurídicos: de uma banda, o Estado; de outra, as pessoas privadas. O Estado como
sujeito que tem o “dever” de assegurar à população tal segurança; as pessoas
privadas como titulares do direito ao desfrute desse bem da vida e também como
responsáveis pela respectiva prestação. Sem que a lei possa baralhar as duas
categorias jurídicas, pois o substantivo “dever” é conatural à figura do Estado
mesmo. Estado que tem como uma das suas justificativas existenciais a
permanente desincumbência desse específico dever, justamente.
Já a responsabilidade, o seu significado técnico é de
colaboração ou ajuda ou auxílio. Sem constituir-se numa das próprias razões de
ser das pessoas privadas. Pelo que a lei não pode forçar os particulares a
fazer as vezes do poder público. A se colocar no lugar dele. Mais uma
advertência que fica.
EX-PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAl (STF)
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